Opinião

Memórias (quase) póstumas da sustentação oral no processo civil

Autor

  • Gustavo Osna

    é advogado professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e do programa de graduação em Direito da UFPR doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR mestre em Direito das Relações Sociais e bacharel em Direito pela UFPR e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

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2 de novembro de 2024, 6h06

Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas.

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A célebre dedicatória, trazida por Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas, infelizmente parece ter hora marcada para se aplicar à sustentação oral no processo civil brasileiro [1]. A contagem regressiva faz com que a sobrevida do instituto possa durar poucos meses, e a sua causa mortis possui uma irônica semelhança: assim como Brás Cubas contraiu pneumonia ao tentar desenvolver seu emplasto (que curaria todas as doenças), a sustentação oral deverá em grande parte seu fim ao seu uso como um remédio infinito (ou inesgotável).

Dou alguns passos atrás para justificar essa afirmação. Em breve nota publicada aqui mesmo nesta ConJur, em 24 de março de 2023, destaquei que o processo civil brasileiro vivia um cenário de “falência” da sustentação oral [2]. Naquela oportunidade, enfatizei que o tratamento conferido ao tema havia se tornado insustentável e configurava exemplo de tragédia dos comuns [3], devido a aspectos como a sua visão sacralizada ou marcada por um classismo contraproducente.

Como conclusão, em tom infelizmente profético, destaquei que “conformar o instituto é indispensável para permitir a sua sobrevivência e a sua real funcionalização; para que sua atual circunstância de falência se converta, ao menos, em um gradual processo recuperacional”.

Após pouco mais de um ano e meio, essa funcionalização não ocorreu e o golpe letal pode ter sido desferido. Em sessão ordinária realizada em 22 de outubro de 2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou resolução (no bojo do Ato Normativo nº 0006693-87.2024.2.00.0000) que, além de aperfeiçoar os modelos de plenário virtual, consolida essa modalidade assíncrona de julgamento como regra geral para qualquer situação. Isso, independentemente de demais aspectos subjacentes ao processo.

De fato, além de estabelecer os “requisitos mínimos para o julgamento de processos em ambiente eletrônico no Poder Judiciário”, a aludida resolução passa a prever que “todos os processos jurisdicionais e administrativos em trâmite em órgãos colegiados poderão, a critério do relator, ser submetidos a julgamento eletrônico” (artigo 2º).

E, modificando o cenário atual, deixa de existir para a parte uma real potestade de alterar essa tramitação: embora possa formular pedido de destaque capaz de conduzir o feito a julgamento presencial, esse requerimento deverá ser “deferido pelo relator” (artigo 8º, inciso II). Não são descritos, contudo, os elementos ou os critérios inerentes a esse juízo discricionário.

Em relação à sustentação oral, procura-se, em princípio, garantir seu emprego também nesse ambiente virtual. Para tanto, estabelece-se que, “nas hipóteses de cabimento de sustentação oral, fica facultado aos advogados e demais habilitados nos autos encaminhar as respectivas sustentações por meio eletrônico após a publicação da pauta e até 48 (quarenta e oito) horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual” (artigo 9º).

Por mais que o dispositivo busque trazer uma alternativa, consideramos, respeitosamente, que há aí um réquiem da sustentação oral no processo civil brasileiro. Lamentavelmente, a previsão realizada em 2023, com intenção de advertência, conduziu ao pior resultado possível: a concretização da garantia faliu em nosso direito processual.

Por qual motivo esse raciocínio se coloca? Quais os problemas ligados à mencionada resolução? De que maneira o cenário poderia (ou, deveria) ser compreendido?

Déficit democrático

Devido à brevidade da presente nota, sequer se questiona, aqui, a legalidade de que essa alteração processual seja estabelecida por meio de ato normativo do Conselho Nacional de Justiça [4].

Ocorre que, mesmo desconsiderando esse elemento [5], o ato é problemático por diferentes motivos. Um deles, que merece especial referência por destoar da prática mais comum no CNJ (plural e virtuosa), é o seu possível déficit democrático.

Embora impacte profundamente o modelo processual brasileiro, a mudança: (1) foi aprovada em momento no qual a advocacia não é representada no conselho [6]; e, (2) além disso, não parece ter sido precedida de debates com a comunidade acadêmica ou com a sociedade civil.

Em relação ao primeiro ponto, retoma-se um aspecto já mencionado no artigo publicado em março de 2023: poucas coisas podem ser mais prejudiciais à efetividade jurisdicional do que um equivocado antagonismo entre nós e eles — colocando, em lados opostos juízes e advogados. Naquela oportunidade, a ressalva foi feita com mirada especial na advocacia, clamando por um uso parcimonioso e efetivo da sustentação oral para garantir sua sobrevida.

E é precisamente por compreender a importância dessa interação entre os diferentes stakeholders do sistema de justiça que a CF/88 assegura a participação da advocacia no âmbito do CNJ (artigo 103-B, inciso XII). Como consequência, deliberar sobre um tema tão relevante e em que o interesse da classe é tão marcante na vacância dessa representação pode soar como um caminho indesejado, no qual quem perde é o jurisdicionado.

Da mesma forma, consideramos que a ausência de maior debate ligado ao tema com a sociedade civil e com a comunidade acadêmica representa uma mácula sensível. Isso, especialmente, em um ambiente marcado pela constante e valorosa defesa da democracia.

Qual a opinião técnica, existente no campo do processo, a respeito da plena virtualização dos julgamentos colegiados [7]? Que desdobramentos comportamentais podem decorrer do avanço da assincronicidade nessa arena? A garantia da sustentação oral é satisfatoriamente tutelada nessa transição?

Por mais que cada uma dessas perguntas suscite pontos de alerta, nenhuma delas parece ter sido adequadamente formulada. E essa ausência pode causar embaraços à própria legitimidade da mudança.

Peso da linguagem não-verbal

Em nossa visão, o problema é agravado na medida em que facultar “aos advogados e demais habilitados nos autos encaminhar as respectivas sustentações por meio eletrônico” representa fragilizar sensivelmente essa garantia. A lógica assíncrona e distanciada cria debilidades em diferentes níveis e fatores, prejudicando o exercício de diálogo e de contraditório.

Para que o problema não seja perdido de vista ou pareça puramente especulativo, é interessante estabelecer um paralelo imperfeito. Conforme estudos de campo, o comportamento de testemunhas no âmbito de interrogatórios é diretamente impactado caso a oitiva se dê de maneira presencial ou online.

Isso corrobora que a linguagem não-verbal também possui impacto relevante nas relações intersubjetivas. Com particular importância, são notadas modificação em aspectos como a atenção e a confiança entre os participantes do diálogo; quem fala presencialmente, com isso, possui maior chance de ser corretamente notado e ouvido [8].

Esse preço, que já é suportado em alguma medida nos julgamentos telepresenciais, assume dimensão muito mais ampla pela imposição de natureza assíncrona à sustentação. Em mais um paralelo imperfeito, dessa vez ligado ao sistema educacional, é conhecida a constatação de que o estudo assíncrono e virtual pode prejudicar significativamente a interação (verbal e não-verbal) entre os atores. Esse elemento reduz o tensionamento ligado a questões como o diálogo e a justificação, facilitando um alienamento entre o dito e o respondido [9].

Evidentemente, o julgamento nos tribunais não é idêntico a uma oitiva de testemunhas ou a uma sala de aula. Entretanto, também aí é bastante crível que a falta de sincronicidade traga como consequência a ausência de conexão: de um lado, facilita-se um discurso reiterado, ensaiado e insuscetível de enfrentamento; de outro, elimina-se qualquer controlabilidade ligada ao acompanhamento da sustentação e ao seu momento. Por qualquer das pontas, o modelo previsto pelo CPC/15 acaba sendo alterado em sentido contrário à sua carga valorativa.

Suspensão e rediscussão da medida

A partir disso, ainda existem alternativas para inverter esse jogo? Há espaço para resgatar a virtude da sustentação oral e das sessões presenciais?

As respostas parecem dialogar, novamente, com o ensaio publicado em março de 2023. É preciso repensar a sustentação oral de maneira ampla e responsável [10]. É indispensável que a advocacia também assuma seu papel nesse jogo, percebendo que o tempo da jurisdição é público e escasso e enfrentando essas restrições com seriedade.

Nesse contexto, a realização de sustentações sem qualquer propósito de esclarecimento ou mesmo limitadas a leituras de arrazoados, por exemplo, deveria ser evitada e rechaçada (podendo se pensar, até mesmo, em sanções premiais incidentes nesse campo [11]). Da mesma forma, discordamos de qualquer tentativa de ampliar excessivamente as hipóteses de cabimento do mecanismo, tratando-se de escolha já estabelecida com equilíbrio no âmbito do CPC/15.

Diante do teor do ato normativo, todavia, essa possibilidade de aprimoramento é esvaziada. Opta-se por cortar o uso excessivo da prerrogativa pela raiz. Com isso, porém, a própria efetivação da garantia acaba sendo abalada.

Como consequência, acreditamos que a seriedade do problema e as dubiedades ao seu redor recomendariam que o próprio Conselho Nacional de Justiça suspendesse a medida e permitisse sua rediscussão. Esse percurso, aliás, ratificaria a lógica participativa e virtuosa que vem caracterizando a atividade do órgão.

Diversamente, caso isso não ocorra, restará como tábua de salvação confiar na prudência e na cautela dos tribunais na aplicação do novo regime. Somente essas vias poderão evitar que, em muito breve, o processualista seja obrigado a conviver com as memórias póstumas de suas sustentações orais e do benefício que elas traziam para a tutela dos direitos. O esgotamento jurisdicional e a ausência de respostas adequadas terão, enfim, “roído a fria carne” da interação síncrona e espontânea nos órgãos colegiados.

 


[1] Dada a diversidade inerente aos campos, não se adota aqui, assim, discurso com pretensão de aplicabilidade ampla a uma eventual teoria geral do processo. Ver, OSNA, Gustavo. Processo civil, cultura e proporcionalidade. São Paulo: Ed. RT, 2016.

[2] Disponível em < https://www.conjur.com.br/2023-mar-24/gustavo-osna-falencia-sustentacao-oral-processo-civil/ >.

[3] Realizando essa analogia no âmbito do processo civil, ver, WOLKART, Erik Navarro. Análise econômica do processo civil. São Paulo: Ed. RT, 2019. OLIVEIRA, Rafael Niebuhr Maia de. MENDES, Lucas Rocha. SILVA NETO, Orlando Celso. LAMY, Eduardo de Avelar. A tragédia dos comuns e o acesso à justiça: uma introdução econômica a problemas do acesso à justiça no Brasil. In. Revista de Processo. v. 335. São Paulo: Ed. RT, 2023. Ainda, ARAÚJO, Fernando. A tragédia dos Baldios e dos Anti-Baldios: O problema económico do nível óptimo de apropriação. Coimbra: Almedina, 2008.

[4] Com efeito, insere-se aí um ótimo exemplo da penumbra que ainda marca o campo de atuação do CNJ em matéria de processo. A respeito do tema, ver, na doutrina brasileira, DIDIER JR., Fredie. FERNANDEZ, Leandro. O Conselho Nacional de Justiça e o Direito Processual – Administração Judiciária, Boas Práticas e Competência Normativa. 3 ed. rev. atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2024.

[5] E, também, sem ingressar no eventual déficit de colegialidade verificado no julgamento em plenário virtual.

[6] O ponto foi objeto de críticas por parte do próprio Conselho Federal da OAB, sinalizando esse déficit representativo. Assim, <https://www.oab.org.br/noticia/62669/oab-critica-aprovacao-de-recomendacoes-do-cnj-sem-a-participacao-da-advocacia>.

[7] É oportuno notar que o avanço da tecnologia e sua inevitável interface com o direito processual civil já têm sido notados pela doutrina brasileira. Por todos, VALE, Luís Manoel Borges do. PEREIRA, João Sérgio dos Santos Soares. Teoria Geral do Processo Tecnológico. São Paulo: Ed. RT, 2023. Ainda, uma vez mais,  MARQUES, Ricardo Dalmaso. Métodos Online de Resolução de Conflitos (ODR). São Paulo: Ed. RT, 2023.

[8] Ver, MEIJER, Ewout. HOOGESTEYN, Katherine. VERIGIN, Brianna. FINNICK, Danielle. Rapport Building: Online Vs, In-Person Interview – Full Report. Centre for Resarch and Evidence on SecurityThreats, 2023.

[9] BETTINGER, Eric. FOX, Lindsay. LOEB, Susanna. Virtual Classrooms: How Online College Courses Affect Student Succes. American Economic Review. v.107, 2017.

[10] Como possibilidades de aprimoramento, naquela ocasião, foram apresentadas considerações ligadas a aspectos como a ordem de julgamento e a função de esclarecimento (e não de reiteração) da sustentação oral.

[11] Sobre o tema, no processo civil brasileiro, ver MAZZOLA, Marcelo. Sanções premiais no processo civil. Salvador: JusPodivm, 2021.

Autores

  • é professor adjunto da Faculdade de Direito da UFPR, doutor e mestre em Direito pela UFPR, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e advogado e parecerista.

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