O mestre, suas ideias e visão do direito
4 de novembro de 2024, 10h20
Ao ler o denso — e, indiscutivelmente, belíssimo na linguagem — estudo de Gláucio Veiga sobre a história das ideias na Faculdade de Direito do Recife, notei que o autor, no decorrer dos sete volumes da obra, dedicou sua atenção para Pedro Autran da Matta Albuquerque, fazendo-o em dois capítulos específicos.
Baiano de nascimento, Autran, como ficou mais conhecido, seguiu para em 1821 para Paris, com o objetivo de formar-se em medicina, curso que abandonou após o primeiro ano. Ganhou a ciência jurídica, pois recebeu o grau de doutor em leis em 11 de agosto de 1827 em Aix-en-Provence.
Retornando ao Brasil, assume as designações de lente substituto e secretário do Curso Jurídico de Olinda, passando, no ano seguinte, à condição de lente proprietário. Lecionou por aproximadamente quarenta e um anos, até a sua jubilação em 1870. Ocupando-se das disciplinas Direito Natural, Direito Público Universal e Análise da Constituição do Império, ministrada no primeiro ano, quando se transferiu em 1855 para lecionar Economia Política, do quinto e último ano [1].
Reforma
O mais importante — evidenciou Gláucio Veiga [2] — é haver Autran ultrapassado as limitações de um metteur en scène, no afã de trazer à ribalta descrições doutrinárias, para, vanguardista, refletir sobre a reforma da nação brasileira. Para tanto, escolheu o jornal, a verdadeira república do pensamento, na posterior afirmação de Machado de Assis [3]. Daí os artigos em série sob a epígrafe “É de absoluta necessidade que se promova a reforma da Nação Brasileira”, publicados em 1835 no Diário de Pernambuco, edições de 9 e 17 de fevereiro, 10 e 24 de março e de 10 de maio.
De logo, constatou Autran que a reforma da nação haveria de começar pela mudança dos homens, a qual deveria ter por base a instrução [4]. Já antevia que a legislação repressiva se mostrava insuficiente para combater a corrupção dos nossos costumes, sendo a educação o caminho mais favorável para tanto, pois “em todos os tempos os homens têm sido felizes e virtuosos na razão direta das luzes que possuíam” [5].
Ao depositar na instrução o desenvolvimento nacional, Autran foi sobremodo feliz em agregar a esse processo duas observações [6]. A primeira delas é a de que o tipo de ensino há que se voltar às vantagens para a vida prática, devendo ser adequada à profissão que se pretende seguir, de modo que o ensino primário tenha noções elementares de contabilidade mercantil, bem assim de desenho, geometria prática, noções de química, física, botânica, história natural, fisiologia e higiene.
Em segundo lugar, propugnou, sem medo de ser mal interpretado, inclusive na atualidade, que a instrução fosse prestada de forma inclusiva, expandindo-se para todas as classes da sociedade [7], mesmo que no Brasil da época não existisse um estrato operário, tendo em vista o lamentável predomínio da escravatura. Esses adendos estão hoje consagrados pelo art. 205 da Constituição de 1988 [8].
Há mais
Muito mais. Noutro artigo, Gláucio Veiga [9] aponta Pedro Autran como um dos mestres de maior atividade intelectual, iniciada pela de tradutor, na qual, dentre os vários títulos vertidos para o idioma de Camões, destacou-se “Elementos de direito natural privado”, de Francisco Zeiller, o que sucedeu em 1834.
Em seguida, veio à ribalta o doutrinador, com muitos títulos dados à estampa. Um deles foi justamente manual sob o título “Elementos de direito natural privado” (1848), fazendo as vezes uma introdução ao estudo do Direito [10].
O porquê da iniciativa, conforme nota prévia à Congregação do Curso Jurídico, foi justamente o de substituir o texto de Zeiller que subsidiava as suas preleções aos alunos do primeiro ano, uma vez “a mesma doutrina se podia expor com mais clareza e facilidade para os que principiam a estudar o direito filosófico e que também convinha acrescentar-lhe o que se pudesse colher de outros escritores modernos abalizados” [11].
Redigido sem menção a dispositivos de lei, a densidade do texto lhe valeu, no exterior, o elogio como um dos doutrinadores que melhor adaptou ao Direito a obra de Kant [12]. Destacaremos alguns aspectos que consideramos os mais relevantes.
De logo, procurou o autor [13] legar uma definição do Direito, bipartindo-a sob os aspectos absoluto e relativo. Quanto ao primeiro, diz consistir na limitação da liberdade de cada um, indispensável para que uma boa convivência em sociedade. Já quanto ao segundo, traça nova divisão.
Daí que, objetivamente, deve-se observar o princípio primário do direito natural, segundo o qual “são justas todas as ações, que não repugnam ao estado social de entes igualmente livres; e são injustas, ou lesões de direito, todas as ações opostas” [14]. Por sua vez, subjetivamente considerado, na qualidade de atributo da pessoa, tem-se a faculdade de constranger para o fim de repelir uma lesão de outrem.
Impressiona o autor quando alude ao que reputa ser a lei suprema do Direito a que limita a liberdade em face de deveres jurídicos, cujo fundamento recai na razão humana, “porque sendo o homem um ente racional, e coexistindo em sociedade com outros entes da sua espécie, não pode deixar de reconhecer limites ao uso da sua liberdade externa, como condição da existência da sociedade” [15]. Trata-se do que a doutrina, atualmente, realça como bilateralidade atributiva [16].
Na tentativa de extremar o Direito da Moral, Autran [17] perfilhou distinção que se funda no fim de cada uma dessas ciências. Assim, o Direito não tem outra finalidade senão a de conciliar a liberdade exterior dos homens, com vistas à coexistência social, ordenando apenas o que é justo, enquanto que a Moral se propõe a um escopo mais sublime, aconselhando o bem [18]. Portanto, remata que esta tem objetivo mais amplo do que aquele.
Preocupou-se Autran [19] não somente com a lei positiva, mas sobretudo com a verificação da sua justiça, a partir da sua conformidade com os princípios universais do Direito. Daí — diz — o que diferencia o jurisconsulto filósofo daquele que somente possui o conhecimento das leis, resultando em favor do primeiro um maior campo de visão, proporcionado pela percepção da ciência do direito universal, da política, dos negócios públicos, da história e do direito positivo.
Prosseguindo, afirma o autor que da utilidade do direito natural, com a sua conexão com os outros ramos da ciência jurídica, deriva grande vantagem, pois, sem tal conhecimento, não se poderá ter uma opinião jurídica acertada sobre os fatos históricos, os negócios públicos ou privados, de sorte a que se possa refutar os equívocos perniciosos das doutrinas vagas, falazes e fanáticas.
Inconteste que o autor não se referiu, de forma explícita, à possibilidade de questionamento da validade da lei injusta, não se podendo deixar de perceber que, mesmo timidamente, há a compreensão favorável à necessidade do direito positivo se conformar com os princípios universais de justiça, integrantes do direito natural, os quais, não se pode negar, deram origem à formulação do controle de constitucionalidade pelos norte-americanos [20].
É certo que ainda poderíamos discorrer sobre muitos outros pontos que envolvem o conteúdo da obra, tais como a aquisição dos direitos ou os variados tipos de manifestações jurídicas que admite, aglutinadas sob a nomenclatura dos pactos em geral. Porém, tal pretensão que, não somente exorbita dos limites deste texto, conduz ainda a um esforço excessivamente descritivo, motivo por que se resolveu finalizar com o destaque de mais um aspecto inovador.
Mesmo antes da experiência jurídica se defrontar com a progressiva amplitude da regulação legal fundamental, Autran já pressentia a aceitação do que atualmente designamos por direitos da personalidade [21]. Consistiriam no que expôs como direitos originários fundamentais ou inatos, os quais não se podem perder ou renunciar, pela circunstância de terem “o seu fundamento no caráter essencial do homem” [22].
Cuidando das violações a tais direito inatos, destaca, em primeiro lugar, “a injusta restrição da livre disposição da própria pessoa, e especialmente da independência, por meio da escravidão” [23], reportando-se ainda às lesões do corpo e igualmente ao da boa reputação, que se opõe à calúnia.
Isso por uma razão inabalável:
“Todo o gênero humano tem a mesma origem: os corpos de todos são compostos da mesma matéria; nascem, crescem, e acabam do mesmo modo: as almas de todos têm as mesmas faculdades; e assim cada homem é igual a outro especificadamente, isto é, é tanto homem como outro.” [24]
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
[1] PESSO, Ariel Engel. A Faculdade de Direito do Recife no Império brasileiro, Revista Acadêmica, vol. 92, nº 02, Anno CXXIX, p. 218 e 223, dezembro de 2020. De notar que a primeira das matérias mencionadas passou por modificações na sua nomenclatura e conteúdo, sendo, antes, Direito Natural, Público, Análise da Constituição do Império, Direito das Gentes e Diplomacia (1827), Direito Natural Público e Análise da Constituição de Império (1831), denominação que perdurou até 1854. Por sua vez, Economia Política foi criada pela reforma curricular de 1854.
[2] VEIGA, José Gláucio. O pensamento de Autran em 1835. In: História das Ideias da Faculdade de Direito do Recife. Recife: Editora Universitária: UFPE, 1981. Vol. II, p. 255-259.
[3] ASSIS, Joaquim Maria Machado de. O jornal e o livro. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 48. Tratava-se de texto escrito para Manuel Antônio de Almeida, publicado inicialmente no Correio Mercantil, de 10 e 12 de janeiro de 1859.
[4] VEIGA, José Gláucio. O pensamento de Autran em 1835. In: História das Ideias da Faculdade de Direito do Recife. Recife: Editora Universitária: UFPE, 1981. Vol. II, p. 256.
[5] Apud VEIGA, José Gláucio. O pensamento de Autran em 1835. In: História das Ideias da Faculdade de Direito do Recife. Recife: Editora Universitária: UFPE, 1981. Vol. II, p. 256.
[6] VEIGA, José Gláucio. O pensamento de Autran em 1835. In: História das Ideias da Faculdade de Direito do Recife. Recife: Editora Universitária: UFPE, 1981. Vol. II, p. 256-259.
[7] A esse respeito, a constatação de Gláucio Veiga: “Também cuidado especial dedicou Autran à educação da “classe dos operários”, operários que “não participam de nenhuma vantagem social, nem herdam glória e cabedais dos seus antepassados”. Autran tem, desta forma, nítida consciência da marginalização da classe trabalhadora. “Bem vejo que minhas ideias devem desagradar aos que sabem tirar partido da ignorância da classe mais numerosa da sociedade e de cuja influência dependem os empregos de eleição”, adverte Autran. A geometria e a mecânica aplicadas às artes deverão ser matérias básicas para o ensino do operariado. Também seriam necessárias para os operários “pequenas bibliotecas públicas compostas de livros relativos aos diferentes ofícios e misteres …” (VEIGA, José Gláucio. O pensamento de Autran em 1835. In: História das Ideias da Faculdade de Direito do Recife. Recife: Editora Universitária: UFPE, 1981. Vol. II, p. 259).
[8] Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
[9] VEIGA, José Gláucio. Pedro Autran da Matta e Albuquerque. In: História das Ideias da Faculdade de Direito do Recife. Recife: Editora Universitária: UFPE, 1984. Vol. IV, p. 288-289.
[10] Pudemos ainda constatar as seguintes obras: Elementos de economia política (1844), Elementos de direito público geral e particular (1848), Novos elementos de economia política (1851), Elementos de direito público universal (1857), Elementos de direito das gentes (1857), Preleções de economia política (1860) e Filosofia do direito privado (1881). Há ainda participação na obra coletiva sobre reforma eleitoral (Reflexões sobre o sistema eleitoral, 1862).
[11] ALBUQUERQUE, Pedro Autran Matta. Elementos de direito natural privado. Nova edição mais correta. Recife: Livraria e Papelaria Parisiense, 1883, p. 3-4. Optamos desta vez por adequar as transcrições da obra à ortografia vigente.
[12] É o que constou do artigo do jurisconsulto Levi Maria Jordão (Gazeta dos Tribunais de Lisboa, 1851): “A doutrina de Kant sobre o direito teve muitos sectários, que a determinaram e aplicaram melhor a todas as partes do direito, tais foram, entre outros, Schmatz, Heidenreich, Gros, Zacharie, Krug, Haus Rotteck e o Sr. Pedro Autran da Matta Albuquerque, professor da Academia de Olinda nos seus – Elementos de direito natural privado, publicados em 1848, obra que merece não poucos elogios pela clareza com que está escrita, e pelo mérito que seu autor teve, resumindo oem tão curto espaço doutrinas tão vastas e tã odifícieis” (Advertência dos Editores. In: ALBUQUERQUE, Pedro Autran da Matta. Philosophia do direito privado. Rio de Janeiro: H. Laemmert & C., p. 1881, p. I).
[13] ALBUQUERQUE, Pedro Autran Matta. Elementos de direito natural privado. Nova edição mais correta. Recife: Livraria e Papelaria Parisiense, 1883, p. 7-8.
[14] ALBUQUERQUE, Pedro Autran Matta. Elementos de direito natural privado. Nova edição mais correta. Recife: Livraria e Papelaria Parisiense, 1883, p. 7-8.
[15] ALBUQUERQUE, Pedro Autran Matta. Elementos de direito natural privado. Nova edição mais correta. Recife: Livraria e Papelaria Parisiense, 1883, p. 10.
[16] REALE, Miguel. Filosofia do direito. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 697.
[17] ALBUQUERQUE, Pedro Autran Matta. Elementos de direito natural privado. Nova edição mais correta. Recife: Livraria e Papelaria Parisiense, 1883, p. 11-12.
[18] Esse critério, que se radica no fim, é o atualmente indicado por Ascensão, ao afirmar que a ordem moral pretende o aperfeiçoamento dos indivíduos, orientando-os para o bem, sendo que a ordem jurídica se volta aos aspectos fundamentais da convivência, criando condições que permitam a conservação da sociedade (ASCENSÃO, José de Oliveira. Introdução à ciência do Direito. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 96).
[19] ALBUQUERQUE, Pedro Autran Matta. Elementos de direito natural privado. Nova edição mais correta. Recife: Livraria e Papelaria Parisiense, 1883, p. 17-19.
[20] Eis a constatação de Bitar: “Nas suas fontes e no seu exercício, o controle judicial é de feitio jusnaturalista. Embora teoricamente se ensine não deva ser decretada a inconstitucionalidade de lei só porque injusta, opressora, ofenda a razão ou o espírito da Constituição ou os princípios fundamentais do direito, esta é a realidade, liberta da ortodoxia oficial: o controle jurisdicional se informa em uma base jusnaturalista” (BITAR, Orlando. Obras completas de Orlando Bitar – Estudos de direito constitucional e direito do trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. 1º Volume, p. 579).
[21] ALBUQUERQUE, Pedro Autran Matta. Elementos de direito natural privado. Nova edição mais correta. Recife: Livraria e Papelaria Parisiense, 1883, p. 30-39.
[22] ALBUQUERQUE, Pedro Autran Matta. Elementos de direito natural privado. Nova edição mais correta. Recife: Livraria e Papelaria Parisiense, 1883, p. 32.
[23] ALBUQUERQUE, Pedro Autran Matta. Elementos de direito natural privado. Nova edição mais correta. Recife: Livraria e Papelaria Parisiense, 1883, p. 36.
[24] ALBUQUERQUE, Pedro Autran Matta. Elementos de direito natural privado. Nova edição mais correta. Recife: Livraria e Papelaria Parisiense, 1883, p. 34.
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