Opinião

Alienação fiduciária de imóvel por instrumento particular: falácia da economia pela informalidade

Autores

  • é professor associado do departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP livre-docente doutor e mestre em Direito Civil pela mesma faculdade diretor do IBDCONT e vice-presidente do IBDFAMSP.

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  • é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor de Direito Civil da Faculdade de Direito do Mackenzie e do Ibmec.

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2 de novembro de 2024, 7h03

“Desconfiai de doutrinas que nascem à maneira de Minerva, completas e armadas. Confiai nas que crescem com o tempo.”
(Machado de Assis, a Semana, Gazeta de Notícias, 16.set.1894)

Nota introdutória

Em 16 de setembro de 2024, o doutor André Abelha publicou no Migalhas artigo intitulado Alienação fiduciária de imóvel por instrumento particular: oportunidade de avanço.

À maneira de preâmbulo, o articulista convidou a comunidade jurídica e a sociedade civil em geral à reflexão mediante elogio ao que chamou energia do atrito causada pela divergência de ideias.

Como sugere o título do artigo, seu autor defende que os negócios jurídicos de alienação fiduciária de imóveis possam, em qualquer caso e independentemente dos figurantes, ser instrumentalizados por instrumento particular.

Acedendo ao convite do autor, apresentaremos alguns argumentos em favor do atual regime jurídico da alienação fiduciária de imóveis, designadamente argumentos favoráveis a que a escritura pública somente seja dispensada para os casos expressamente previstos em lei, o que se dá, entre outros, para os agentes do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) e do Sistema Financeiro Habitacional (SFH).

Delimitação do debate: lege ferenda

Há uma tendência atual de parte da doutrina e, o que é mais grave, da jurisprudência em confundir o que preceitua uma norma com aquilo que se gostaria que ela preceituasse.

Não raro, vê-se doutrina embasando decisões que, ao aplicar uma norma cujo texto afirma “é vedado”, entendem que, na verdade, o que está escrito é que é permitido.

Felizmente, o mencionado articulista não padece desse vício.

Ao contrário, ele reconhece que a permissão de que trata o artigo 38 da Lei 9.514/1997 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do SFI (Sistema de Financiamento Imobiliário — artigo 2º da Lei 9.514/1997), incluindo as cooperativas de crédito, sem prejuízo de outras exceções que a lei venha a fazer ao artigo 108 do Código Civil.

Fica, pois, assentado que o debate é de lege ferenda, é dizer, se é vantajoso ou não mudar o sistema atualmente vigente para permitir que os negócios jurídicos de alienação fiduciária possam sempre vir instrumentalizados por instrumento particular.

Qualificação jurídica do Provimento 172/2024 do CNJ

Em trecho de seu artigo, sob a designação de “season 1 Finale”, o autor aduz que o Conselho Nacional de Justiça usurpou competência do Superior Tribunal de Justiça ao, segundo ele, uniformizar a interpretação da lei federal.

Segundo ele:

“após se recusar a intervir em MG, para não afetar os contratos locais, e depois de afirmar que não tinha atribuição constitucional para uniformizar a interpretação da lei federal, o que fez o Conselho? Uniformizou a interpretação da lei federal (art. 38 da lei 9.514/97), e impactou, com efeito vinculante, os contratos de alienação fiduciária do país inteiro”.

O articulista faz parecer que houve manifestações contraditórias do Conselho Nacional de Justiça, quando, na verdade, a leitura da decisão sobre o provimento de Minas Gerais demonstra justamente a coerência do CNJ.

Vejamos.

A atual redação do artigo 38 da lei 9.514/97 é a seguinte:

“Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública.”

Diante dessa redação e dando-lhe correta interpretação, o artigo 954 do Provimento Conjunto 93/2020 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais dispôs que:

“Art. 954. Os atos e contratos relativos à alienação fiduciária de bens imóveis e negócios conexos poderão ser celebrados por escritura pública ou instrumento particular, desde que, neste último caso, seja celebrado por entidade integrante do Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI, por Cooperativas de Crédito ou por Administradora de Consórcio de Imóveis [1].”

Essa regra, plenamente compatível com a interpretação que se defende como correta do artigo 38 da lei 9.514/97, teve sua validade questionada perante o Conselho Nacional de Justiça.

Por ocasião do julgamento do PCA no 0000145-56.2018.2.00.0000, o CNJ julgou válido o artigo 954 do provimento do TJ-MG.

No informativo de Jurisprudência do CNJ número 12/2023, lê-se que:

A Lei nº 9.514/1997, que rege o SFI, autoriza o contrato de alienação fiduciária tanto na forma de escritura pública como por instrumento particular. Tal fato não autoriza estender a particulares as mesmas prerrogativas ou possibilidades. Assim, a orientação do Tribunal é razoável, pois encontra amparo na legislação sobre o assunto. Desse modo, não cabe ao CNJ intervir ou expedir ato normativo para disciplinar a matéria no Poder Judiciário. A interpretação do Tribunal é de que as facilidades na celebração da alienação fiduciária dadas pela Lei nº 9.514/1997 só alcançam as entidades integrantes do SFI. Tem-se, ainda, que, no âmbito de sua competência, os tribunais podem editar atos regulamentares para dirimir dúvidas, uniformizar procedimentos e otimizar os serviços judiciais ou cartorários. Tal conduta é prerrogativa da autogestão garantida aos órgãos do Poder Judiciário nos artigos 96, 99 e 125 da Constituição. A intervenção do CNJ, no caso, poderia afetar inúmeros contratos de alienação fiduciária celebrados no âmbito do Estado de Minas Gerais, ocasionando instabilidade jurídica e ações judiciais com ausência de contraditório e ampla defesa aos atingidos pela deliberação. Possivelmente, haveria descontrole dos registros imobiliários da região e desorientação patrimonial. Além disso, a hermenêutica jurídica e legislativa do TJMG está em sintonia com os entendimentos de outros tribunais, a exemplo do TJPA, TJMA, TJPB e TJBA, que também não admitem o uso de instrumento particular para entidades não integrantes do SFI. Em homenagem aos princípios da Administração Pública, à autonomia dos tribunais e às regras procedimentais aplicáveis ao tema, o Plenário do CNJ, por unanimidade, julgou improcedente o pedido.

Nessa decisão o CNJ reconheceu expressamente a diferença de regime jurídico entre as alienações fiduciárias que precisam de ser instrumentalizadas por escritura pública e aquelas que, excepcionalmente e por favor legal, podem ser formalizadas por instrumento particular.

Spacca

Com a finalidade de uniformizar os procedimentos adotados pelos serviços extrajudiciais é que o CNJ, no exercício estrito de sua competência prevista no artigo 8o, X do seu Regimento Interno, editou o provimento n.172/2024 que

acrescentou ao Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça-Foro Extrajudicial- o Capítulo VII.

Esse Capítulo VII é composto pelo artigo 440-AO, segundo o qual:

“Art. 440-AO. A permissão de que trata o art. 38 da Lei 9.514/1997 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI (art. 2º da Lei 9.514/1997), incluindo as cooperativas de crédito.

Parágrafo único. O disposto neste artigo não exclui outras exceções legais à exigência de escritura pública previstas no art. 108 do Código Civil, como os atos envolvendo: I. Administradoras de Consórcio de Imóveis (art. 45 da Lei n. 11.795, de 8 de outubro de 2008); II. Entidades integrantes do Sistema Financeiro de Habitação (art. 61, § 5º, da Lei n. 4.380, de 21 de agosto de 1964).”

O equívoco do argumento do articulista não é sequer sutil. As competências do STJ e do CNJ não se confundem e estão bem marcadas na Constituição e nos respectivos regimentos internos.

Não cabe ao CNJ nem tampouco ao STJ uniformizar a interpretação da legislação federal mediante edição de ato normativo abstrato, como provimentos, resoluções etc.

Ao STJ cabe, no exercício de sua jurisdição, uniformizar a interpretação da legislação federal quando esta estiver a ser interpretada de modo diferente pelos Tribunais Regionais Federais e/ou pelos Tribunais de Justiça. Basta ler o artigo 105, III, c, da Constituição Federal.

O Provimento 172/2024 do CNJ obviamente não usurpou competência do STJ na medida em que não se qualifica como ato jurisdicional voltado a uniformizar atos jurisdicionais de tribunais; ao contrário, o Provimento simplesmente uniformizou procedimentos a serem adotados pelos ofícios extrajudiciais de notas e de registro, o que fez, repita-se, nos estritos termos do que lhe autoriza o artigo 8o, X do seu Regimento Interno.

Assim, o Provimento 172 do CNJ não inovou a ordem jurídica, nem sequer o interpretou; o Provimento 172 do CNJ meramente cumpriu sua função de garantir que o artigo 38 da lei 9.514/97 seja uniformemente aplicado em todo o território nacional, prestigiando-se a isonomia e a segurança jurídica.

Falácia da economia da informalidade

Já há alguns anos que a teoria do law and economics tem ganhado adeptos no Brasil. Sempre com notáveis exceções, acontece com essa teoria o que geralmente acontece com teorias importadas: não são descritas com o rigor metodológico seguido pelo seu criador e/ou são aplicadas sem as adaptações necessárias à realidade nacional.

No caso da law and economics há, ainda, um agravante. Muitos dos seus maiores entusiastas não conhecem nada de ciência econômica e, às vezes, nem mesmo de Direito.

A complexidade dos sistemas sociais, econômicos e jurídicos faz limitadíssimas as capacidades preditivas da economia. Por essa razão, adotar alterações no direito positivo visando unicamente a alcançar vantagens de eficácia econômica é algo que não costuma funcionar porque quase sempre a teoria é surpreendida por uma variável que se apresentou na prática.

Em seu artigo, o autor — e ele mesmo reconhece a possibilidade de ter negligenciado diversos fatores — parte de premissas frágeis e, por isso, chega a conclusões ainda mais frágeis.

Todo seu artigo, advoga a busca por segurança jurídica, celeridade e otimização de custos. Antes de propor as medidas que julga adequadas, o articulista arrola quem teria vantagem com o instrumento particular e quem teria vantagem com a escritura pública.

Segundo ele, ganham com a universalização do instrumento particular para as alienações fiduciárias (1) incorporadoras e loteadoras; (2) pessoas jurídicas e fundos de investimento; (3) consumidores e outros devedores fiduciários.

Ganham com a exigência de escritura pública (1) Notários; (2) Fazendas estaduais e Tribunais de Justiça; (3) Registradores de imóveis.

O argumento de base do autor é o de que os instrumentos particulares reduzirão custos e a adoção das medidas sugeridas por ele — minutas-padrão, minutas universas editadas pelo CNJ e arquivamento e certificação notarial de documentos — garantirão a segurança jurídica.

Se é muito duvidoso afirmar que pessoas jurídicas e fundos de investimento somente terão vantagens com a adoção irrestrita do instrumento particular — desconsiderando-se totalmente os aportes de economia informacional e de segurança resultantes da escritura pública —, é certo que arrolar os consumidores entre os beneficiados é radicalmente equivocado.

É equivocado porque a escritura pública garante ao consumidor período de reflexão e segurança jurídica. Esse é um fato comprovado pela experiência jurídica há algumas centenas de anos. Ademais, dizer que a adoção generalizada dos instrumentos particulares garantiria redução de custos aos consumidores é, no mínimo, ignorar o que em economia se chama de “efeito de catraca”, ou seja, aquele conjunto de circunstância que quase sempre inviabiliza a descida de preços.

Já na relação apresentada pelo autor entre beneficiados/prejudicados pela admissão generalizada do instrumento particular vê-se a fragilidade da premissa adotada e, consequentemente, da conclusão obtida.

Há, ainda, outro vício de premissa que precisa de ser apontado.

Ao elencar as medidas que, segundo ele, seriam suficientes para garantir a segurança jurídica em substituição da escritura pública, o articulista negligencia absolutamente os custos que seriam necessários para implementação delas.

Deixando de lado os gastos que seriam necessários para elaboração de minutas-padrão, os gastos com sua verificação pelas partes e pelo oficial de Registro de Imóveis, concentremo-nos, por um instante, na sugestão de arquivamento e certificação notarial de documentos.

O autor afirma que “se o valor cobrado for atraente, e não há por que não sê-lo, quem não ficaria tentado em solicitá-lo?”

Ora, os procedimentos de certificação e arquivamento podem se mostrar, na prática, muito mais complexos e, por isso, custosos do que a lavratura de escritura pública. Basta que se coloque diante dos olhos as diligências para a certificação e os cuidados com o armazenamento, ainda que digital, da documentação.

Não há absolutamente nenhum indício de que esse procedimento possa ter um “valor atraente”, seja lá o que isso signifique concretamente.

Conclusão

Edmund Burke, em suas Reflexões Sobre a Revolução na França, afirmou que a ciência do Direito “com todos os seus defeitos, redundâncias e erros é a razão acumulada dos séculos, combinando os princípios da justiça com a infinita variedade das preocupações humanas”.

A prática mostra que o vigente regime jurídico das alienações fiduciárias de imóveis tem garantido a um só passo o fomento do mercado imobiliário e a segurança jurídica dos seus agentes.

Não faz sentido — menos ainda com base em ilações de ordem econômica — alterar um sistema que vem desempenhando eficazmente sua função

 


[1] O risco de se utilizar instrumento particular em casos não admitidos por lei é enorme e as consequências são bem explicadas por Sérgio Jacomino a partir das lições de João Mendes Junior. “Ora, contaminado ou inquinado que seja o título por qualquer defeito essencial, exsurge a hipótese de nulidade, fulminando a eficácia que decorre do ato constitutivo ou declarativo do registro. O instrumento – causa remota do registro, ‘motor da ação’, na feliz expressão de JOÃO MENDES DE ALMEIDA JR. – é o documento que porta efeitos jurídicos muito próprios; trata-se de ‘forma especial, dotada de força orgânica para realizar ou tornar exequível um ato jurídico’ ” (Instrumentos particulares, títulos digitalizados – requisitos técnicos. As reformas sucessivas da Lei 14.382/2022).

Autores

  • é livre-docente, doutor e mestre em direito civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP.

  • é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor de Direito Civil da Faculdade de Direito do Mackenzie e do Ibmec.

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