As decisões do STF e a prática no Tribunal do Júri (parte 1)
2 de novembro de 2024, 8h00
O Supremo Tribunal Federal fixou duas teses em repercussão geral relacionadas ao Tribunal do Júri em um curto espaço de tempo (Tema 1.068 e 1.087). Ambas as decisões desconsideram os fundamentos jurídicos e históricos do julgamento por juízo por jurados. Ademais, algumas manifestações dos ministros no decorrer da sessão do STF demonstraram um profundo desconhecimento do funcionamento, do procedimento e da própria realidade do júri no Brasil.
Esse afastamento entre as discussões, a decisão e a prática do Tribunal do Júri, exige dos operadores do Direito (magistrados, promotores de justiça, defensores públicos, advogados) que lidam diariamente com a realidade posta, um filtro a partir dos pontos definitivamente assentados. Explica-se, grande parte das manifestações orais dos ministros durante o julgamento dos Temas não foram contemplados na ementa publicada pelo STF. Aliás, os votos de cada ministro sequer foram publicizados, o que exige cautela na aplicação dos precedentes.
Assim, escrevo esse artigo em duas partes, com foco em cada um dos temas, analisando tão somente os contornos da decisão divulgada.
Tema 1.068: A execução imediata independentemente da quantidade da pena
No Tema 1.068, derivado do julgamento do RE 1.253.340, o STF reconheceu, por maioria, a inconstitucionalidade do limite de 15 anos do artigo 492, I, “e”, do CPP, excluindo neste dispositivo e nos §4º e §5º, suas respectivas referências.
De maneira mais didática, a redação dada pela Lei 13.964/2019 era:
“Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que:
I – no caso de condenação:
e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;
§3º O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas de que trata a alínea e do inciso I do caput deste artigo, se houver questão substancial cuja resolução pelo tribunal ao qual competir o julgamento possa plausivelmente levar à revisão da condenação.
§4º A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão não terá efeito suspensivo.
§5º Excepcionalmente, poderá o tribunal atribuir efeito suspensivo à apelação de que trata o § 4º deste artigo, quando verificado cumulativamente que o recurso:
I – não tem propósito meramente protelatório; e
II – levanta questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão.”
De agora em diante, deve-se ler:
“Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que:
I – no caso de condenação:
e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;
§3º O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas de que trata a alínea edo inciso I do caput deste artigo, se houver questão substancial cuja resolução pelo tribunal ao qual competir o julgamento possa plausivelmente levar à revisão da condenação.
§4º A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri não terá efeito suspensivo.5º Excepcionalmente, poderá o tribunal atribuir efeito suspensivo à apelação de que trata o § 4º deste artigo, quando verificado cumulativamente que o recurso:
I – não tem propósito meramente protelatório; e
II – levanta questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão.”
Como se vê, no caso de condenação, o juiz presidente determinará a execução provisória da pena independentemente de sua quantidade, desde que, claro, o regime de cumprimento inicial seja o fechado. Em se tratando de regime aberto ou semiaberto, a intimação e os trâmites devem ser realizados no processo de execução da pena, restando proibido o cumprimento provisório em regime mais gravoso.
Também estão fora do escopo da execução imediata da pena as eventuais condenações de competência do juiz presidente após decisão desclassificatória pelo Conselho de Sentença. Isso porque, na visão do STF, o que sustenta a execução automática é justamente a soberania dos vereditos, o que não encontra guarida em decisões monocráticas do magistrado.
O parágrafo terceiro: a impossibilidade de determinar a execução automática da pena
Por outro lado, não ocorreu qualquer alteração no parágrafo 3º do artigo 492 do CPP, o qual ganha especial relevância para proibição do encarceramento provisório em processos que tenham sido alegadas nulidades ou que a decisão condenatória esteja em desconformidade com as provas do processo.
Frise-se: de acordo com o §3º, se a defesa sustentar tempestivamente alguma nulidade, fazendo constar na ata de julgamento e esta nulidade tiver o condão de anular a sessão de julgamento, o juiz presidente não poderá determinar a execução provisória da pena!
É a única interpretação possível em respeito aos princípios da presunção de inocência e do devido processo legal. Por mais que a decisão do STF permita a execução antecipada da pena, ao não modificar as hipóteses em que o acusado pode recorrer em liberdade, a corte reconhece que existem situações em que o julgamento não possui o grau necessário de definitividade para que aquilo aconteça. Destarte, se houver qualquer possibilidade de que o júri seja anulado e o acusado submetido a novo julgamento, não se pode admitir que ele seja encarcerado.
Certamente que não são todas as nulidades sustentadas que permitem ao acusado recorrer em liberdade, devendo haver uma somatória de fatores: (a) nulidades arguidas tempestivamente (artigo 571, V e VIII do CPP); (b) nulidades descritas na ata dos trabalhos como exigência do artigo 495 do CPP ou comprovadas por outro meio (gravação em sistema audiovisual, por exemplo); (c) circunstâncias que não sejam manifestamente infundadas (não valendo para aquelas sem qualquer respaldo legal, jurisprudencial ou doutrinário); (d) nulidades que, caso sejam reconhecidas em sede recursal, possuam o condão de anular a sessão de julgamento, o processo ou mesmo absolver o acusado.
Perceba-se que o parágrafo 3º do artigo 492 do CPP ao prever a não execução provisória da pena “se houver questão substancial” que “plausivelmente” leve “à revisão da condenação”, não está exigindo do juiz presidente uma mera reanálise da nulidade que já fora realizada no decorrer da sessão de julgamento. Isso porque, parte-se do pressuposto que, ao final do júri, certamente o juiz presidente, ao ser confrontado com a nulidade, não a acolheu e fundamentou sua negativa na ata de julgamento. Sendo assim, nesta fase, o magistrado apenas deve fazer uma ponderação se a nulidade rejeitada por ele, caso reconhecida pelo tribunal, possui a capacidade de anular o julgamento. Se a resposta for positiva, a execução imediata não pode ser determinada.
Parágrafos 4º e 5º: o efeito suspensivo da apelação
Hipoteticamente, caso o magistrado, em violação ao §3º, determinar a execução imediata da pena mesmo após a sustentação tempestiva de nulidade por parte da defesa, esta poderá requerer a concessão de efeito suspensivo ao recurso de apelação.
A compreensão dos parágrafos §3º, §4º e §5º deve ser coerente. Assim, se a defesa tiver arguida alguma questão que possa resultar em absolvição, anulação da sentença ou novo julgamento, o tribunal deverá atribuir efeito suspensivo para apelação interposta. Certamente que, havendo qualquer destas possibilidades, não se trata de recurso meramente protelatório, eis que a legitimidade do próprio julgamento está atrelado ao respeito absoluto às regras procedimentais.
Perceba-se que a última parte do parágrafo §5º, que previa a redução da condenação para parâmetro menor a 15 anos foi afastada pelo STF, tendo que ser interpretada como a diminuição da pena que tenha como consequência a alteração do regime de cumprimento. Por exemplo, se o juiz presidente fixar a pena de 9 anos em regime inicial fechado, mas a defesa interpõe apelação buscando a correção da dosimetria que, se aceita, aproximará a pena do mínimo legal, com consequente alteração para o regime de cumprimento no semiaberto, seria uma temeridade exigir que o acusado aguarde o resultado da apelação em regime mais gravoso.
Considerando o prazo para interposição e apresentação das razões para o tribunal (artigo 593 e artigo 600 do CPP), o trâmite burocrático com a distribuição ao relator e, ainda, a inexigência de que o acusado fique preso indevidamente até a concessão de efeito suspensivo, a defesa poderá fazer o pedido em petição apartada ou impetrar um Habeas Corpus imediatamente após a sessão, conforme já se manifestou aqui na ConJur Aury Lopes Jr.
A soberania dos vereditos: uma garantia constitucional contra o cidadão?
Pelo aspecto jurídico, evidentemente que a decisão foi equivocada, para não dizer lamentável. Além de ser contrária à própria jurisprudência do STF no sentido de que não se pode admitir o início da execução da pena antes do trânsito em julgado – e, portanto, violando frontalmente o princípio da presunção da inocência –, a corte utilizou uma garantia fundamental do cidadão (a soberania dos vereditos, prevista no artigo 5º, XXXVIII, “c” da CF), contra o próprio cidadão. Uma verdadeira esquizofrenia constitucional.
A tese restou fixada com o seguinte texto: “A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”. A interpretação deve ser estrita: não há uma exigência da execução imediata da pena, mas sim uma autorização, desde que não tenham ocorrido circunstâncias, no decorrer do julgamento ou do processo, que possam levar à submissão do acusado a novo julgamento.
Na segunda parte do artigo, que será publicada semana que vem, escreverei sobre o Tema 1.087, em que o Supremo Tribunal Federal fixou tese permitindo o recurso por parte do Ministério Público de decisão absolutória amparada no quesito genérico, bem como manteve a possibilidade de sustentação da clemência pela defesa.
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