Leniência em xeque

11 anos de Lei Anticorrupção: hora de falar mal da aniversariante

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5 de novembro de 2024, 13h21

Passada a devida espera das celebrações de dez anos da Lei Anticorrupção (LAC), é chegada a hora de falar mal da aniversariante. Em primeiro lugar é bom lembrar que a Lei 12.846/2013 nasceu às pressas. A lei passou pelo Senado em regime de urgência como reação às “marchas de junho” de 2013, insurreição de caráter duvidoso que terminou em invasão ao Congresso.

Em sintonia com o clamor das ruas, a lei abraçou o populismo penal e jogou gasolina na fogueira do punitivismo messiânico. Usando conceitos jurídicos imprecisos e penas inflacionadas, a lei criminalizou o setor produtivo e contribuiu para a crise econômica que se seguiu, alimentando o monstro da antipolítica e o caos institucional.

A LAC fez dobradinha com a finada operação “lava jato” para deixar o país em ruínas. A ideia de que entidades fictícias chamadas “empresas” podem ser ferozmente punidas por atos vagamente definidos como “corrupção” tem grande participação em tudo o que aconteceu de ruim nos últimos dez anos.

Em 2013 o Brasil era a sétima economia do mundo, tinha pleno emprego, inflação sob controle, orçamento superavitário, dívida pública em queda e uma democracia estável. O país chegou a 2020 como 12ª economia do mundo, dívida pública e desemprego em dobro, indicadores sociais deteriorados, instituições de Estado desmoralizadas e democracia por um fio.

Parcelas a perder de vista

Na Procuradoria-Geral da República a soma das penalidades em acordos de leniência baseadas na LAC é de R$ 24 bilhões; na Controladoria-Geral da União (CGU), R$ 18 bilhões. Algumas multas chegaram a somas tão altas que tiveram de ser parceladas em 10 ou 20 anos. Há casos de inadimplência e questionamento judicial e administrativo.

É um modelo que não funcionou. Na experiência internacional, grandes escândalos como Alstom e Siemens resultaram em multas razoáveis, quitadas a vista. O assunto foi enterrado e as empresas voltaram para seus negócios. Por aqui multas exorbitantes foram transformadas em espetáculos de execração pública. Parcelas a perder de vista se estendem por gerações e mantém as empresas presas ao passado e a um orçamento engessado.

Quem, o quê, quanto

A Lei Anticorrupção pode até ter sido bem intencionada em sua origem, mas seu texto vago e mal estruturado abriu espaço para a manipulação e o excesso. O resultado foi uma arma de destruição econômica em massa. A LAC não consegue definir bem sua finalidade e os meios para se chegar lá. Em resumo, a lei não define satisfatoriamente:

(1) Quem deve ser punido;
(2) O que deve ser punido;
(3) De quanto deve ser a pena.

O resultado são processos mal fundamentados contra sujeitos indiretamente responsáveis por atos definidos de forma imprecisa e genérica. As penalidades excessivas resultantes desta confusão irradiam efeitos para além dos indivíduos culpados, o que viola princípios elementares dos sistemas jurídicos modernos.

O primeiro ponto é que a Lei Anticorrupção presume que personagens imaginários são responsáveis por seus atos. Empresas não são pessoas de verdade, são abstrações jurídicas incapazes de tomar decisões sozinhas. Ainda assim cumprem uma função social essencial: garantem compromissos entre agentes econômicos e o sustento de milhões de pessoas reais.

Para além do problema de identificar culpados, há o dimensionamento da pena. Critérios de base de cálculo, alíquota e fato gerador da multa produzem excesso e imprecisão. O resultado são penalidades que, em casos graves, podem comprometer o crescimento e até a sobrevivência de empresas, distribuindo e perpetuando problemas pela economia.

1) Base de cálculo

A Lei Anticorrupção estabelece que a base de cálculo da multa é o “faturamento bruto”, ou seja, a receita total da empresa com a venda de bens e serviços. O problema é que o faturamento bruto não é só da empresa, é de várias pessoas. O dinheiro que entra no caixa é destinado também a funcionários, fornecedores, bancos, ao pagamento de tributos.

Esse é um debate antigo no desenho de sistemas tributários. Ao longo das décadas, diversas reformas tentam acabar com tributos incidentes sobre faturamento, pois isso afeta fluxo de caixa das empresas, distorce cadeias produtivas e inflaciona a economia. A mudança no PIS/Cofins, que incidia sobre o faturamento até 2002, é um exemplo.

A base de cálculo mais adequada são valores líquidos, como lucro, rendas e valor agregado. A atual reforma tributária é baseada nessa ideia. A Lei Anticorrupção ignora décadas de reflexão e debate para criar uma incidência parafiscal de caráter penal cobrada sobre o faturamento. O risco é atingir quem nada tem a ver com corrupção.

2) Alíquota

O problema da base de cálculo se junta ao da alíquota. No Brasil convenciona-se que uma empresa de grande porte razoavelmente rentável tem margem de lucro entre 5% a 10%. A Lei Anticorrupção arbitrou a alíquota em 20% sobre o faturamento. Ou seja, a alíquota máxima da Lei Anticorrupção é quatro vezes maior do que se considera uma margem de lucro saudável.

Spacca

Para fazer frente a uma multa desse tamanho, a empresa precisará fazer cortes. Desmobilizar investimentos, demitir pessoas, vender ativos, atrasar pagamentos, reduzir custos. Quem vai sofrer mais provavelmente é quem está no lado mais fraco da cadeia produtiva, como empregados menos qualificados e pequenos prestadores de serviço.

Os resultados dessa conta são notórios. Acordos firmados no auge da lava jato foram submetidos a pedidos de revisão por não levar em conta a capacidade real de pagamento das empresas. Canteiros de obra foram desmobilizados, empresas fecharam ou entraram em recuperação judicial. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), 4,4 milhões de trabalhadores ficaram desempregados em consequência da lava jato.

3) Fato gerador, parte 1: tempo

Há mais. A Lei Anticorrupção fixa o fato gerador da multa no período imediatamente anterior à instauração do processo administrativo. Ou seja, é uma penalidade calculada olhando para trás, para uma realidade que não existe mais. Depois de um escândalo de corrupção, a situação econômica da empresa é outra.

Processos anticorrupção geram efeitos diretos e também indiretos. Assim que as denúncias vêm à tona, a empresa passa por crise de confiança, o que afasta parceiros e negócios. No caso da “operação lava jato”, algumas empresas tiveram uma queda de faturamento de até 90% depois que as investigações foram reveladas.

No setor público, o fenômeno é conhecido como “apagão das canetas”. Frente a um escândalo, contratos públicos são paralisados, suspensos ou cancelados. No setor privado, a imagem usada por operadores de mercado é que a empresa fica “leprosa”: credores, investidores e clientes saem correndo e a empresa fica sozinha com suas dívidas.

Fixar o fato gerador no momento anterior à denúncia cria uma penalidade irrealista e impagável, pois calcula a obrigação sobre um contexto que não existe mais. A realidade é dinâmica: a empresa é uma antes e outra depois de um escândalo. Falta à Lei Anticorrupção um parâmetro realista da capacidade de pagamento.

4) Fato gerador, parte 2: objeto

A LAC define a corrupção da forma mais vaga, imprecisa e genérica possível, ignorando todo o debate conceitual em torno do tema. Pelo texto em vigor, corrupção é qualquer ato relacionado a uma “vantagem indevida a um funcionário público”. Seja lá o que isso quer dizer.

Se uma empresa for extorquida por uma quadrilha de funcionários públicos, será considerada corrupta. Se for pressionada a fazer pagamentos “por fora”, doações eleitorais, se distribuir presentes, viagens, convites, se contratar ex-funcionários públicos como prestadores de serviço, mesmo depois da função, pode ser condenada por corrupção, nos termos da LAC.

Não há distinção se a empresa agiu de forma ativa, defensiva ou reativa, se agiu de forma dolosa (deliberada) ou culposa (não-intencional), se foi extorquida, pressionada, ou praticou ilícito eleitoral. Nada disso conta. Tudo é corrupção. A LAC gera ainda mais confusão ao abusar de expressões vazias de significado claro como “gravidade”, “efeitos negativos” e “lesão”.

Vários pesos, uma medida

O histórico de Processos Administrativos de Responsabilização (PAR) da Controladoria Geral da União (CGU) mostra a confusão que isso pode provocar. Casos de extorsão, coação, doações eleitorais, presentes e outras situações análogas vão para a vala comum da “corrupção”.

Segundo um conhecido processo da rede de restaurantes Madero, a empresa foi extorquida por uma quadrilha de funcionários do Ministério da Agricultura, que ameaçavam o funcionamento de sua fábrica no Paraná. Quando a empresa resolveu levar o caso às autoridades, foi condenada por corrupção e teve de pagar uma multa de R$ 500 mil.

A CGU respaldou o absurdo na própria omissão do texto da LAC. “A Comissão de Processo Administrativo de Responsabilização (CPAR), em estrita observância ao princípio da legalidade que rege a Administração Pública, cumpriu fielmente a estrutura de responsabilização da pessoa jurídica definida pela Lei Anticorrupção.”

Casos assim podem ser mais regra do que exceção. Vários processos julgados pela “operação lava jato” e congêneres revelam uma situação na qual revoadas de políticos e funcionários públicos cercam grandes empresas pedindo “favores” e “doações”.

O cenário remete à conhecida expressão “criar dificuldades para vender facilidades”. O que se convenciona chamar “corrupção” pode ser melhor definido como extorsão (concussão) ou ilícito regulatório eleitoral (caixa dois).

“A Camargo Corrêa defende que os pagamentos efetuados a agentes públicos não podem ser considerados ilícitos, pois sempre executou os contratos a contento e não auferiu vantagem alguma em razão deles. O que realmente teria acontecido, conforme os próprios documentos da indiciação, seriam exigências impostas pelos agentes públicos aos contratantes, verdadeira concussão”, diz processo na CGU.

FCPA

A Lei Anticorrupção no fundo presume que todas as situações em que há “vantagem indevida” são relações de suborno. No suborno há sempre um “toma lá, dá cá”, um acordo entre empresa e o funcionário público, de um lado um pagamento e de outro uma fraude, um desvio de recursos, um ato que prejudica o Estado e dá uma vantagem ilícita à empresa.

A referência internacional da Lei Anticorrupção, o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), dos Estados Unidos, faz diferente. Seu guia de aplicação é claro ao diferenciar suborno de outras situações.

A lei norte-americana faz reiterada menção ao “pagamento de facilitação”, situação no qual o funcionário público exige uma vantagem em troca de um ato em sua competência. Um pagamento “por fora” para fazer a máquina andar: liberar uma mercadoria, expedir um alvará.

Segundo o manual de aplicação do FCPA, isso não é crime. Para o legislador norte-americano, a depender da circunstância, se a empresa recusar o pagamento pode ver a máquina burocrática travar e colocar sua sobrevivência em risco. Pagamentos de facilitação, presentes, favores e doações eleitorais são todos práticas lícitas para o FCPA.

Decifra-me

A CGU condenou uma empresa de telefonia em R$ 45 milhões por distribuir ingressos de jogos da Copa do Mundo para funcionários públicos. No setor privado a prática é comum, mas a CGU entendeu ser algo inadequado no setor público. Segundo a Lei do Conflito de Interesse (Lei 12.813/2013), contratar funcionários públicos em cargos estratégicos, mesmo após o fim da função, pode ser uma vantagem indevida. Mas é corrupção?

Se a empresa procurar o poder público para esclarecer a dúvida, vai pagar caro. Pela Lei Anticorrupção, para fazer uma autodenúncia, a empresa vai precisar pagar um terço da multa, cobrada sobre seu faturamento, e “reparar integralmente o dano causado”, seja lá o que isso quer dizer. Corre o risco de sair com uma conta milionária e um carimbo de corrupta.

Inconstitucionalidade

A Lei Anticorrupção não é só mal redigida, mal estruturada e cheia de lacunas. A Lei Anticorrupção é perigosa e inconstitucional. É uma lei que viola princípios como proporcionalidade e razoabilidade, ameaça o princípio da preservação da empresa, do desenvolvimento nacional, da geração de empregos, da soberania.

Produz obrigações infundadas, excessivas e ineficazes, gerando mais custos do que benefícios. Fixa parâmetros jurídicos confusos, não consegue e mensurar os atos ilícitos, distribui penalidades inflacionadas e assume o risco de afetar pessoas que não têm nenhuma relação com a corrupção.

A Lei Anticorrupção é alvo de uma Ação Direta de Institucionalidade (ADI 5.261), na qual se questiona a responsabilidade “objetiva” da empresa, ou seja, o fato de assumir a culpa por atos de terceiros. Mas este é o menor de seus problemas. Como vimos, a Lei Anticorrupção não define com clareza seu objeto, sua finalidade e cria obrigações inflacionadas, imprecisas e destrutivas. Deve ser suspensa e reformada o quanto antes.

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