Opinião

Desapropriação por utilidade pública e instrumentos de acesso à superfície no setor minerário

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4 de novembro de 2024, 13h21

A desapropriação por utilidade pública é o procedimento pelo qual o Estado, por meio de ato administrativo, retira compulsoriamente um bem particular para atender ao interesse público. A previsão legal dessa modalidade está no Decreto-Lei nº 3.365/1941, que regula os casos em que o poder público pode realizar desapropriações por motivos de utilidade pública, necessidade pública e interesse social.

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A desapropriação por utilidade pública ocorre em regra em situações em que o imóvel ou propriedade são necessários para obras de infraestrutura, como construção de estradas, hospitais, escolas ou outros equipamentos urbanos que beneficiem a coletividade ou, ainda, atividades de interesse público.

Segundo o Decreto-Lei nº 3.365/1941, artigo 2º, são consideradas de utilidade pública ações como: abertura e melhoramento de vias públicas, construção de edifícios públicos, ampliação de serviços de saúde e educação, entre outros. Para ser efetivada, a desapropriação depende de uma declaração formal de utilidade pública e deve garantir uma indenização justa e prévia ao proprietário.

Justa indenização e desapropriação de imóvel em disputa

O Decreto-Lei nº 3.365/41 também estabelece regras específicas para as situações de prévia imissão na posse do imóvel pelo expropriante e as soluções postas pelo legislador para sanar a divergência entre o valor ofertado inicialmente pelo expropriante do então fixado na sentença, que pode ser considerado a chamada justa indenização. Nesses casos, conforme dispõe o artigo 15-A e seu parágrafo 1º, se comprovados danos relativos a lucros cessantes em favor do expropriado, aplicam-se juros compensatórios de até 6% ao ano sobre a diferença entre os valores, contados desde a data da imissão na posse pelo expropriante.

Ocorre que, não raras vezes, o Judiciário se depara com ações que pleiteiam a afetação de imóveis cuja titularidade é objeto de disputas ou até mesmo desconhecida. Justamente em razão disso, o decreto-lei dispõe no artigo 34 e seu parágrafo único que o levantamento dos valores somente será deferido mediante prova de propriedade e, em caso de dúvidas sobre o domínio, o preço ficará em depósito até que os interessados se utilizem da ação própria para disputá-lo.

Essa disposição, inclusive, vai ao encontro do que prevê o artigo 20 do referido decreto-lei, uma vez que é expresso ao delimitar o contraditório a questões relativas ao próprio procedimento judicial ou ao preço.

Tais considerações apenas reforçam que o procedimento previsto pelo Decreto-Lei nº 3.365/41 visa atender às necessidades urgentes do poder público. Por sua relevância, o procedimento é especial e assim deve ser tratado pelo Judiciário, assegurando não apenas os direitos e deveres das partes, mas, sobretudo, a concretização dos interesses coletivos envolvidos.

Caso concreto e REsp 1.645.687-RJ

Essa abordagem permite equilibrar a efetividade das ações governamentais com a proteção dos direitos dos proprietários, no entanto, a aplicação prática desses princípios nem sempre ocorre de maneira eficaz. O caso em destaque, como se verá, revela uma realidade completamente invertida do procedimento.

Isso porque, o julgamento em questão envolve três ações expropriatórias ajuizadas nos anos 70, e essas ações foram unificadas devido à disputa sobre a titularidade da área entre os réus, o que paralisou o processo por quase 40 anos. Mesmo diante de diversas tentativas do expropriante de realizar perícia e ajustar a indenização, apenas em 2011 foi promovida uma avaliação judicial inicial de R$ 36,29 milhões, reduzida posteriormente para R$ 27,39 milhões. No entanto, o valor inicial ofertado pela expropriante era de apenas R$ 30.108,75, uma diferença drástica em relação ao laudo final.

Os juízos das instâncias ordinárias, além de desconsiderarem por completo o período de paralisação indevida do processo, fixaram os juros compensatórios de 12% ao ano desde 1977, aplicados sobre a diferença entre o valor da oferta inicial e o laudo final de R$ 27,39 milhões. Essa combinação levou à fixação de uma indenização total de R$ 228,23 milhões, levantando questões cruciais sobre a aplicação das disposições legais.

O expropriante seguiu então com a interposição de recursos aos tribunais superiores e, de forma bastante resumida, pleiteou a atualização da oferta e pela limitação dos juros a partir de 2006, quando o processo retomou o curso regular.

Em resposta a essa situação complexa, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.645.687-RJ, proveu parcialmente o recurso do expropriante para reconhecer que os juros compensatórios só devem incidir a partir de 2006, quando uma decisão resolveu a titularidade dos imóveis. De acordo com o ministro Francisco Falcão, relator, os juros compensatórios visam indenizar a perda de rendimento que o capital poderia gerar para o proprietário e, por isso, somente devem ser aplicados a partir do momento em que a titularidade dos imóveis foi esclarecida.

O relator observou ainda que a taxa dos juros compensatórios também precisa ser ajustada em virtude do julgamento da ADI 2.332 [1] e ressaltou que a 1ª Seção, em um julgamento sob o rito dos repetitivos, estabeleceu que os honorários advocatícios em casos de desapropriação devem observar os limites de 0,5% a 5%, previstos no parágrafo 1º do artigo 27 do Decreto-Lei nº 3.365/41.

Spacca

A decisão representa um marco significativo no tratamento do procedimento estipulado pelo Decreto-Lei nº 3.365/41, refletindo um compromisso com a justiça e a equidade nas relações entre expropriantes e expropriados. Ao reconhecer que os juros compensatórios devem ser aplicados a partir de 2006, o STJ não apenas corrige uma distorção que perdurou por décadas, mas também reafirma a importância de se respeitar o devido processo legal e, consequentemente, fortalece a segurança jurídica.

Código de Mineração e procedimentos de acesso à superfície

Sobre o setor minerário, relembra-se que muitas das disposições contidas no Decreto-Lei nº 3.365/41 se aplicam aos procedimentos de acesso à superfície previstos no Código de Mineração (Decreto-Lei nº 227/67). Isso ocorre porque, além de a jurisprudência já ter consolidado o entendimento de que o próprio Código de Mineração, em seu artigo 60, §2º, faz remissão à referida norma que dispõe sobre a desapropriação, este mesmo decreto-lei estabelece, em seu artigo 5º, que a mineração é uma atividade de utilidade pública [2].

Em caso de necessidade de acesso à superfície de terceiro para a execução da pesquisa, lavra ou atividades de apoio ao empreendimento minerário, o Código de Mineração estabelece, em seu artigo 27, os critérios e parâmetros para a fixação da indenização, dentre os quais destacamos a renda, cuja incidência também se inicia a partir da imissão prévia na posse da área pelo minerador. Vejamos:

“Art. 27. O titular de autorização de pesquisa poderá realizar os trabalhos respectivos, e também as obras e serviços auxiliares necessários, em terrenos de domínio público ou particular, abrangidos pelas áreas a pesquisar, desde que pague aos respectivos proprietários ou posseiros uma renda pela ocupação dos terrenos e uma indenização pelos danos e prejuízos que possam ser causados pelos trabalhos de pesquisa, observadas as seguintes regras:

I – A renda não poderá exceder ao montante do rendimento líquido máximo da propriedade na extensão da área a ser realmente ocupada;”

Como se observa do trecho da norma minerária destacada, a renda em muito se assemelha aos juros compensatórios que foram objeto de análise e ponderação pelo STJ, uma vez que seu objetivo é compensar o proprietário da superfície pela exploração de suas terras, assegurando uma remuneração justa pelos “lucros cessantes” que poderiam ser gerados a partir da utilização de sua propriedade então afetada pela atividade minerária.

Ocorre que, nos mesmos moldes do caso em destaque julgado pelo STJ, é muito comum que o minerador enfrente situações em que a necessidade de acesso a um imóvel de terceiro se torna premente, mas a titularidade desse bem não está claramente definida. Esse cenário, como visto, gera incertezas e complicações, já que a falta de uma delimitação precisa dos direitos de posse e/ou propriedade pode, na hipótese de que o procedimento não seja devidamente observado pelo judiciário, atrasar ou até inviabilizar a exploração mineral, que é de grande interesse nacional.

Conforme o já rememorado, as disposições contidas no Decreto-Lei nº 3.365/41 se aplicam aos procedimentos de acesso à superfície disponíveis ao setor minerário e, nos termos do que prevê o seu art. 20, estes procedimentos também não comportam discussão a respeito do domínio, já que o depósito relativo ao valor indenizatório somente será levantado por aquele que, em ação própria, seja declarado como o titular do direito.

Ou seja, eventuais imbróglios envolvendo a propriedade ou posse do imóvel afetado por uma servidão minerária, por exemplo, não impedem o prosseguimento de ações que visem destinar o imóvel particular a uma atividade de interesse público. Isso é especialmente relevante para a atividade minerária, que, amparada pelos princípios do interesse nacional, da utilidade pública e da rigidez locacional, deve prevalecer sobre questões individuais e estritamente imobiliárias.

Essa reflexão é essencial para reforçar a necessidade de uniformizar o entendimento dos procedimentos de acesso à superfície previstos na legislação minerária, assegurando um tratamento equitativo a uma atividade de interesse coletivo. A aplicação dos mesmos princípios de justiça e equidade que orientam as decisões do STJ nas desapropriações deve nortear essa uniformidade, cuja relevância se intensifica no contexto atual do setor de mineração brasileiro.

Por um lado, a transição energética global impulsiona a demanda por minerais estratégicos; por outro lado, o Brasil, com suas vastas reservas, destaca-se como fornecedor potencial, devido à sua complexa geologia e reservas significativas.

Ocorre, no entanto, que para atender à demanda por minerais críticos, o setor minerário depende de altos investimentos. Por isso, é crucial estabelecer uma segurança jurídica sólida para os procedimentos de acesso à superfície de terceiros previstos pelo Código de Mineração, essenciais para a implementação de grandes projetos de mineração e que, atualmente, são as únicas alternativas para o setor quando não há acordo com superficiários.

Frise-se que apesar de o Novo Regulamento do Código de Mineração (Decreto nº 9.406/18) prever, em seu art. 41, que a Agência Nacional de Mineração (ANM) pode expedir Declaração de Utilidade Pública (DUP), esse instrumento ainda carece de regulamentação específica, o que limita sua aplicação prática e reforça a necessidade de medidas claras e eficazes para atrair e proteger investimentos.

Pelo aqui exposto, destarte, a decisão do Superior Tribunal de Justiça representa, então, um marco decisivo, e também acena para as discussões semelhantes no setor mineral, notadamente quando o empreendedor necessita ingressar em determinado imóvel cuja propriedade ou posse é indefinida ou litigiosa.

Assim, a decisão em tela, ao nosso ver, reafirma o compromisso com a justiça e segurança jurídica nas relações expropriatórias. E justamente pelos motivos expostos, no contexto do setor minerário brasileiro essa interpretação é especialmente relevante, pois, ao se posicionar como líder potencial na oferta de minerais críticos, torna-se vital assegurar um tratamento jurídico sólido e uniforme para o acesso à superfície de maneira ágil e segura, sobretudo frente às necessidades de interesse coletivo, como a transição energética.

 


[1] Na referida decisão, o STF confirmou a constitucionalidade dos parágrafos 1º e 2º do artigo 15-A do Decreto-Lei nº 3.365/41, que estipulam um percentual de 6% ao ano para a remuneração do proprietário em decorrência da imissão provisória do ente público na posse de seu bem.

[2] Art. 5º – Consideram-se casos de utilidade pública:

(…) f) o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica;

Autores

  • é pós-graduanda em Direito da Mineração, Ambiental e ESG (MBA) pelo Instituto Minere e pós-graduada em Direito da Mineração pelo Cedin, pós-Graduada em Direito Processual Civil pela Escola Brasileira de Direito (Ebradi), graduada em Direito pela Dom Helder Escola de Direito e advogada sênior da Área de Contencioso Cível, Ambiental e Minerário e Arbitragem no escritório Azevedo Sette Advogados.

  • é mestre em Direito Civil pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Fumec. Pós-graduado em Direito Civil pela PUC-MG. Pós-graduado em Gestão Jurídica de Contencioso pelo Ibmec/MG. Graduado em Direito na Universidade Fumec. Sócio e advogado da área de Contencioso Cível, Ambiental e Minerário e Arbitragem no escritório Azevedo Sette Advogados.

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