Opinião

Audiência pública no STF discute vínculo dos motoristas de aplicativos

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  • é doutor em Estado e Sociedade na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB) especialista em Processo Civil e procurador do Trabalho.

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6 de novembro de 2024, 16h19

No próximo dia 9 de dezembro, o STF (Supremo Tribunal Federal) fará uma audiência pública para discutir o vínculo trabalhista dos motoristas de aplicativos, especialmente aqueles que atuam para plataformas como a Uber e a 99. Este evento representa uma oportunidade crucial para analisar as relações de trabalho nesse setor em crescimento, que levanta questões jurídicas e sociais relevantes.

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Um dos principais argumentos utilizados pelas plataformas é que os motoristas são autônomos, o que, à primeira vista, parece garantir maior liberdade. No entanto, essa autonomia é contestada pela realidade da subordinação que caracteriza o trabalho desses profissionais. De acordo com o artigo 2º da CLT, o empregador é aquele que dirige a atividade do trabalhador. Na prática, os motoristas obedecem a diretrizes e regras estabelecidas pelas plataformas, indicando que não são tão autônomos quanto alegam.

Além disso, o argumento de que os motoristas podem escolher trabalhar apenas nos dias que desejam carece de substância. Assim como no trabalho intermitente, essa flexibilidade não exclui a possibilidade de um vínculo empregatício. O parágrafo 3º do artigo 443 da CLT estabelece que a natureza do trabalho não se altera pela escolha do momento da prestação do serviço.

As plataformas frequentemente defendem que os motoristas têm um trabalho flexível, mas pesquisas mostram que muitos deles trabalham, em média, 10 horas por dia, seis dias por semana. Essa carga horária sugere uma realidade de trabalho que não se distancia do modelo tradicional de emprego. A ideia de que motoristas não têm uma jornada de trabalho ignora o fato de que a remuneração por peça, conforme o artigo 78 da CLT, não desqualifica a existência de um vínculo empregatício.

Não se trata de empreendedorismo

Outro ponto a ser abordado é a caracterização dos motoristas como empreendedores. Na realidade, a maioria enfrenta dificuldades financeiras e está endividada, o que contraria a imagem de sucesso associada ao empreendedorismo. Além disso, a noção de que motoristas escolhem as corridas é enganosa; na prática, eles apenas podem recusar corridas que consideram ruins, sem controle real sobre as ofertas de trabalho.

Outro argumento frequentemente acolhido por tribunais trabalhistas é que não existem chefes, pois a relação é mediada por um algoritmo. No entanto, o artigo 6º, parágrafo único, da CLT, sugere que a figura do chefe pode ser substituída por um sistema que exerce controle sobre o trabalho. Assim, o algoritmo se torna uma forma de supervisão que impõe regras e limites à atuação dos motoristas.

Spacca

A alegação de que motoristas não desejam a formalização de suas relações de trabalho ignora o princípio da imperatividade das normas trabalhistas, conforme artigo 9º da CLT. Esse princípio garante que, mesmo que os trabalhadores não queiram a formalização, a legislação deve prevalecer em prol da proteção dos direitos trabalhistas.

Os Termos de Uso das plataformas que chamam motoristas de “parceiros” violam o princípio da primazia da realidade, que estabelece que a verdadeira natureza da relação de trabalho deve ser reconhecida, independentemente do que está escrito em contratos ou termos.

Temor de que plataforma deixem o Brasil

Há uma preocupação válida entre motoristas sobre o que aconteceria se a relação de trabalho fosse formalizada. Muitos temem que a Uber e a 99 deixem o Brasil, mas é importante lembrar que isso já ocorreu em outros países, como na Inglaterra, onde a Uber continua operando. Além disso, 20% de todos os motoristas da Uber no mundo são brasileiros, o que torna a presença da empresa no Brasil uma parte significativa de seu modelo de negócios.

A noção de que a formalização levaria a Uber à falência é uma anacrônica estratégia de manipulação. Em verdade, a empresa opera com a lógica do dumping social, visando a maximização de lucros em detrimento das condições de trabalho de seus motoristas. Ao contrário do que se pensa, Uber e 99 não são meras plataformas digitais como o Google, mas sim empresas de transporte que exercem controle sobre a dinâmica do trabalho.

Embora haja um clamor por novas leis que se adequem à tecnologia, a subordinação dos motoristas é uma realidade bem estabelecida. A desconfiança em relação a sindicatos e associações é compreensível, mas a verdade é que a organização coletiva é essencial para que os motoristas possam lutar efetivamente por seus direitos.

A audiência pública no STF representa uma oportunidade valiosa para discutir a realidade dos motoristas de aplicativos. É essencial que a sociedade, os legisladores e as plataformas reconheçam a natureza do vínculo empregatício que existe e busquem soluções que garantam direitos e dignidade ao trabalho. A era digital traz desafios, mas também a responsabilidade de adaptar nossas legislações para proteger todos os trabalhadores, independentemente do setor em que atuam.

O futuro do trabalho em plataformas digitais deve ser pautado pela justiça social e pela proteção dos direitos dos trabalhadores, assegurando que a modernidade não seja sinônimo de precarização.

Autores

  • é doutor em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFBA), mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UBC), especialista em Processo Civil pela Faculdade Jorge Amado (Unijorge) e procurador do Trabalho.

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