Tribunais de Contas podem exercer controle de segunda ordem nas agências reguladoras?
1 de novembro de 2024, 17h18
Publicado em 23/9/2024, o Boletim de Jurisprudência nº 511 do Tribunal de Contas da União (TCU) trouxe entre seus destaques o Acórdão 1.825/2024 prolatado pelo Plenário, no qual restou consignado que “o TCU pode determinar a agência reguladora que anule dispositivos de ato normativo editado em desacordo com as atribuições legais da agência, em face de desvio de finalidade na sua edição. Tal medida se insere na competência do Tribunal para exercer o controle de segunda ordem sobre as atividades finalísticas e o controle dos atos de gestão praticados no âmbito da entidade”.
Pois bem, e o que seria esse controle de segunda ordem exercido sobre as agências reguladoras?
Nos debruçando sobre a jurisprudência selecionada do TCU, é possível defender que esse controle de segunda ordem, se não é um valor jurídico abstrato nos termos do artigo 20 da Lindb, é um conceito em transformação, transformação essa com viés expansivo, antecipe-se.
O controle de segunda ordem foi introduzido no âmbito do TCU em 2004, onde, sob a relatoria do Ministro Benjamin Zymler, preconizou-se no Acórdão 1.703/2004-Plenário que “a fiscalização do TCU, em processo de regulação, deve ser sempre de segunda ordem, sendo seu objeto a atuação das agências reguladoras como agentes estabilizadores e mediadores do jogo regulatório, não devendo versar sobre esse jogo regulatório em si mesmo considerado”.
Veja que, logo em 2008, apenas quatro anos depois da introdução do conceito, tivemos a sua confirmação no Acórdão 620/2008-Plenário [1] e, já um indício de sua ampliação, pois o Acórdão 602/2008-Plenário [2] estabeleceu a possibilidade de o tribunal de contas determinar a anulação do ato praticado pela agência reguladora.
Mas, se analisarmos os Acórdãos 2.302/2012 [3], 2.314/2014 [4] e 2.071/2015 [5], todos do Plenário do TCU, a amplitude do Acórdão 602/2008-Plenário ali não encontra eco, de modo que, à luz de tais decisões, o conceito de controle de segunda ordem perpassaria pela impossibilidade de o tribunal de contas substituir as agências reguladoras ou a elas se sobrepor.
Ou seja, nesse desenho inicial do chamado controle de segunda ordem haveria um necessário respeito às competências originárias e finalísticas das agências reguladoras. Haveria, portanto, uma premissa de não permitir que o tribunal de contas interferisse nas funções regulatórias próprias das agências reguladoras.
Competências técnicas
Assim, no exercício desse controle de segunda ordem, o tribunal de contas não pode substituir ou se sobrepor às competências técnicas e finalísticas das agências reguladoras. Nessa sua, por assim dizer, “primeira roupagem” o controle de segunda ordem encontrava limites no princípio da separação das funções e no respeito à especialização técnica das agências reguladoras.
Mas veja, por óbvio, o controle de segunda ordem delineado nos Acórdãos 2.302/2012, 2.314/2014 e 2.071/2015 não foi o mesmo que restou aplicado no Acórdão 1.825/2024. O controle de segunda ordem Acórdão 1825/2024 encontrará ressonância no Acórdão 1.166/2019, vez que ali o Plenário do TCU decidiu que a competência daquela Corte de Contas:
“Para fiscalizar as atividades-fim das agências reguladoras caracteriza-se como controle de segunda ordem, cabendo respeitar a discricionariedade das agências quanto à escolha da estratégia e das metodologias utilizadas para o alcance dos objetivos delineados. Isso não impede, todavia, que o TCU determine a adoção de medidas corretivas a ato praticado na esfera discricionária dessas entidades, quando houver violação ao ordenamento jurídico, do qual fazem parte os princípios da finalidade, da economicidade e da modicidade tarifária na prestação dos serviços públicos.”
Perceba-se que a linha adotada pelo Plenário do TCU no Acórdão 1.166/2019 e no Acórdão 1825/2024 não chega a infirmar a assertiva de que as agências reguladoras possuem autonomia para exercer suas competências regulatórias e decisórias, especialmente no que tange à execução de suas funções normativas e de fiscalização de setores específicos da economia.
Entretanto, os acórdãos 1.166/2019 e 1.825/2024 enaltecem a atuação do tribunal de contas no controle da legalidade, legitimidade e economicidade dos atos administrativos, para, s.m.j., invadir o mérito técnico das decisões tomadas pelas agências, pois, claramente, tais decisões conferem uma preponderância da visão do controle externo e ignoram a deferência técnica que deveria advir da atuação especializada da agência reguladora.
Nos debruçando mais detidamente sobre o Acórdão 1.825/2024, verifica-se que ele foi prolatado nos autos de um pedido de reexame interposto contra uma medida cautelar deferida em sede de denúncia onde, por entender ter ocorrido desvio de finalidade no ato de expedição da Resolução Antaq 72/2022 (normativo que permite a cobrança da taxa de serviço de segregação e entrega dos recintos alfandegários independentes pelos terminais portuários), pois teria sido praticado com um fim diverso do previsto no artigo 20, inciso II, alínea ‘b’ e artigo 27, inciso IV, da Lei 10.233/2001 e em afronta ao artigo 36, incisos I e IV da Lei 12.529/2011 e ao artigo 4º, inciso I, da Lei 13.847/2019, o TCU determinou: (i) que a Antaq que, no prazo de 30 dias, anulasse todos os dispositivos da Resolução 72/2022 que dizem respeito à possibilidade de cobrança do serviço de segregação e entrega de contêiner (SSE) e (ii) a suspensão cautelar dos efeitos de todos os dispositivos da Resolução 72/2022 que dizem respeito à possibilidade de cobrança do serviço de segregação e entrega de contêiner.
Veja, se no já mencionado Acórdão 2.071/2015 o TCU entendeu que não lhe cabia avaliar, em casos concretos específicos, a correção das normas editadas por entidades regulatórias, no Acórdão 1.825/2024 houve sim tal avaliação sobre a Resolução Antaq 72/2022 e, a partir de tal avaliação, entendeu-se ter havido um desvio de finalidade que, na prática, é uma ilegalidade.
Certo, diante do que foi escrito até aqui, não há muito o que se discordar que nos últimos 20 anos o TCU vem exercendo esse controle de segunda ordem sobre as agências reguladoras federais de uma forma cada vez incisiva sobre a discricionariedade de tais autarquias. Mas, o que se dizer dos demais tribunais de contas? Estão eles também a exercer um controle de segunda ordem sobre as agências reguladoras sob sua jurisdição?
Função do TCU
Veja, o TCU não é uma corte de contas nacional, nos termos dos artigos 1º e 5º de sua lei orgânica, ele julga as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos das unidades dos poderes da União e das entidades da administração indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo poder público federal; promove a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial das unidades dos poderes da União; aprecia as contas prestadas anualmente pelo presidente da República; acompanha a arrecadação da receita a cargo da União e tem uma jurisdição que abrange os dirigentes ou liquidantes das empresas encampadas ou sob intervenção ou que de qualquer modo venham a integrar, provisória ou permanentemente, o patrimônio da União ou de outra entidade pública federal; os responsáveis pelas contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo e, dentre outros, os responsáveis pela aplicação de quaisquer recursos repassados pela União, mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a estado, ao Distrito Federal ou a município.
Não sendo o TCU uma corte de contas nacional e não possuindo competência para exercer um papel de instância superior dos demais tribunais de contas, se faz necessário averiguar o eventual entendimento dos demais 32 tribunais de contas brasileiros (26 TCs estaduais [6], 1 TC do Distrito Federal, 3 TCs dos municípios [7] e 2 TCs municipais [8]) acerca desse chamado controle de segunda ordem sobre as agências reguladoras.
Pois bem, fazendo remissão expressa ao “Acórdão 2302/12-TCU-Plenário” que estabelece que “o TCU não deve substituir as agências reguladoras em seus atos discricionários”, o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ) proferiu a seguinte decisão no Processo nº 104.718-4/24:
“(…) como órgão de controle de primeira ordem, a agência reguladora se coloca como a entidade pública mais conhecedora das informações da operação e desempenho dos serviços concedidos. Ademais, como cediço, cabe a atuação dos Tribunais de Contas em contratos de concessão na verificação de ilegalidades ou irregularidades na atuação das Agências Reguladoras, detentoras do controle de primeira ordem.”
Assim, das 33 cortes de contas do país só conseguimos localizar decisões em que houve o exercício do controle de segunda ordem em agências reguladoras apenas no TCU, vez que a decisão do TCE-RJ se deu num processo num contexto diverso (que envolvia a análise da interveniência num termo de ajustamento de conduta).
Isso leva a duas considerações
Primeiramente, não há um levantamento da quantidade total de agências reguladoras no Brasil, no âmbito da União, são 11 agências federais [9] e, na área de saneamento básico, segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), são 105 agências infracionais [10] que regulam aquele setor (59 municipais, 20 intermunicipais e 26 estaduais).
Em segundo lugar, apesar de serem presumivelmente numerosas (pois, como dito, só na área de saneamento são 59) e todas sob a jurisdição dos 32 tribunais de contas restantes, as agências reguladoras estaduais, intermunicipais e municipais aparentemente não estão sofrendo um “controle de segunda ordem” como o que está sendo exercido nas agências reguladoras federais por parte do TCU.
Estando então, na prática, o debate restrito ao TCU, restaria saber como o Supremo Tribunal Federal tem analisado o exercício desse controle de segunda ordem que vem sendo exercido por tal corte de contas.
Entretanto, tal debate nunca recebeu uma decisão do STF que seja digna de nota, o que é bem estranho ante ao fato de que, como já dito, o controle de segunda ordem foi introduzido no âmbito do TCU em 2004.
Mas, pelo menos no âmbito do TCU (e atualmente, pelo que foi exposto até aqui, o debate ainda está circunscrito ao TCU), nos parece que, com a edição da Lei Federal nº 13.848/2019 — que estabeleceu em seu artigo 14 que o controle externo das agências reguladoras federais será exercido pelo Congresso Nacional, com auxílio do Tribunal de Contas da União — não há uma perspectiva de que o controle de segunda ordem exercido sobre as agências reguladoras retroaja aos padrões do Acórdão 2.302/2012, sendo muito mais provável que tenhamos mais decisões na mesma linha do Acórdão 1.825/2024.
Ora, como o artigo 70 da CF/88 confere ao controle externo a fiscalização operacional das entidades da administração indireta da União quanto à legalidade, uma decisão como a proferida pelo TCU no Acórdão 1.825/2024, que verificou ilegalidade (no caso, desvio de finalidade) na Resolução Antaq 72/2022, seria, ao fim e ao cabo, perfeitamente hígida.
Em sede de “conclusão” (na verdade, é mais uma provocação), podemos afirmar que, no futuro, ainda precisaremos entender se, como e quando o controle de segunda ordem sobre as agências reguladoras passará a ser exercido pelos outros 32 tribunais de contas do Brasil.
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[1] “O controle exercido pelo Tribunal de Contas da União sobre a área-fim das agências reguladoras deve ser um controle de segunda ordem, vocacionado para exarar determinações apenas quando for constatada a prática de atos ilegais”
[2] “O controle do TCU sobre os atos de regulação é de segunda ordem, na medida que o limite a ele imposto esbarra na esfera de discricionariedade conferida ao ente regulador. No caso de ato discricionário praticado de forma motivada e em prol do interesse público, cabe ao TCU, tão-somente, recomendar a adoção das providências que reputar adequadas. Não é suprimida a competência do Tribunal para determinar medidas corretivas a ato praticado na esfera de discricionariedade das agências reguladoras, desde que viciado em seus requisitos, a exemplo da competência, da forma, da finalidade ou, ainda, inexistente o motivo determinante e declarado. Em tais hipóteses e se a irregularidade for grave, pode até mesmo determinar a anulação do ato”
[3] “A fiscalização do TCU sobre as agências reguladoras é de segunda ordem, cabendo a estas a fiscalização de primeira ordem, bem como as escolhas regulatórias, e ao TCU verificar se não houve ilegalidade ou irregularidade na atuação dessas autarquias especiais”
[4] “Ao exercer o controle externo das atividades finalísticas das agências reguladoras, o TCU deve atuar de forma complementar, exercendo uma fiscalização de segunda ordem, preservando ao máximo o âmbito de competência dessas entidades públicas”
[5] “A atuação do controle externo nas atividades finalísticas das agências reguladoras limita-se a fiscalização de segunda ordem, respeitando os limites de atuação e a autonomia funcional daquelas entidades, não cabendo ao TCU avaliar, em casos concretos específicos, a correção das normas editadas por entidades regulatórias”
[6] Tribunal de Contas do Estado do Acre, Tribunal de Contas do Estado de Alagoas, Tribunal de Contas do Estado do Amapá, Tribunal de Contas do Estado do Amazonas, Tribunal de Contas do Estado da Bahia, Tribunal de Contas do Estado do Ceará, Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo, Tribunal de Contas do Estado de Goiás, Tribunal de Contas do Estado do Maranhão, Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso, Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul, Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Tribunal de Contas do Estado do Pará, Tribunal de Contas do Estado da Paraíba, Tribunal de Contas do Estado do Paraná, Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco, Tribunal de Contas do Estado do Piauí, Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte, Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, Tribunal de Contas do Estado de Rondônia, Tribunal de Contas do Estado de Roraima, Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Tribunal de Contas do Estado de Sergipe e Tribunal de Contas do Estado do Tocantins.
[7] Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia, Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás e Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Pará.
[8] Tribunal de Contas do Município de São Paulo e Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro.
[9] Agência Nacional de Águas (ANA); Agência Nacional de Aviação Civil (Anac); Agência Nacional do Cinema (Ancine); Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel); Agência Nacional de Mineração (ANM); Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP); Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel); Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq); Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
[10] Ver https://www.gov.br/ana/pt-br/assuntos/saneamento-basico/agencias-infranacionais acesso em 13/10/2024.
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