Jurisdição internacional e justiça social: o acidente de Mariana e seus desdobramentos
6 de novembro de 2024, 15h22
O dia 25 de outubro de 2024 entrará para a história do Brasil e de Minas Gerais. Após decorridos quase dez anos do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, foi assinado o acordo de reparação integral e definitiva dos prejuízos causados por aquela que ficou conhecida como a maior catástrofe ambiental do país. Resumidamente, o pacto firmado prevê o pagamento de R$ 132 bilhões adicionais pelas empresas envolvidas no acidente, além dos quase R$ 38 bilhões por elas já desembolsados nos últimos anos.
Quase por ironia do destino, na mesma semana do celebrado acordo, também foi iniciado, no Reino Unido, o julgamento da ação de reparação ajuizada pelos municípios prejudicados pelo rompimento da barragem contra as empresas controladoras das mineradoras brasileiras envolvidas no acidente (processo HT-2022-000304). De maneira cumulativa — ou “complementar”, como os municípios buscam sustentar —, o pleito objeto da ação britânica é justamente de indenização, por direitos próprios e em nome da coletividade, por danos materiais e morais e direitos patrimoniais próprios, coletivos e difusos.
Mas afinal, se o acordo bilionário assinado tinha como pretensão justamente a reparação “integral e definitiva” dos danos causados pelo rompimento da Barragem de Fundão, o que estaria em jogo na corte inglesa?
A resposta para essa pergunta é, a um só tempo, evidente, constrangedora e capaz de tocar discursos passionais de todo tipo.
Evidente, porque o que se busca é a nova penalização, em território estrangeiro, de empresas situadas no Brasil, de notória solvência em território nacional, relativo a fato ocorrido no Brasil, o qual vem sendo julgado por instituições e pelas leis brasileiras. Constrangedora, porque o ajuizamento de demandas como essa movida no pelos municípios no “Caso Mariana”, além de significar uma renúncia, pelos meios transversos, da imunidade de jurisdição do Estado brasileiro e uma quebra do equilíbrio federativo, escancara uma injustificada desconfiança de um ente subnacional do sistema de justiça de seu próprio País.
Sentimentalismo sobre o tema
Por fim, a resposta à pergunta feita anteriormente é também capaz de tocar discursos passionais, porque é preciso coragem para enfrentar todo o sentimentalismo que o tema provoca. Afinal, de um lado, o que se tem é a justa defesa das instituições nacionais e, de outro, o necessário respeito à dolorosa memória deste lamentável desastre humano e ambiental.
E é justamente diante de todo este contexto que o Supremo Tribunal Federal terá a oportunidade de se manifestar sobre a matéria, o que, provavelmente, dar-se-á no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 1.178. Diga-se “provavelmente”, porque existem questões processuais que ainda serão objeto de julgamento e que, se não superadas, poderão prejudicar a análise do mérito da demanda.
Seja como for, não se pode desconsiderar que o rumo da ADPF poderá arranhar o prestígio das mais relevantes instituições de justiça brasileiras, bem como influenciar negativamente o ambiente de negócios no Brasil.
Primeiramente, não se pode concordar com a ideia de que o ajuizamento de ações judiciais por municípios brasileiros no exterior figuraria como mero ato administrativo de gestão. Trata-se, a bem da verdade, de uma malfadada tentativa de exercício de soberania por um ente subnacional que, inconstitucionalmente, aceita receber e cumprir ordens de um poder constituído de um Estado estrangeiro.
Além disso, ao buscarem tutelar o patrimônio público e social, o meio ambiente e os interesses difusos e coletivos no exterior, os municípios acabam impedindo o controle e a efetiva participação dos respectivos ministérios públicos a que estão submetidos naquele pode ser um dos casos mais relevantes (se não “o mais”) destes mesmos entes. Inclusive, não se pode deixar de destacar a louvável atuação do parquet na condução dos problemas decorrentes do desastre de Mariana, o qual foi capaz, de maneira coordenada com os envolvidos (empresas responsáveis e vítimas), de cumprir com efetividade o binômio “reparação e responsabilização”.
Políticas de proteção do meio ambiente
Ainda analisando o grande papel desempenhado pelas autoridades brasileiras no caso da Barragem de Fundão, chama a atenção que ao se debater o já citado acordo de quase R$ 170 bilhões, pouco (ou quase nada) é discorrido acerca das diversas políticas criadas por estas mesmas instituições para proteger o meio ambiente e a coletividade de potenciais novos danos decorrentes da atividade minerária no Brasil. Diversos são os exemplos que podem ser dados nesse sentido, valendo listar os seguintes (alguns nacionais e outros específicos em Minas Gerais):
1) instituição da Política Estadual de Segurança de Barragens em Minas Gerais, que define regras a serem observadas pelos empreendedores detentores de barragens de resíduos industriais, barragens de mineração, barragens de água ou líquidos associados a processos industriais ou de mineração;
2) instituição da caução ambiental com o propósito de garantir a recuperação socioambiental para casos de sinistro e para desativação da barragem;
3) definição de novos critérios mais rígidos para elaboração do Plano de Ação de Emergência para Barragens de Mineração, parte integrante do Plano de Segurança de Barragem, que tem como objetivo minimizar danos e perdas de vida, além de mitigar impactos ambientais e proteger o patrimônio cultural;
4) instituição da Avaliação de Conformidade e Operacionalidade (ACO) do Paebm para barragens com alto Dano Potencial Associado;
5) alteração na regulamentação e nos valores de sanções pela Agência Nacional de Mineração;
6) obrigação de descaracterização de barragens a montante;
7) imposição de restrições para a construção e/ou manutenção de barragens que possuam comunidade na zonas de autossalvamento; entre inúmeras outras medidas.
Mas não é só.
Conforme pontuado anteriormente, é preocupante (para se dizer o mínimo), o que este verdadeiro “forum shopping” pode gerar para o ambiente de negócios no Brasil. Como bem destacado pela Associação Brasileira das Sociedades Anônimas de Capital Aberto (Abrasca), em sua manifestação protocolada na ADPF nº 1.178:
“Como a ação proposta perante tribunal estrangeiro não induz litispendência e não obsta a que a autoridade judiciária brasileira conheça da mesma causa e das que lhe são conexas, num contexto de relações econômicas globalizadas — nas quais muitas das empresas que figuram no polo passivo de demandas ajuizadas nos exterior por municípios e pertencem ao mesmo grupo econômico das empresas brasileiras —, os mesmos fatos poderão acarretar múltiplas indenizações e bastante onerosas, inclusive em reprovável bis in idem.”
Ora, não é preciso dizer muito para que se possa constatar que a eventual autorização para que entes subnacionais possam litigar no exterior figura como ingrediente letal para o investimento produtivo estrangeiro no Brasil.
Não podemos ser coniventes e insensíveis com um dos capítulos mais tristes da nossa história, que foi a tragédia de Mariana. Porém, como dizia o ministro Sepúlveda Pertence, em frase lapidar, que “inconstitucionalidades não se compensam”, devemos ter a responsabilidade de afirmar que não se deve corrigir erros do passado com novos erros no presente ou no futuro.
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