Surrado e puído, o dualismo à brasileira teima em sobreviver
5 de novembro de 2024, 15h25
Tem sido frequente nos últimos anos a afirmação de que o debate acerca do monismo e do dualismo no Direito Internacional é algo superado, não mais válido para a realidade dos nossos dias. Para alguns seria uma discussão “datada”, eivada dos vícios típicos do anacronismo. Boa parte da convicção dos arautos dessa sentença se baseiam em uma frase proclamada pelo jurista francês Charles Rousseau, o qual, em uma obra de 1958, lançou uma tentativa de epitáfio — com seus ecos no Brasil algumas décadas depois —, quando se perguntava se a questão já não seria uma “vã controvérsia” ou, no máximo, uma “discussão de escola”.
Celso Mello, árduo defensor do monismo, em nenhum momento deu ouvidos a essa minimização, assim como Francisco Rezek, decano da ciência brasileira do Direito Internacional, continua nos dias de hoje defendendo a existência de uma só ordem jurídica que abarca Direito Internacional e Direito interno.
No seu histórico, o Estado brasileiro nasce como monista, fenômeno bem delineado na jurisprudência consolidada pelo STF nos primeiros anos da República, mas pouco examinado pelos doutrinadores da época e, desde então, sem que haja previsão expressa no nosso ordenamento. Nesse último ponto, aliás, permanece um eloquente silêncio, com disposições que miram somente o procedimento de recepção das normas internacionais sem declarar de modo alto-sonante — como fazem as constituições francesa (artigo 55), alemã (artigo 24), e dos Países Baixos (artigos 91, 3; e 93) — a hierarquia entre normas internacionais e normas internas.
Dualismo e ditadura militar
A famigerada decisão no âmbito do Recurso Extraordinário n° 80.004/77 foi a exceção que contradisse o largo histórico de monismo, colocando em risco inclusive o conteúdo dos artigos 10, 11 e 12 da Convenção Interamericana sobre os tratados, assinada pelo Brasil em 1928, em Havana, e do artigo 98 do Código Tributário Nacional, promulgado em 1966. A decisão emanada no recurso, a qual cambaleante tentou guiar o Brasil pelas décadas seguintes, mesmo tratando de matéria cambiária, parte sub-repticiamente de um pressuposto de política de Estado e de outro eminentemente doutrinário.
No que concerne à política, enquanto nos salões da Organização das Nações Unidas se lutava para consolidar um sistema de tutela dos direitos humanos, o Estado brasileiro seguia na direção contrária, afundando-se nas torturas da ditadura militar. Reafirmar o monismo no Direito Internacional seria, então, para os juristas da ditadura, no mínimo uma incoerência, tornando as atrocidades dos porões possivelmente alcançáveis pela ordem internacional. Uma perspectiva que colocaria em risco a ideia de soberania nacional que permeava a ideologia de então.
No que concerne ao pressuposto doutrinário, uma frase do internacionalista britânico Ian Brownlie, presente em obra publicada em 1966, serviu de catalizador para todas as pressões internas da legião de juristas da ditadura que populavam os corredores palacianos, legitimando o dualismo como meio de reforçar a inatingibilidade dos porões.
Brownlie, o qual não tinha a mais pálida ideia do uso que posteriormente fariam da sua frase, afirmava que uma lei posterior a um tratado revoga a este, e passa a ser aplicada, mas que o Estado seria responsável por ter violado norma internacional. Ovacionada pela alta jurisdição o conteúdo da primeira parte da frase de Brownlie, o restante do texto foi cuidadosamente mantido em segundo plano, assim como, o seu autor.
Dualismo surrado e o risco de retrocesso
Se, por um lado, a jurisprudência se afirmava dualista e o legislador continuava silente, por outro, a doutrina continuava fiel ao monismo de preeminência internacional, tomando aberta posição de confronto com os ministros do Supremo. A caminhada de 1978 a 2024, passando por 1988, nos mostrou, porém, que o tentado dualismo com nuances hegelianas proposto pelo STF nos anos 70, não se sustentou, tendo, justamente, a academia desempenhado com prontidão o papel de crítico combativo de um sistema retrógado, que no caso brasileiro era notoriamente usado a serviço de ditadores.
Vários autores têm elencado os eventos jurídicos que ao longo dos anos corroeram a rigidez da decisão no Recurso Extraordinário n° 80.004/77, afirmando a existência, hoje, de um monismo moderado. Na ausência de uma decisão final do STF sobre o tema, com uma declaração ampla e solene consolidando a nova perspectiva, prefiro contemplar o fenômeno como um dualismo puído, surrado, deslegitimado por tudo e por todos, que somente se sustenta devido a inércia do legislador e dos julgadores.
O ponto que gostaria de salientar antes de concluir esse escrito, contudo, se refere aos perigos de uma escatologia internacionalista baseada no jusnaturalismo sociológico de Léon Duguit e de Georges Scelles, os quais contemplavam o monismo de preeminência internacional como ponto final da grande aventura humana, uma espécie de paraíso na Terra o qual seria alcançado após várias etapas de “evolução intersocial”, sem possibilidade de retorno.
Se hoje caminhamos a passos largos em direção a esse tipo de monismo, abandonando os resquícios do uso mesquinho que a ditadura fez do dualismo, por outro, alguns eventos internacionais que nos rondam podem sempre representar a recondução a uma política de retrocesso, com interpretações que fecham o ordenamento jurídico interno ao ordenamento internacional, tentando manter as normas do primeiro no mesmo patamar ou mesmo em hierarquia superior àquelas do segundo.
Tivemos vários exemplos de discursos nessa direção, todos no campo hipotético, em meio à confusa e desastrosa política externa levada a cabo pelo governo de Jair Bolsonaro. Nos dias de hoje, contudo, nos vemos diante de outros discursos que podem conduzir a evidentes possibilidades de retrocesso nesse campo, não pouco significativos. Serve como exemplo, atual e pulsante, a defesa de alguns do uso da imunidade de chefe de Estado por Vladimir Putin em uma eventual visita ao Brasil na reunião do G20, sem que haja a necessária aplicação pelo Estado brasileiro do mandado de captura emitido pelo Tribunal Penal Internacional.
Estamos diante de uma hipótese baseada no artigo 34 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, mas também e sobretudo, de um pura e simplesmente solução costumeira — a “tradição”, como tem sido lembrado nos meios de comunicação —, do Estado brasileiro de conceder com altas horas e pompas máximas a imunidade a chefes de Estado de outros países presentes no nosso território sem levar em conta a existência sobre eles de procedimentos por crimes de guerra, crimes de genocídio e crimes contra a humanidade.
Vale ressaltar, nesse quadro, que nem mesmo estamos levantando um debate de natureza estritamente normativo sobre a eventual preeminência de uma norma positivada, aprovada pelo Legislativo e promulgada pelo Executivo, sobre normas internacionais, mas pura e simplesmente de como a práxis do Estado brasileiro pode se valer de soluções internas costumeiras ou, como mencionado, a “tradição”, na tentativa de burlar normas do ordenamento internacional. O exemplo citado não é a único na atualidade, que apresenta todos os elementos para fazer retornar com força o discurso favorável a prevalência do ordenamento interno sobre aquele internacional.
Não só o exemplo citado, tendo Vladimir Putin por protagonista, mas também outras estratégias do gênero em favor de governos pouco comprometidos com normas internacionais assinadas pelo Brasil que tutelam os direitos humanos, a democracia e o Estado de Direito, seriam, então, determinantes em um eventual retrocesso na caminhada em direção ao monismo de preeminência internacional. Mesmo surrado e puído, portanto, o dualismo à brasileira teima em sobreviver e apresenta o sério risco de ressuscitar de modo vigoroso, se provocado. O debate sobre esse tema, então, está tudo, menos superado.
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