O que o caso Unicredit Bank vs RusChemAlliance ensina sobre Mariana e as cortes britânicas?
2 de novembro de 2024, 6h32
Conforme se aproximava o julgamento de Município de Mariana & others v BHP Group (UK) Ltd & others pela Technology and Construction Court (Corte de Tecnologia e Construção) de Londres, iniciado no último dia 21 de outubro, se intensificaram as discussões quanto ao mercado de financiamento de litígios e suas consequências para o ambiente jurídico brasileiro.
Não são poucos os questionamentos sobre a forma de operacionalização dos financiamentos, quem seriam as partes por trás de tais investimentos e qual seria a forma de remuneração das entidades financiadoras, levantando-se a um debate sobre a legitimidade da prática e necessidade de regulamentação — até hoje inexistente no Brasil — do instituto.
A despeito de o financiamento de litígios já existir há anos em diversas partes do mundo, a partir da modernização e flexibilização dos conceitos de champerty e maintenance, o debate começou a ganhar corpo no Brasil, como não poderia deixar de ser, devido à notoriedade de um caso inteiramente construído a partir de recursos de terceiros.
E umbilicalmente ligado à discussão sobre a legitimidade do financiamento de disputas, iniciou-se um segundo debate, que não deveria guardar dependência alguma com a questão do financiamento per se, qual seja a propositura de ações judiciais em cortes europeias, mas cujos fatos ensejadores das demandas se deram no Brasil, entre partes juridicamente tidas como brasileiras.
Foi partindo-se da premissa de que o financiamento de litígios no Brasil só existe para casos a serem litigados em cortes internacionais e da correlação estabelecida entre financiamento de litígios e Município de Mariana, que vieram à tona também as críticas às cortes inglesas, argumentando-se que a assunção de jurisdição para dirimir certas causas se trataria de um processo de neocolonização, ou ainda que a justiça inglesa agora teria a pretensão de salvar o planeta.
Houve quem disse que as cortes de Londres se apresentam como a metrópole para julgar a colônia, inculta e incapaz, o que seria uma evidência de neocolonialismo jurídico, ou ainda que a Justiça brasileira estaria no banco dos réus.
Não se buscará tratar neste artigo sobre as particularidades e questionamentos atinentes ao financiamento de disputas, tampouco discutir se há de fato uma postura neocolonialista por parte das cortes inglesas.
Anti-suit injunctions: definição e condições para deferimento
Como forma de buscar entender a ratio por trás do processo jurisdicional do Judiciário inglês, propõe-se refletir acerca do recentíssimo precedente proferido pela Suprema Corte do Reino Unido em Unicredit Bank GmbH v RusChemAlliance LLC [1], em que se discutiu o deferimento de medida denominada anti-suit injunction (ASI), pelas cortes inglesas, em benefício de cláusula arbitral pactuada entre RusChemAlliance (RCA), companhia russa, e Unicredit Bank GmbH, um banco alemão com ativos na Rússia, mas cuja sede de eventual disputa seria Paris.
De início, cumpre esclarecer do que se tratam as chamadas anti-suit injunctions (ASI). As ASI nada mais são do que medidas ajuizadas em território inglês, contra partes que iniciam uma demanda judicial em jurisdição diversa daquela que, pelas circunstâncias fáticas do caso, estaria mais conectada com a disputa.
A avaliação pelas cortes inglesas leva em conta fatores como testemunhas, provas, principal local de performance de negócios das partes, lei aplicável, dentre outros.
Ao se depararem com pleitos relativos a ASIs, as cortes inglesas deveriam aferir se as duas condições para deferimento da medida estariam cumpridas, quais sejam (1) se as cortes inglesas são o “fórum natural” para dirimir a disputa, e (2) se os interesses da justiça são garantidos. Em outras palavras, a ASI é deferida quando for apropriada para evitar uma injustiça.
Entenda o caso UniCredit
E é justamente sobre o ponto (2) destacado acima que se abordará o tema do artigo, traçando um paralelo sobre o que restou decidido em UniCredit, vis-à-vis a decisão proferida pela Corte de Apelação inglesa (Court of Appeal), após conceder permissão para que os requerentes recorressem da decisão que havia negado jurisdição aos afetados pelo desastre [2], decisão essa posteriormente confirmada pela Suprema Corte (UK Supreme Court).
Em UniCredit, a companhia RCA celebrou contratos com parte terceira para a construção de plantas de processamento de gás na Rússia. Pelos contratos, RCA estaria obrigada a remunerar a parte contratada em aproximadamente 10 bilhões de euros. A contratada, vale destacar, fazia jus a pagamentos iniciais na ordem de 2 bilhões de euros, valores esses desembolsados por RCA.
Em virtude da aludida operação, RCA recorreu a UniCredit para emissão de certos títulos de dívida (bonds), na ordem de 420 milhões de euros, como forma de garantia do contrato celebrado com a parte terceira e de repagamento dos valores desembolsados.
Nos documentos dos bonds, havia cláusula dispondo que os bonds, e todas as obrigações não contratuais ou outras obrigações decorrentes ou relacionadas a eles, seriam interpretados de acordo com a lei inglesa.
A cláusula previa, ainda, que quaisquer disputas que viessem a existir entre as partes seriam resolvidas por arbitragem, administrada pela Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (ICC), e a sede da arbitragem seria Paris, na França.
A parte terceira contratada por RCA escreveu para a companhia russa informando que não poderia mais performar os contratos em razão de sanções sofridas pela união europeia acarretadas pela invasão russa ao território ucraniano. A contratada de RCA foi além e destacou que não poderia devolver à RCA os valores pagos a título de adiantamento.
RCA, em virtude do default sofrido, iniciou procedimento judicial na Rússia em face de UniCredit buscando reaver cerca de 450 milhões de euros oriundos dos on demand bonds celebrados com o banco.
Tendo em vista a existência de cláusula arbitral celebrada nos instrumentos de bonds pactuados entre UniCredit e RCA, UniCredit, buscando evitar um litígio nas cortes russas, tratou de apresentar medida perante as cortes inglesas, à alegação de que o pleito iniciado por RCA nas cortes russas configuraria violação às cláusulas arbitrais dos bonds, e requerendo, dentre outras coisas, uma ASI para que RCA não prosseguisse com a ação na Rússia.
A High Court do Reino Unido, corte de primeiro grau, inicialmente deferiu a medida requerida por UniCredit em caráter liminar e ex parte (sem dar a RCA o direito de se manifestar). Todavia, após o julgamento do caso, a High Court declarou que não possuía jurisdição para dirimir a causa, sob o fundamento de que as cláusulas arbitrais eram governadas pela lei francesa, por ser Paris a sede da arbitragem, razão pela qual a Inglaterra não era o fórum mais adequado para a ação.
A Court of Appeal, corte de segunda instância, permitiu a apelação da UniCredit e deferiu a medida para que RCA não seguisse com a ação ajuizada na Rússia.
Em 23 de abril de 2024, a UK Supreme Court (Suprema Corte do Reino Unido) publicou decisão negando a apelação de RCA e mantendo a ASI requerida por UniCredit com relação à demanda ajuizada por RCA na Rússia. Tal decisão veio acompanhada, em 18 de setembro deste ano, da fundamentação para deferimento da ASI.
A única questão a ser decidida pela Suprema Corte do Reino Unido era se as cortes inglesas tinham jurisdição sobre o pleito da UniCredit relativo à ASI. Para tanto, a Corte deveria avaliar a discussão sob dois prismas, quais sejam: (1) se as cláusulas arbitrais previstas nos instrumentos dos bonds eram regidas por lei inglesa (considerando que a lei aplicável aos bonds em si era a inglesa, mas a sede da arbitragem Paris); e (2) se a Inglaterra era o local mais adequado para a propositura da ação.
Paralelo entre UniCredit e Mariana vs BHP
Para efeito da discussão do artigo, propõe-se analisar o ponto (2), qual seja se a Inglaterra era o local mais adequado para ajuizamento da ação, uma vez que tangencia justamente o aspecto de maior crítica feito por juristas brasileiros às cortes inglesas ao assumirem jurisdição sobre Município de Mariana v BHP, quanto à suposta inaplicabilidade da teoria do forum non conveniens.
Todavia, para que se contextualize propriamente o que se discutiu em (ii), é relevante tecer algumas breves considerações sobre o ponto (i), em que se aferiu que a despeito de a sede da arbitragem ser Paris, as cortes inglesas entenderam que a cláusula arbitral deveria ser governada por lei inglesa, uma vez que os instrumentos dos bonds eram governados pela lei inglesa.
RCA argumentou que por ser Paris a sede da arbitragem pactuada pelas partes na cláusula compromissória, a lei francesa deveria governar a cláusula arbitral e, por consequência, as cortes francesas as competentes para solucionar qualquer questão adjacente a um eventual procedimento arbitral.
Para tanto, RCA ponderou que o que restou estabelecido em Enka v Chubb [3] (a lei aplicável às obrigações do contrato deveriam também governar a cláusula compromissória) se trataria de exceção, sendo aplicável tão somente se a lei da sede da arbitragem tratasse a cláusula arbitral como regida também pela lei aplicável às obrigações do contrato na qual inserida.
No caso, RCA destacou que as cortes francesas tratam quaisquer cláusulas arbitrais cuja sede é na França como regidas pela lei francesa, razão pela qual Enka não seria aplicável ao caso. Tal abordagem, adotada pelo ordenamento jurídico francês, é semelhante à brasileira, que prevê que quaisquer medidas judiciais relacionadas à arbitragem devem ser propostas no foro da sede pactuado na cláusula compromissória.
A despeito da argumentação trazida por RCA, as cortes inglesas entenderam que o racional aplicável em Enka também se aplicaria em UniCredit, de forma que a lei aplicável ao contrato deveria reger também a cláusula arbitral.
Ao se deparar com o ponto (ii), qual seja o local mais adequado para propositura da ação, as cortes inglesas analisaram a questão sob seis prismas: (a) a não aplicabilidade da teoria do forum non conveniens; (b) a importância de se garantir a manutenção de cláusulas arbitrais; (c) a impossibilidade de as cortes francesas proferirem ASIs; (d) o fato de justiça substancial não poder ser obtida por meio de arbitragem; (e) a existência de conexão substancial com a Inglaterra; e (f) cortesia internacional.
Postura paternalista
Para o que se pretende discutir, os pontos (a) a (d) demonstram de forma bastante clara, como se melhor verá adiante, que mesmo diante de uma disputa envolvendo um banco alemão e uma companhia russa, sob suposta jurisdição francesa, que em teoria não “precisaria da assistência” das cortes inglesas para lidar com determinado assunto, a Inglaterra entendeu por bem interferir na disputa, de modo que “justiça substancial” pudesse ser feita graças à sua atuação – qualquer semelhança (não) é mera coincidência.
Quanto ao ponto (a), cabe destacar que, diferentemente de Município de Mariana, a corte entendeu que o teste de forum non conveniens do precedente Spiliada [4] não era aplicável (a explicação sobre o teste consta de artigo anterior que publiquei sobre o assunto [5]). Isso porque, diferentemente de Mariana, havia eleição de foro pelas partes, qual seja arbitragem, em Paris.
No que diz respeito ao ponto (b), justamente pelo fato de haver escolha de foro contratualmente pelas partes, as cortes não deveriam hesitar em deferir medidas de ASI, de modo a impedir que partes descumpram uma cláusula arbitral, recorrendo a outro foro que não aquele pactuado no instrumento celebrado.
Assim, considerando que havia foro previamente acordado pelas partes, e pela relevância de se garantir sua efetividade, a Suprema Corte do Reino Unido decidiu pela competência das cortes inglesas para deferir a ASI pleiteada por UniCredit. Isso porque tal instrumento não é previsto no ordenamento jurídico francês, razão pela qual UniCredit não poderia dele se valer para garantir a efetividade da cláusula compromissória arbitral (ponto (c)).
Ainda com relação ao parágrafo acima, vale mencionar que a decisão da Suprema Corte fez questão de destacar que ainda que as cortes francesas possibilitassem a propositura de ASIs, não haveria razão para se restringir as cortes inglesas de proferirem decisão que garantisse a efetividade da cláusula compromissória, por ser esse o objetivo primordial que se deveria buscar, a fim de se obter justiça substancial.
Por fim, e em linha com o que se explicou quanto a (c) acima, entendeu a Suprema Corte inglesa que UniCredit tampouco poderia obter justiça por meio de instauração de arbitragem, uma vez os árbitros não possuem o chamado poder de coerção para impor que as partes respeitem a propositura da ação no foro previamente pactuado. Assim, tendo em vista que RCA já violava a cláusula arbitral ao propor a ação na Rússia, não é de se imaginar que UniCredit conseguiria fazer valer seu direito de litigar em arbitragem meramente instaurando um procedimento arbitral.
O que se vê, portanto, é uma postura paternalista bastante similar à postura adotada em Município de Mariana, adaptada para uma situação em que a preocupação das cortes inglesas eram, não garantir a viabilidade de uma ação que em outra jurisdição não seria plausível de prosseguir, mas sim assegurar o efetivo cumprimento de cláusula arbitral pactuada entre as partes.
Em outras palavras, da mesma forma que a Justiça inglesa entendeu que a justiça brasileira não teria os recursos e mecanismos necessários para garantir a efetivação de justiça para um caso como Município de Mariana, essa mesma justiça considerou que a justiça francesa também não teria condições de evitar que RCA demandasse perante o judiciário russo, em descumprimento da cláusula compromissória pactuada entre as partes.
Que fique claro: tal como em Município de Mariana, em UniCredit as cortes inglesas entenderam que possuíam um elemento de conexão para atrair a jurisdição inglesa. Enquanto em Município de Mariana os elementos eram domicílio, para a entidade BHP inglesa – pelo fato de o Reino Unido ainda pertencer à União Europeia à data da propositura da ação e, por consequência, se aplicar o Recast Brussels Regulation -, e territorialidade, para a entidade BHP australiana, em UniCredit o elemento para atração estaria nas Procedure Rules inglesas (parágrafo 3.1(6)(c)) [6], que prevê o ângulo jurisdicional para contratos cuja lei aplicável é a inglesa.
Portanto, não obstante a sede da arbitragem fosse Paris, sendo, em teoria, a jurisdição francesa o foro natural para se discutir questões adjacentes à arbitragem, as cortes inglesas, na suposta condição de mantenedoras da justiça internacional, trataram de intervir no caso, concedendo a ASI pleiteada por UniCredit e garantindo a efetividade da cláusula arbitral pactuada entre as partes.
Assim, a despeito de se tratarem de contextos diferentes, é bastante relevante que se compreenda que, certa ou errada, a postura do judiciário inglês não está direcionada a países que foram colonizados em algum momento da história, tampouco focada em países tidos como “under development”.
Parece, sim, que se trata de abordagem global, que poderá intervir tanto em questões envolvendo antigas colônias, como o Brasil, mas também não hesitará em interceder com relação a antigos colonizadores, como a França, se julgar haver ângulo jurisdicional para tanto e, mais importante, se necessário para que haja “substantial justice”.
[1] UniCredit Bank GmbH (Respondent) v RusChemAlliance LLC (Appellant) – The Supreme Court
[2] Município de Mariana v BHP Group (UK) Ltd [2022] EWCA Civ 951. [https://www.bailii.org/ew/cases/EWCA/Civ/2022/951.html]
[3] Enka Insaat Ve Sanayi A.S. (Respondent) v OOO Insurance Company Chubb (Appellant) UKSC 2020/0091 [https://www.supremecourt.uk/cases/uksc-2020-0091.html]
[4] Spiliada Maritime Corpn v Cansulex Ltd [1987] 1 AC 460, 476
[5] Mariana x BHP e Vale: por que uma ação ‘tão brasileira’ será julgada por corte britânica? (conjur.com.br)
Por que uma ação “tão brasileira” será julgada por corte britânica? – Migalhas
[6] “3.1 The claimant may serve a claim form out of the jurisdiction with the permission of the court under rule 6.36 where – (6) A claim is made in respect of a contract where the contract – (c) is governed by the law of England and Wales.”
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