Opinião

Arrematante e dívida prévia: limites da responsabilidade tributária no edital de leilão

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  • é advogada especializada em Direito Civil e Processo Civil com pós-graduação pela PUC-RS em Direito Tributário e fundadora do escritório Gilmara Nagurnhak Advocacia & Assessoria Empresarial.

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6 de novembro de 2024, 13h18

A arrematação judicial, no Direito Tributário, apresenta complexidades normativas que refletem a tensão entre os dispositivos do Código Tributário Nacional (CTN) e as interpretações editais que, frequentemente, buscam transferir ao arrematante a responsabilidade por tributos não quitados pelo proprietário anterior.

Essa situação deriva da tentativa de imputação de responsabilidade ao arrematante mediante previsão editalícia, que contraria os princípios gerais e a norma expressa no artigo 130, parágrafo único, do CTN, segundo a qual o crédito tributário referente ao imóvel sub-roga-se no valor da arrematação, deixando o imóvel livre de ônus tributário para o novo adquirente.

Em outras palavras, o CTN assegura que a dívida tributária não acompanha o bem na transferência originária realizada via arrematação, mas sim o valor depositado para quitação, situação que reforça a independência do novo proprietário em relação aos tributos pretéritos.

A decisão fixada pelo Superior Tribunal de Justiça no Tema 1.134 surge para pacificar uma controvérsia jurisprudencial que vinha permitindo previsões editalícias de responsabilização do arrematante. A tese estabelece a invalidade de previsões em editais que busquem obrigar o arrematante ao pagamento de débitos tributários anteriores à alienação, consagrando, assim, a supremacia do CTN e afastando a possibilidade de estipulação administrativa de responsabilidade tributária por vias editalícias.

Esse posicionamento valoriza a uniformidade das normas tributárias e a segurança jurídica ao reforçar que a responsabilidade tributária não pode ser flexibilizada por dispositivos de natureza infralegal ou por atos administrativos, como é o caso dos editais de leilão.

O estudo dessa decisão e suas implicações jurídicas busca esclarecer a hierarquia normativa aplicável, a definição de responsabilidade tributária nos casos de alienação judicial e o impacto da tese fixada pelo STJ sobre futuras arrematações e as obrigações incidentes.

Esta análise tem o objetivo de explorar o alcance do CTN na restrição de responsabilidade ao arrematante, destacando o papel das normas de direito público e a reserva de lei complementar, que limitam a intervenção administrativa e garantem ao arrematante a aquisição do bem desonerado, conforme a doutrina e a jurisprudência agora pacificadas.

Responsabilidade tributária e arrematação judicial

A responsabilidade tributária em arrematações judiciais distingue-se por sua conformidade com a aquisição originária, na qual o arrematante adquire o bem sem vínculo de causalidade com o fato gerador da obrigação tributária anterior. Diferentemente da aquisição derivada, em que o adquirente assume o bem juntamente com as obrigações propter rem — ou seja, as obrigações que acompanham o bem em virtude do vínculo entre a titularidade e a relação jurídica subjacente — a arrematação judicial assegura que o arrematante seja desvinculado das dívidas tributárias que recaíam sobre o bem. A natureza da arrematação judicial, portanto, impede que o arrematante seja incluído no polo passivo das obrigações tributárias já existentes.

A concepção do CTN, consolidada pelo artigo 130, parágrafo único, estabelece que o crédito tributário incidente sobre o imóvel sub-roga-se diretamente no valor da arrematação. Essa sub-rogação real — diferenciada da sub-rogação pessoal que vincula diretamente o novo proprietário aos débitos do imóvel — promove um sistema em que o crédito tributário é resguardado para a Fazenda Pública pelo valor depositado em juízo pelo arrematante.

Tal procedimento reflete o propósito de separar a responsabilidade pessoal do arrematante dos débitos de propriedade, limitando a extensão do vínculo tributário ao montante do preço alcançado na arrematação.

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Na prática, a responsabilidade tributária do arrematante está, portanto, restrita à satisfação do crédito pela via do depósito judicial, sendo a Fazenda Pública o ente a concorrer com outros credores pelo montante depositado. Se o valor da arrematação não for suficiente para cobrir a integralidade da dívida tributária, a legislação prevê que o Fisco se dirija ao proprietário anterior para perseguir o saldo remanescente, resguardando o arrematante de qualquer encargo adicional e reafirmando a sua independência quanto aos débitos preexistentes.

A estrutura jurídica que desonera o arrematante dos ônus passados baseia-se na ausência de liame entre o novo proprietário e o fato gerador do tributo, estabelecendo uma linha divisória clara entre os efeitos tributários da alienação comum e da alienação judicial. No caso da arrematação judicial, a aquisição originária anula a possibilidade de sucessão de débitos, conferindo ao arrematante um título livre de encargos fiscais, conforme disciplinado pela norma tributária cogente. Essa diferenciação reforça a segurança jurídica da arrematação, incentivando sua utilização e, ao mesmo tempo, protegendo o arrematante contra eventuais tentativas administrativas de responsabilização.

A relação entre a aquisição originária e a extinção dos ônus pré-existentes não é meramente interpretativa; trata-se de um direito assegurado pelo CTN em consonância com a doutrina civilista e tributária, que defendem que a propriedade adquirida na arrematação judicial se caracteriza pela independência do novo domínio em relação às obrigações do alienante.

Dessa forma, o sistema tributário brasileiro preserva o objetivo do leilão público ao evitar que o arrematante, por meio de sub-rogação real, tenha de arcar com passivos que não lhe dizem respeito, fomentando a participação em leilões judiciais e promovendo um ambiente de negócios seguro e previsível para os arrematantes.

Previsão legal e hierarquia normativa

A previsão legal constante no artigo 130, parágrafo único, do CTN prevê que, na alienação judicial de um imóvel, a responsabilidade tributária pelos débitos anteriores à arrematação será sub-rogada no valor da arrematação, e não no próprio bem ou em seu adquirente, diferentemente do que ocorre nas aquisições derivadas. Ou seja, qualquer dívida tributária relativa ao bem será satisfeita pelo valor arrecadado com a venda judicial, sem que haja imputação direta ao arrematante, que adquire o bem livre de ônus.

Esse preceito normativo consolida uma clara hierarquia legal que não permite interpretações ou inserções de cláusulas em editais de leilão que imponham ao arrematante a responsabilidade por dívidas preexistentes. O CTN, dotado de força normativa superior por sua condição de lei complementar, regula as normas gerais em matéria tributária e define, com exclusividade, as hipóteses de responsabilidade pelos tributos.

Essa estrutura legislativa impede que previsões em instrumentos infralegais, como editais de leilão, modifiquem ou ampliem a responsabilidade tributária além do que está previsto na legislação, sobretudo quando tais disposições têm potencial de interferir na segurança jurídica e na função econômica das arrematações judiciais.

Spacca

O princípio da reserva de lei complementar, alicerçado no artigo 146, inciso III, alínea “b”, da Constituição, delega exclusivamente ao CTN o poder de dispor sobre normas gerais de Direito Tributário, incluindo as matérias atinentes à responsabilidade tributária. A função dessa reserva é evitar que normas infraconstitucionais, como resoluções, portarias e, neste caso, editais de leilão, possam estabelecer regras de responsabilidade tributária contrárias ao sistema nacional, especialmente no que concerne à sub-rogação tributária.

Assim, qualquer disposição que busque reverter ou flexibilizar a regra de sub-rogação no preço da arrematação seria juridicamente inválida, pois feriria a hierarquia normativa e o princípio da legalidade estrita em matéria tributária.

Este entendimento é reforçado pelo princípio da supremacia do CTN sobre atos administrativos, que exclui a possibilidade de que o edital de leilão, documento essencialmente informativo e de convocação, crie obrigações tributárias novas, atribuindo ao arrematante responsabilidades que a própria legislação tributária exclui. Dessa forma, ao restringir a responsabilização do arrematante pelo preço da arrematação, o CTN preserva o interesse público, viabilizando as arrematações judiciais e garantindo que o mercado imobiliário em leilões judiciais permaneça atrativo, pois assegura aos arrematantes a segurança jurídica de adquirir o imóvel sem o passivo tributário pretérito.

Edital de leilão e previsão de ônus tributário

A natureza jurídica do edital de leilão é subordinada à legislação superior, como o CTN, em questões que envolvem a responsabilidade por débitos tributários. Em essência, o edital tem a função de detalhar as condições da venda, informar os interessados sobre o bem, especificar aspectos relevantes ao procedimento e garantir a transparência do processo. Contudo, esse caráter informativo não confere ao edital o poder de impor obrigações tributárias ao arrematante, especialmente quando tais disposições contrariam o artigo 130, parágrafo único, do CTN, que isenta o arrematante de débitos anteriores.

A limitação do edital de leilão é respaldada pelo princípio da legalidade tributária, que veda a criação de obrigações não previstas em lei complementar. Qualquer previsão em edital que indique que o arrematante seria responsável por débitos tributários anteriores contraria a norma tributária vigente e infringe a competência exclusiva do CTN para dispor sobre a responsabilidade em matéria tributária. Esse entendimento foi corroborado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema 1.134, onde se fixou a tese de que o edital não possui validade para atribuir responsabilidade tributária ao arrematante sobre débitos preexistentes à arrematação.

O argumento de que o arrematante estaria ciente dos débitos e, por isso, concordaria com eles ao participar do leilão é juridicamente irrelevante, pois a ciência prévia da dívida não implica sua aceitação ou assunção, uma vez que o próprio ordenamento jurídico exclui essa responsabilização. A função do edital de leilão, nesse sentido, é limitada a proporcionar transparência quanto ao estado do bem, sem poder imputar ao arrematante encargos que a legislação já determinou como insubordináveis. A previsão de tais encargos, ainda que conste expressamente no edital, carece de validade jurídica, pois trata-se de uma disposição ineficaz frente à norma superior do CTN.

Portanto, ao vedar a possibilidade de que o edital imponha ônus tributário ao arrematante, o CTN estabelece um modelo protetivo que assegura a validade do instituto da arrematação judicial, incentivando o cumprimento do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos arrematantes. Isso mantém a atratividade das alienações judiciais e protege o arrematante contra a interferência de cláusulas que excedem a competência do edital, firmando uma jurisprudência uniforme e coerente com os princípios fundamentais do direito tributário.

Modulação dos efeitos da decisão

A modulação dos efeitos da decisão proferida no Tema 1.134 pelo STJ foi estruturada para atender a princípios fundamentais do direito, como a segurança jurídica e a isonomia, ao estabelecer que a tese firmada na decisão teria efeitos prospectivos, aplicando-se apenas a editais de leilão publicados após a ata de julgamento do repetitivo. Essa modulação não apenas evita impactos abruptos sobre situações anteriormente consolidadas, mas também assegura que o entendimento consolidado pelo STJ seja respeitado de forma ordenada, permitindo a adaptação dos órgãos judiciais e administrativos.

A modulação de efeitos nas decisões repetitivas é uma ferramenta jurídica que visa mitigar potenciais danos que a aplicação retroativa de uma nova interpretação poderia causar, especialmente em temas que envolvem alterações significativas na jurisprudência, como é o caso da responsabilidade tributária do arrematante. No julgamento do Tema 1.134, o STJ considerou que a fixação de efeitos ex nunc seria essencial para evitar que arrematantes de leilões anteriores fossem surpreendidos com a mudança de interpretação, resguardando expectativas legítimas formadas com base nas disposições editalícias anteriormente aceitas.

Além disso, a modulação dos efeitos preserva o equilíbrio fiscal e a eficiência na arrecadação dos tributos, garantindo que os valores arrecadados nos leilões anteriores ao julgamento possam ser utilizados para a quitação dos débitos fiscais, sem que haja prejuízo à Fazenda Pública ou necessidade de redirecionamento da cobrança para o antigo proprietário em situações em que o montante da arrematação não é suficiente para satisfazer o crédito tributário. Essa modulação reflete uma abordagem equilibrada e ponderada, que assegura tanto o respeito ao novo entendimento jurisprudencial quanto a manutenção da estabilidade nas práticas adotadas em processos anteriores.

Outro ponto importante da modulação é que ela delimita um marco temporal claro e objetivo para a aplicação do novo entendimento, proporcionando maior clareza e previsibilidade nas operações de leilão judicial. Essa fixação temporal permite que tanto o Poder Judiciário quanto a Administração Pública ajustem os editais futuros de forma a respeitar a nova interpretação do STJ, evitando conflitos entre o disposto no CTN e as previsões editalícias. Com isso, a modulação da decisão visa proteger as expectativas legítimas dos arrematantes, garantir a segurança jurídica no processo de arrematação e assegurar que os créditos tributários possam ser satisfeitos de acordo com os princípios legais e constitucionais.

Conclusão

A decisão proferida pelo STJ no Tema 1.134 consolida uma linha interpretativa rigorosa quanto à responsabilidade tributária em arrematações judiciais, assegurando que o arrematante não seja onerado com dívidas preexistentes ao ato de alienação, conforme estabelece o artigo 130, parágrafo único, do CTN. Esse entendimento reafirma a superioridade das normas tributárias complementares sobre previsões infralegais, como editais de leilão, e protege o arrematante de interpretações arbitrárias ou de cláusulas que poderiam comprometer a segurança jurídica e a previsibilidade dos leilões judiciais.

A conclusão extraída do estudo dessa tese ressalta a importância da observância estrita da reserva de lei complementar em matéria tributária, uma vez que qualquer tentativa de ampliação da responsabilidade tributária por atos administrativos ou disposições editalícias carece de respaldo legal, sendo vedada pelo ordenamento jurídico. A tese estabelecida pelo STJ promove a uniformização das decisões sobre o tema, oferecendo uma base sólida para futuros julgamentos e garantindo que o princípio da legalidade tributária seja respeitado em todas as esferas da Administração e do Judiciário.

Essa consolidação jurisprudencial não apenas facilita a interpretação e aplicação do CTN, mas também fortalece o sistema de arrematação judicial, promovendo maior segurança aos arrematantes e incentivando a participação nos leilões públicos. No entanto, o entendimento estabelecido traz à tona questões sobre a efetividade da arrecadação tributária em casos de sub-rogação insuficiente, sugerindo a necessidade de ajustes legislativos para equilibrar a proteção conferida ao arrematante e a preservação dos direitos do Fisco. Dessa forma, a decisão do STJ representa um marco de estabilidade jurídica no setor, ao mesmo tempo que estimula um debate sobre possíveis melhorias no regime de cobrança tributária incidente sobre a arrematação judicial.

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