Jurisdição constitucional tributária, modulação de efeitos e segurança jurídica
4 de novembro de 2024, 15h15
Antevendo o protagonismo do Supremo Tribunal Federal no trato dos conflitos entre fisco e contribuinte, torna-se imprescindível o debate sobre os instrumentos processuais que correm na esfera da jurisdição constitucional [1].
Assim, o presente artigo, conectado ao tema, terá como foco a questão da modulação dos efeitos das decisões proferidas pelo STF em processos tributários. Não sem antes abordar os aspectos que são comuns na jurisdição constitucional independentemente do mérito da demanda.
Decisão no processo constitucional
Consoante a doutrina processual constitucional, as decisões que proclamam a inconstitucionalidade de uma norma são, via de regra, dotadas de efeito ex tunc, o que significa que relações jurídicas que se formaram sob o império da lei inconstitucional são desconstituídas face ao ato decisório emanado. [2]
Não só a doutrina encaminhava sua posição nesse sentido, como o Supremo historicamente [3] empregou a chamada Teoria da Nulidade da Norma Inconstitucional, lapidada, em território brasileiro, por Rui Barbosa, reconhecendo, portanto, que a norma inconstitucional não está apta a produzir efeitos.[4] [5] Em razão disso, havia um consenso no sentido de que o ordenamento jurídico brasileiro adotava a Teoria Norte-Americana do controle de constitucionalidade.
Todavia, com a evolução legislativa do processo constitucional, a partir da Lei Federal nº 9.868/1999, no bojo do seu artigo 27 [6], e da Lei Federal nº 9.882/1999, em seu artigo 11 [7], o ordenamento passou a admitir a modulação de efeitos da decisão proferida pelo Supremo em controle concentrado de constitucionalidade.
Posteriormente, com o advento do Código de Processo Civil de 2015, a modulação dos efeitos passou a ser admitida, também, em processos difusos à luz do que dispõe § 3º do seu artigo 927 [8], na específica hipótese de alteração da jurisprudência dos Tribunais Superiores ou de julgamento de casos repetitivos [9].
Com isto, o sistema jurídico brasileiro passou a viabilizar o emprego da Teoria da Anulabilidade das Normas Inconstitucionais, sustentada na Teoria Austro-Germânica do controle de constitucionalidade, que faculta aos julgadores assegurar a preservação dos efeitos dos atos praticados até a declaração da inconstitucionalidade. Por outras palavras, o sistema passou a permitir a atribuição de efeitos ex nunc à decisão que declara a inconstitucionalidade de uma norma.
Entretanto, para que a técnica de modulação dos efeitos se materialize, constata-se que o aparato legislativo e jurisprudencial determina a observância de formalidades definidas a partir do conteúdo da decisão editada pela Corte Suprema, divisando-as assim: (1) declaração de inconstitucionalidade; (2) declaração de constitucionalidade; ou (3) alteração de jurisprudência dominante.
Modulação de efeitos e seus requisitos casuísticos
Neste tocante, em se tratando da declaração da inconstitucionalidade, consoante o teor do referido artigo 27 da Lei Federal nº 9.868/1999 e artigo 11 da Lei Federal nº 9.882/1999, é dever do Supremo (1) demonstrar que a modulação se justifica para preservação da segurança jurídica ou de excepcional interesse social e (2) aprovar a modulação pelo quórum qualificado de 2/3 de seus membros.
Por sua vez, ainda que ausente previsão legislativa expressa, consoante orientação firmada na jurisprudência do STF [10], quando a modulação se destina às decisões que declaram a constitucionalidade de ato normativo, torna-se imprescindível a aprovação por maioria absoluta dos votos dos membros da Corte Suprema, prescindindo o quórum qualificado [11].
No vértice do Código de Processo Civil de 2015, onde a modulação ganha aplicabilidade perante decisões que alteram a jurisprudência dominante, o indigitado instrumento processual, pela literalidade do § 3º do artigo 927, prescreve a necessidade de configuração do interesse social e da segurança jurídica como justificativa para a modulação.
Onde a modulação de efeitos encontra a segurança jurídica
Roque Antonio Carrazza leciona que o primado da Segurança Jurídica se encontra associado “aos ideais de determinação, de estabilidade e de previsibilidade do Direito, em todas as suas dimensões” [12], isto porque “uma das funções mais relevantes do Direito é ‘conferir certeza à incerteza das relações sociais’”, isto é, a “‘imputação de efeitos a determinados fatos”, de maneira que “cada pessoa, graças ao princípio da segurança jurídica, tem elementos para conhecer previamente o alcance e, de modo especial, o resultado de seus atos” [13].
Ou seja, determinação, estabilidade e previsibilidade, consistem nos pilares centrais da Segurança Jurídica, a qual alicerça a confiabilidade no Direito.
Por sua vez, olhando para o direito tributário em conflito, Rodrigo Dalla Pria expõe que a atividade jurisdicional tem a finalidade precípua de tutelar os direitos subjetivos dos sujeitos da relação jurídico-tributário almejando, per si, a preservação da Segurança Jurídica [14].
À vista disso, pensamos que a segurança jurídica não suporta a retroatividade dos efeitos jurídicos como faz a Teoria da Nulidade do Ato Inconstitucional, posto que provoca prejuízos à confiabilidade no ordenamento e a previsibilidade da reação do sistema por parte dos indivíduos. A respeito, Teresa Arruda Alvim expõe que “a retroatividade faz com que o indivíduo atue com base na norma vigente ao tempo de sua ação, no entanto, tenha sua conduta valorada com base noutra norma, inexistente e incapaz de consideração no momento em que foi adotada.” [15]
Por conseguinte, para salvaguardar as expectativas daqueles que confiam e pautam suas condutas e negócios segundo os parâmetros do ordenamento, contexto em que incondicionalmente está inserida a jurisprudência [16], é necessária a adoção da técnica da modulação de efeitos para afastar o emprego do tradicional efeito ex tunc e preservar o ato jurídico consolidado ao tempo da vigência da norma posteriormente hostilizada.
No julgamento dos embargos de declaração opostos contra a decisão proferida no recurso extraordinário nº 574.706, a ministra Cármen Lúcia manifestou expressamente que “a boa-fé, a segurança jurídica são princípios fundamentais subjacentes à prospecção dos efeitos das decisões judiciais modificadoras da jurisprudência até então dominante”, motivo esse, em nosso sentir, segundo o qual se torna imprescindível a modulação dos efeitos.
Enfim, a modulação dos efeitos é instrumento eficiente para resguardar os pilares da Segurança Jurídica, posto que define o momento a partir do qual o novo entendimento jurisdicional, seja pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade de norma, passará a produzir seus efeitos, gerando verdadeira expectativa sobre a reação do ordenamento jurídico perante determinadas condutas.
Desta forma, a modulação dos efeitos das decisões em controle de constitucionalidade, pautadas pelos critérios normativos adrede referidos, deve ser admitida como instrumento garantidor da estabilidade e da Segurança Jurídica no Sistema Tributário.
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[1] Remete-se o leitor ou leitora para leitura complementar do conteúdo do presente artigo a outros dois também desta coluna:
https://www.conjur.com.br/2024-out-27/modulacao-de-efeitos-raciocinio-fingido-e-metodo/
[2] MITIDIERO, Daniel. Processo constitucional: do Controle ao Processo, dos Modelos ao Sistema. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 65.
[3] Os seguintes julgados do Supremo Tribunal Federal são exemplo a respeito de sua posição sobre o efeito da decisão de inconstitucionalidade: ADI 652-QO, Relator Ministro Celso de Mello, julgamento em 02/04/1992, DJ de 02/04/1993; ADI 2.994-ED, Relatora Ministra Ellen Gracie, julgamento em 31/05/2006, DJ de 04/08/2006; e ADI 2.728-ED, Relator Ministro Marco Aurélio, julgamento em 19/10/2006, DJ de 05/10/2007.
[4] BARBOSA, Rui. Atos inconstitucionais. 3ª ed. Campinas: Russel, 2009.
[5] RIBEIRO, Diego Diniz; DELIGNE, Maysa de Sá Pittondo. A Modulação de Efeitos em Matéria Tributária e sua Realização em Favor da Fazenda Pública. In.: Processo Tributário Analítico Volume IV; coordenação Juliana Furtado Costa Araujo, Paulo César Conrado. 1ª ed. São Paulo: Noeses, 2019. p. 110.
[6] Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
[7] Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
[8] Art. 927. […]
- 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
[9] Merece destaque a distinção a respeito da modulação de efeitos da chamada superação para frente de precedentes – a qual melhor se adequa à normatização promovida pelo CPC/2015. Para parte da doutrina processualista, enquanto a modulação ataca a decisão, ato que resolve a contenda judicial em concreto ou abstrato, a superação para frente ataca o precedente, norma que integra o ordenamento e se destina a solução de casos diversos. – a respeito: MITIDIERO, Daniel. In Superação para Frente e Modulação de Efeitos – Precedentes e Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. Livro eletrônico.
[10] A exemplo, destaca-se a manifestação presente nos Embargos de Declaração na Ação Direto de Inconstitucionalidade n. 3.756, de relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto, julgada em 24/10/2007, DJ de 23/11/2007, quando o Ministro Relator pontuou que “ao julgar improcedente a ADI 3.756, este STF reafirmou a validade constitucional dos dispositivos ali impugnados. Daí a razão deste STF não haver fixado prazo para o cumprimento da decisão de mérito da presente ADI. É que esta nossa Corte Suprema de Justiça não declarou inconstitucional o ato adversado. Ao contrário, assentou a constitucionalidade do dispositivo, ao julgar a ADI improcedente. Dito isso, eu pergunto: o que sucede quando o Supremo Tribunal Federal julga, em sede de ADI, a improcedência da ação? A eficácia no tempo é retroativa, não há que cogitar de modulação. […] Como se sabe, a modulação de efeito tem por pressuposto lógico a existência de alternativas, possibilidades, escolhas, opções; opta-se entre modular ou não, entre escolher uma data ou não. Aqui, não há o que fazer. A meu sentir, é aplicar mesmo o artigo 23 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que, em si, modula os fatos, ao dizer que a adaptação aos seus dizeres se fará em dois quadrimestres. Observadas, por certo, as demais determinações da Lei Complementar n. 101/00, mormente a Seção IV do Capítulo II”.
[11] Esta posição emerge dos debates travados no julgamento do Recurso Extraordinário n. 723.651/PR, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, julgado em 04/02/2016, DJ de 05/08/2016. Na oportunidade, o Ministro Luís Roberto Barroso declarou que, “no caso do art. 27, há uma declaração de inconstitucionalidade. Portanto, não dar efeitos retroativos é uma situação excepcional, porque, tendo declarado a inconstitucionalidade, o Tribunal vai admitir que o ato inconstitucional produza efeitos válidos; é tão excepcional que o art. 27 exige o quórum de 2/3. Porém, quando a modulação se dê fora de situações de declaração de inconstitucionalidade, eu acho que aplica-se a regra da maioria absoluta”; e no mesmo sentido, o Ministro Celso de Mello afirmou “entendo que, fora das hipóteses de declaração de inconstitucionalidade, a eficácia prospectiva poderá ser determinada por maioria absoluta”.
[12] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 34ª ed. São Paulo: Editora JusPodivm, 2023, p. 367.
[13] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 29ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p. 470.
[14] DALLA PRIA, Rodrigo. Direito Processual Tributário. 3ª ed. São Paulo: Editora Noeses, 2024, p. 615.
[15] ALVIM, Teresa Arruda. Modulação: na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes. Livro eletrônico. 2ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
[16] No julgamento do Recurso Extraordinário n. 723.651/PR, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, julgado em 04/02/2016, DJ de 05/08/2016, o Ministro Luís Roberto Barroso expôs, em momento inicial à fundamentação da técnica da modulação de efeitos, que, “embora seja absolutamente legítima a mudança de opinião do Tribunal sempre que considerar constitucionalmente mais acertado, é preciso resguardar as expectativas daqueles que confiaram e, portanto, pautaram as suas vidas e os seus negócios segundo os parâmetros previamente estabelecidos pelas decisões do Supremo. Em tais situações, tenho defendido que a mudança da jurisprudência da Corte equivale verdadeiramente à criação de direito novo e, por tal razão, não pode operar efeitos retroativos. […] Assim, em casos como o que se apresenta para julgamento, onde ocorreu uma mudança de uma interpretação consolidada da Corte, a solução constitucionalmente adequada é a modulação dos efeitos da decisão, como decorrência direta da aplicação dos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança, da irretroatividade tributária e da boa-fé”.
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