Opinião

Requisição ministerial e denúncia apócrifa: denuncismo e abuso de autoridade

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5 de novembro de 2024, 17h25

O Código de Processo Penal, em seu artigo 5º, inciso II [1], amparado pela Constituição de 1988, confere ao Ministério Público o poder requisitório de instauração de inquérito policial nos casos de crime de ação penal pública.

A requisição ministerial trata-se, na verdade, de poder-dever conferido ao Ministério Público pelo artigo 129, inciso VIII, da Constituição de 1988. Deixando de lado a mera solicitação ou requerimento, a norma constitucional, quando determina as funções institucionais do MP, faz uso, propositalmente, da palavra “requisitar” ao se referir à autoridade conferida ao órgão ministerial para exigir a instauração de inquérito policial.

Em que pese a doutrina moderna entender que prevalece a autonomia funcional do delegado de polícia, em razão da inexistência de hierarquia entre delegados e promotores de Justiça, o entendimento tradicional, ainda prevalente, é de que a medida de requisição ministerial de instauração de inquérito policial é impositiva, por força do princípio da obrigatoriedade, exceto ao se tratar de ordem manifestamente ilegal. Portanto, necessária a atuação diligente do Parquet ao fazer uso do poder requisitório que lhe foi conferido, sendo imprescindível a estruturação de uma requisição fundamentada, pautada em indícios instrutórios mínimos, dada a seriedade da medida.

Conduta necessária em caso de denúncia apócrifa

Quando notícia de fato delitivo chega ao conhecimento da autoridade ministerial, por meio de denúncia apócrifa, é necessária a atuação veemente do promotor de Justiça, construindo investigação preliminar, de modo a corroborar ou afastar o teor do que lhe foi denunciado. Esse entendimento foi sedimentado pelo Superior Tribunal de Justiça [2], segundo o qual a notitia criminis apócrifa, isoladamente, não é suficiente e carece de verificação pelos órgãos públicos da mínima plausibilidade da imputação para a deflagração ou determinação de instauração de inquérito policial. Relevante se mostra a existência de canais de denúncia com proteção da identidade do denunciante, levando-se em consideração as peculiaridades de cada caso. Contudo, principalmente com a difusão da informação nas mídias digitais, é crescente o movimento de “denuncismo” no Brasil.

Escudando-se no anonimato, denúncias apócrifas com teor falso ou manipulado vêm abarrotando o sistema judiciário, em prejuízo de interesse particular ou público. Por essa razão, o olhar atento do agente estatal, neste caso o promotor de Justiça, ao se deparar com denúncia anônima, garante a aplicação justa e eficaz da lei e protege a lisura dos órgãos de persecução penal. Contrariamente, quando o Parquet exara ato de requisição de instauração de inquérito policial a delegado de polícia, pautado exclusivamente em denúncia anônima, incide em flagrante inconstitucionalidade e pode, inclusive, incorrer em crime de abuso de autoridade.

A Lei 13.869/19, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade, tipifica em seu artigo 27 [3] a conduta de requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, quando ausentes indícios da prática de crime, ilícito funcional ou infração administrativa. Importante mencionar que a conduta criminosa estará atrelada, no caso de requisição ministerial, quando se exige a instauração de inquérito policial, dada a pseudo imperatividade da medida.

Nesse sentido, ao se deparar com notitia criminis inqualificada, o Parquet tem o dever de aferir indícios mínimos que corroborem a plausibilidade do fato narrado antes de requisitar a instauração de inquérito policial, de modo a combater o “denuncismo” desenfreado. É evidente o acompanhamento de requisição ministerial com a devida justificativa legal, acompanhada de elementos indiciários suficientes para gerar o início de uma persecução penal. Caso contrário, atrelada ao dolo específico exigido pela nova lei, o promotor de Justiça poderá incorrer em crime de abuso de autoridade.

Discricionariedade do delegado

São comportamentos como este que terminam por relativizar a coercitividade da requisição, conquanto, baldado atue o Parquet sob o manto da lei, não somente ele o faz, e o strepitus judici que deveria ser evitado desde tenras horas, quando da apreciação dos fatos denunciados ao MP, e não poderá prosperar pelas mãos da autoridade policial. Regido esta pelo princípio da discricionariedade, não encontrando elementos razoáveis para a instauração de procedimento investigativo, não poderá fazer outra coisa senão, de maneira formal, valendo-se de sua independência funcional (que, em outras palavras, representa verdadeira autonomia de convicção), rechaçar a ordem oficiando à autoridade requisitante, apontando a impossibilidade de se iniciar a investigação, oportunidade em que solicitará maiores informações.

Spacca

Nem se olvide dizer que em sede de procedimento investigatório preliminar, seja que nome tiver — no caso da Polícia Civil de Goiás, tratado como Verificação Preliminar de Inquérito (VPI) —, os danos não existem, conquanto, registrado que é, e assim deve ser para o controle público dos atos das autoridades, deixa sempre marcas sobre os nomes daqueles pelo procedimento alcançados. Ainda que termine arquivado por ausência de elementos que ratifiquem o documento apócrifo, suas marcas ficam nos bancos de dados do estado e, naturalmente, acessíveis em hipóteses de consultas específicas.

Lembremo-nos que o Direito Penal é a última ratio, a última medida possível ao Estado para a repressão a comportamentos ilícitos, e somente quando nenhuma outra medida for cabível para o reestabelecimento da ordem poderá entrar em ação, poderá ser acionado, e não é sem razão que assim o é conquanto, quando atuante, envolve sempre constrição de direitos, e sempre de forma gravosa.

Por isso, as autoridades precisam e devem se valer de poder de que dispõem para sua atuação. São funções de autoridade exatamente para tal. Mas devem ter o conhecimento do peso de sua autoridade, do peso do exercício de tal poder para que, de forma contida, na observância absoluta dos efeitos do exercício de seu desiderato, e no absoluto limite da lei, fazer atuar o Direito Penal.

 


[1] Art. 5o Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:
I – de ofício;
II – mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.

[2] RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. NULIDADE. NOTITIA CRIMINIS INQUALIFICADA. “DENÚNCIA ANÔNIMA”. POSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE INVESTIGAÇÕES PRÉVIAS À INSTAURAÇÃO FORMAL DE INQUÉRITO POLICIAL. PRECEDENTES. AUSÊNCIA NOS AUTOS DE NOTÍCIA DE DILIGÊNCIAS PRÉVIAS. REQUISIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA A INSTAURAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL. RECURSO PROVIDO. 1. “A notícia anônima sobre eventual prática criminosa, por si só, não é idônea para a instauração de inquérito policial ou deflagração da ação penal, prestando-se, contudo, a embasar procedimentos investigativos preliminares em busca de indícios que corroborem as informações, os quais tornam legítima a persecução criminal estatal (AgRg no AREsp 729.277/SP, 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 26/8/2016). 2. A notitia criminis apócrifa, por si só, não supre a necessidade de verificação pelos órgão públicos da mínima da plausibilidade da imputação para a deflagração ou determinação de instauração de inquérito policial. Recurso em habeas corpus provido para reconhecer a nulidade na Ação penal n. 0098586-10.2009.8.26.0050 (050.09.098586-9), desde a decisão que determinou a instauração do inquérito policial com base exclusivamente em denúncia anônima e sem a realização de nenhuma investigação prévia.
(STJ – RHC: 64504 SP 2015/0252531-6, Relator: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Julgamento: 21/08/2018, T5 – 5ª TURMA, Data de Publicação: DJe 31/08/2018)

[3] Art. 27.  Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa: (Vide ADIN 6.234)   (Vide ADIN 6.240)
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único.  Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada.

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