Ronald Dworkin e a inconstitucionalidade da anistia do 8 de Janeiro
2 de novembro de 2024, 8h00
As palavras anistia e amnésia tem a mesma origem e significados parecidos, do grego antigo amnestía (ἀμνηστία), que significa literalmente “esquecimento”. Ela é formada pela junção de a- (prefixo de negação) e mnēstía, que está relacionada à memória. E é justamente de memória que precisamos, precisamos lembrar o que houve em 8 de janeiro de 2023 e não esquecer.
No fatídico dia, uma semana após a posse do novo governo, todo Brasil assistiu perplexo quando uma multidão se reuniu em frente ao comando militar em Brasília para então partir e atacar os prédios dos 3 poderes, símbolos de nossa democracia. A pergunta que fica: já nos esquecemos disso? Já nos esquecemos que ameaças de golpes semanais tomavam as manchetes de jornais? Já nos esquecemos das patuscadas de Mauro Cid e Jair Bolsonaro? Já nos esquecemos o que uma ditadura representa?
Movidos por anos de ataques às instituições democráticas, os manifestantes do 8 de Janeiro clamavam, em cartazes e gritos, por um golpe militar que reconduzisse Bolsonaro à presidência. Apesar das tentativas, a cúpula militar não aderiu, influenciada por diversos fatores, incluindo pressões internacionais, como as realizadas pela Casa Branca (veja aqui).
Em parceria com Henrique Abel, explorei detalhadamente esses ataques e como essa lógica neopopulista se concretizou em países como Hungria e Venezuela em um artigo para a Revista Tlatelolco da Universidade Nacional do México (veja aqui).
É essencial não só lembrarmos, mas não perdermos de vista as consequências jurídicas proporcionais a esses atos. Propostas de anistia têm surgido, mas, de antemão é necessário afirmar: todas são inconstitucionais. O esquecimento nesse caso não só não é compatível com nossos valores democráticos como é ilegal diante de nossa constituição e seus valores. Para explicar essa conclusão, algumas considerações iniciais são necessárias, especialmente à luz dos questionamentos levantados por apoiadores do ex-presidente. Abaixo, respondo às dúvidas mais comuns, tratando da última — a anistia — com o auxílio do filósofo jurídico Ronald Dworkin.
1. As pessoas envolvidas no 8 de Janeiro estão presas por quê? Quais crimes elas cometeram?
A Lei nº 14.197, de 2021, visa proteger a democracia, prevendo crimes contra as instituições democráticas em resposta aos ataques crescentes ao regime brasileiro. Os crimes cometidos no episódio do 8 de Janeiro incluem:
Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito (artigo 359-L do Código Penal) – Pena de 4 a 8 anos.
Golpe de Estado (artigo 359-M do Código Penal) – Pena de 4 a 12 anos.
Danos ao Patrimônio Público (artigo. 163, Parágrafo Único, Inciso III, do Código Penal) – Pena de 6 meses a 3 anos.
Associação Criminosa (artigo 288, Parágrafo Único, do Código Penal) – Pena de 1 a 3 anos.
Esses crimes estão claramente previstos no Código Penal, sem necessidade de “interpretações extensivas.” Adicionalmente, há provas documentadas de violência contra policiais e autoridades, e não resta dúvida de que, caso algum dos ministros da Suprema Corte estivesse presente, a situação poderia ter sido ainda mais grave.
2. Essas penas não são muito graves para mero vandalismo?
Chamar os atos de “vandalismo” é uma forma de vandalismo intelectual e moral. Basta observar os artigos citados e as provas registradas para ver que a intenção dos envolvidos ia muito além da mera destruição de patrimônio. Foram atos contra o próprio Estado de Direito.
3. Anistia é uma solução legal viável?
Projetos de lei propõem anistiar os envolvidos nas manifestações de 8 de Janeiro, mas tal perdão coletivo não é compatível com a ordem democrática. Um indulto pode ser útil em momentos de pacificação social, mas, neste caso, ele representa um perigoso sinal de que infratores da ordem constitucional podem ser facilmente perdoados. O ato de anistiar quem tentou atacar a democracia brasileira no dia 8 de janeiro de 2023 violaria princípios constitucionais como a separação de poderes e a impessoalidade, fundamentais à preservação da democracia.
4. Mas não está escrito em lugar nenhum que anistia é inconstitucional!
A Constituição de 1988 nasceu após um longo período de ditadura, estabelecendo cláusulas pétreas e princípios inegociáveis que não podem ser alterados, como a democracia e os direitos fundamentais — o que o professor Lenio Streck chama de “quarto do pânico” da democracia. Emendas constitucionais que violem essas cláusulas devem ser declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, assegurando a supremacia constitucional. Quando uma lei ou emenda é questionada por possível inconstitucionalidade, o STF no Brasil tem a obrigação de analisar essa norma à luz da Constituição. Esse papel não é opcional; o STF tem o dever de agir.
Em uma situação normal, o processo de controle de constitucionalidade pode ocorrer de duas formas:
1. Preventivo – ocorre antes que a norma seja aplicada. Esse controle, no Brasil, é feito apenas de forma incidental pelo Legislativo ou Executivo, não diretamente pelo Judiciário, sendo, portanto, um controle político. É o papel da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, que atualmente quase não cumpre essa função, composta em sua maioria por pessoas que pouco entendem de Constituição e presidida por uma figura de fortes tendências antidemocráticas. Em uma situação normal, uma norma como essa jamais passaria por esse controle.
2. Repressivo – acontece depois que a norma já está em vigor e é contestada no STF. Esse controle pode ser feito de forma:
-
- Difusa: qualquer juiz ou tribunal pode declarar a inconstitucionalidade de uma norma em um caso concreto, mas sua decisão afeta apenas as partes envolvidas.
- Concentrada: o STF julga a constitucionalidade de forma abstrata, a pedido de autoridades ou instituições específicas (como o presidente, governadores, procurador-geral da República, entre outros), com efeito vinculante para todos.
No caso de uma emenda que viole cláusulas pétreas, a corte deve ser ainda mais rigorosa, pois o texto constitucional proíbe alterações que afetem esses princípios fundamentais. Caso o STF conclua pela inconstitucionalidade (e certamente concluirá), a norma é declarada nula e sem efeito, sendo retirada do ordenamento jurídico, preservando a supremacia da Constituição e a estabilidade do sistema democrático.
Dworkin explica por que a anistia é inconstitucional:
Há muito tempo o professor Lenio Streck denuncia os diversos problemas do nosso ensino jurídico. Suas críticas culminaram no belíssimo livro Ensino jurídico e(m) crise, minha principal aposta para ganhador do Prêmio Jabuti em sua categoria.
Em 2024, ainda se discute o Direito como um conceito criterial de mera correspondência, quando desde antes de 1889 (me refiro aqui ao caso Riggs vs. Palmer, interpretado por Dworkin) se julga com base em princípios. Dworkin via o Direito como um conceito interpretativo, que deve ser visto com coerência e integridade. Integridade quanto a seus sentidos e coerência com o que já foi decidido. O Direito deve ser visto como um corpo único e não como um conjunto de partes incoerentes e desconexas. Os sentidos sobre os quais toda a Constituição foi construída não permitem que “esqueçamos” o que aconteceu em 8 de Janeiro. Nossos princípios constitucionais não apenas não permitem como repudiam tal esquecimento.
O Supremo, de fato, não pode fazer um julgamento de conveniência, algo como: “discordo deste ato legislativo, então o derrubo”. Pessoas desacostumadas com a melhor doutrina constitucional, acreditam que é isso que a Suprema Corte faz quando decide pela inconstitucionalidade de atos do Legislativo. Mas não é assim que funciona. Qualquer um que entenda como funcionam as regras — seja da cortesia, do xadrez ou, especialmente, da Constituição Federal — sabe que não é assim que se opera.
Alguns defendem que, por não haver uma vedação expressa para a anistia em questão, essa anistia não seria inconstitucional. Essa tese, por si só, é equivocada e revela uma compreensão tosca do que é o Direito. Mesmo o positivismo jurídico inclusivo resolve essa questão, pois temos princípios expressos que garantem a separação dos poderes, a impessoalidade e a igualdade, e por simples silogismo, a questão está resolvida. Mas não se trata só disso: a Constituição carrega uma enorme carga simbólica e de justiça.
Quando Ulysses Guimarães, em sua promulgação, disse: “Temos ódio e nojo de ditadura”, isso já deveria ter ficado claro. Após mais de 30 anos de ditadura, a promulgação de uma Constituição cidadã deveria ter deixado essa repulsa clara. Aqueles que sustentam a tese de que o esquecimento de uma tentativa de golpe é constitucional não entenderam nada, nem sequer a visão criterial do Direito.
Dworkin deixa claro que o Direito (especialmente nossa Constituição) não é composto apenas de normas expressas completas, mas de um conjunto de princípios. Qualquer tentativa de anistia como a que se propõe é amplamente incompatível com princípios constitucionais expressos e fundamentais, como a separação de poderes, a impessoalidade e a igualdade. Este é um debate que se encontra na fronteira entre o político e o jurídico, mas, como sustentava Dworkin, para o Direito existe apenas uma resposta correta e quem compreende a Constituição sabe: anistia nesses termos é inconstitucional e contraria a própria essência da Constituição de 1988, que surgiu após um longo período de ditadura e violência, como a que aqueles que invadiram a sede dos Três Poderes queriam perpetuar.
Esquecer fatos graves que ameaçaram nossa democracia não é compatível com nossos valores constitucionais, e, sob nenhuma perspectiva, isso pode ser realizado dentro dos trâmites da legalidade. Que jamais nos esqueçamos do que ocorreu em 8 de Janeiro.
Referências:
DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press, 1986.
STRECK, Lenio Luiz. Ensino jurídico e(m) crise. São Paulo : Contracorrente, 2024.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!