Direito do Agronegócio

Reforma tributária e agronegócio: o Brasil age diferente de outros países?

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  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV Direito SP e Ibet sócio tributarista Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

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1 de novembro de 2024, 8h00

1. Reforma tributária sobre consumo e as discussões no Congresso Nacional

Tivemos a aprovação da Emenda Constitucional nº 132/2023, que prevê significativas alterações na tributação sobre o consumo, dependendo, ainda, da regulamentação por meio de lei complementar.

No momento, entre os projetos de lei complementar, temos o PLP 68/2024, aprovado na Câmara dos Deputados e em andamento perante do Senado Federal.

Existem muitas polêmicas envolvendo referida reforma tributária e respectiva regulamentação perante o Congresso Nacional, no entanto, é comum vermos notícias de que regimes diferenciados, tal como o aprovado para o setor do agronegócio, que inclui a redução à alíquota zero para IBS e CBS de produtos alimentícios da cesta básica, por exemplo, como as carnes, seriam grandes violões e culpados a nos levar a maior tributação do consumo do mundo – alíquota entre 27,5% e 30% [1].

Em outra oportunidade já nos posicionamos apresentando diversos aspectos no sentido de que esta redução para as carnes não beneficiaria os mais ricos, não se tratando de afirmação verdadeira [2].

E, com todo respeito, dizer que o tratamento favorecido ao agronegócio, inclusive, com a exoneração de produtos da cesta básica seriam os grandes vilões da reforma é mais um grande equívoco, tentando-se, como de costume, desviar o foco das reais razões para uma tributação tão alta do consumo no Brasil.

Neste artigo, de forma sintética, buscaremos esclarecer que o Brasil age de modo muito semelhante aos demais países do mundo no tocante à tributação da cadeia ligado ao agronegócio, especialmente, quanto aos alimentos [3].

 2. Agronegócio e a reforma tributária: regime diferenciado

Como já temos afirmado e defendido de longa data, a tributação favorecida e diferenciada na cadeia do agronegócio não é privilégio algum [4]! Trata-se, em verdade, do efetivo cumprimento e respeito às peculiaridades da cadeia deste setor, notadamente, aspectos ligados à agrariedade, em atenção ao princípio da igualdade, além de concretizar direitos fundamentais ligados à essência e existência do ser humano quanto à dignidade (artigo 1º), direito à vida (artigo 5º) e social à alimentação (artigo 6º), cumprindo a pretensão estabelecida no texto constitucional de segurança alimentar e de incentivo e fomento da atividade, inclusive, por instrumentos fiscais ou creditícios (artigo 187).[5].

Spacca

Seguindo, corretamente, tais diretrizes que devem direcionar o legislador, inclusive, constituinte reformador e regulamentador, bem como intérprete [6], houve, então, a aprovação de um regime diferenciado para a cadeia do agronegócio, a partir do texto constitucional – EC 132/2023 –, a ser regulado por lei complementar (artigos 8º e 9º, §§ 1º, 3º e 13, EC 132/23): (1) – redução de 60% para operações com bens e serviços alimentos destinados ao consumo humano, produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura e insumos agropecuários e aquícolas; (2) – alíquota zero para produtos hortícolas, frutas e ovos, bem como produtos destinados à alimentação humana que comporão a cesta básica nacional de alimentos; (3) – produtor rural pessoa física ou jurídica serão contribuintes de CBS/IBS, no entanto, há previsão para que aqueles que obtém receita bruta anual inferior a R$ 3,6 milhões de reais ou seja integrado, fique fora do novo regime, por opção; (4) – biocombustíveis com regime fiscal favorecido a fim de assegurar tributação inferior aos combustíveis fósseis (artigo 225, CF); (5) – Imposto Seletivo não incide sobre bens e serviços com alíquotas reduzidas (artigo 9º, § 9º, EC  132/23).

Em síntese, na prática, teremos: (1) – alguns alimentos com alíquota zero; (2) – produtores rurais como contribuintes, salvo para os pequenos (R$ 3,6 mi) e integrados, que poderão optar em ficar fora do regime; (3) – insumos (antes da porteira), produtos agropecuários (dentro da porteira) e alimentos para consumo humano (após porteira) terão redução de 60% na alíquota, que, levariam, diante de um percentual padrão de 27%, uma efetiva para o setor de aproximadamente 10,8% [7].

3. O Brasil e a tributação em outros países

A grande verdade é que a manutenção de uma tributação diferenciada para o agronegócio no consumo no Brasil não é nenhuma inovação ou novidade, muito menos estamos a praticar “privilégios” que outros países não adotam.

Isto porque, ao se verificar a tributação sobre o consumo, tendo como principal fonte de pesquisa o trabalho realizado “Taxation in Agriculture”, de 2020, da OCDE [8], identificamos que: (1) – em quase todos os países, quanto ao IVA, o valor padrão varia entre 8% e 27%, sendo a média na EU de 22%, enquanto outros países, teríamos percentuais em média de 15%, ou ainda, EUA entre 0% e 10%; (2) – alíquotas de IVA de zero ou reduções para produtos e insumos agropecuários, com algumas exceções como Chile, Dinamarca (25%), Estônia (20%), Japão (10%) e Nova Zelândia (10%); (3) – alimentos básicos não sofrem tributação do IVA ou possuem alíquotas muito reduzidas [9].

Mais do que isso, levando em consideração referida pesquisa, quanto ao agronegócio, temos que, em geral, trazem regimes diferenciados e carga fiscal reduzida para o setor, além de outros incentivos: (1) – os produtos agropecuários e, em especial, alimentos, possuem isenções ou faixas de alíquotas reduzidas, que, em geral, caminham em patamar de aproximadamente 10%, havendo variações para menos e um pouco mais; (2) – maquinários agrícolas também recebem este tratamento; (3) – os combustíveis como insumo para a agricultura recebe, em geral, alíquotas reduzidas, isenções ou mesmo incentivos de reembolso ou ressarcimento do valor ou maior parte; (4) – defensivos e fertilizantes também possuem alíquotas reduzidas na maioria dos países, sendo exceção alíquotas acima de 20%; (5) – a maioria dos países prevê regime especial para produtores rurais, excluindo-os de contribuir, apurar e declarar o IVA, instituindo ainda sistemáticas de cobrança de percentuais fixos por estes no preço como recomposição ou mesmo ressarcimento destes valores pelo poder público, em percentuais que variam entre 2% e 12%, ou seja, não recolhem o imposto e ainda recebem valores como forma de recompor o ônus que sofreu deste tributo em sua operação.

4. Breves conclusões

Tais ponderações nos revelam que, em sede de breve conclusão: (1) – o Brasil, seja na legislação atual, como na reforma tributária, em momento algum, destoa da maioria dos países ao dar um tratamento diferenciado e favorecido ao setor do agronegócio; (2) – a redução de 60% da alíquota para CBS/IBS, que deve chegar na prática ao percentual efetivo entre 10% e 12% para insumos, produtos agropecuários e alimentos não configuraria, em comparação aos demais países, uma carga reduzida, sendo, em verdade, um percentual até mesmo alto, ao se notar a média concedida; (3) – uma alíquota geral no patamar estimado de 27,5%, em comparação aos demais países, configuraria uma das mais altas do mundo, para demais produtos e serviços, inclusive, aqueles do setor do agronegócio que não estejam na alíquota zero ou reduzida; (4) – a adoção de isenção ou alíquota zero para produtos destinados à cesta básica não destoa da política tributária de grande parte dos países, quanto aos alimentos essenciais; (5) – estabelecer previsão para que o produtor rural fique fora do regime da CBS e IBS, não destoa da maioria dos países, os quais, além de também ter resta previsão, ainda possuem formas de ressarcimento da carga tributária assumida na cadeia por este, com ressarcimentos em percentuais fixos que variam entre 2% e 12%, o que não temos em nossa legislação.

Em síntese, resta evidente que o tratamento oferecido de forma diferenciada ao agronegócio brasileiro, além de não ser um privilégio, representa uma política fiscal comum entre os países, especialmente, da OCDE. Ao contrário, em muitos deles, a tributação é ainda mais favorecida, sem contar que a alíquota padrão para as demais operações é menor.

 


 [1] https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/08/23/isencao-de-imposto-para-carne-e-item-que-mais-pesa-na-aliquota-da-reforma-tributaria-diz-fazenda.ghtml

[2] https://www.conjur.com.br/2024-ago-30/reforma-tributaria-carnes-na-cesta-basica-e-aliquota-zero/

[3] Tivemos a oportunidade de trabalhar o assunto com mais detalhes no artigo “Tributação do Consumo, Agronegócio e Direito Comparado” no livro “Tributação do valor agregado: experiência internacional e EC 132/2023”, coordenado por Marcelo Magalhães Peixoto, Caio Augusto Takano e Abel Escório Filho, pela editora MP/APET em 2024.

[4] Sobre o tema: V. CALCINI, Fabio Pallaretti. Tributação no Agronegócio: algumas reflexões. Londrina: THOTH, IBDA, CONJUR, 2023. Cf ainda:  https://www.conjur.com.br/2017-out-20/direito-agronegocio-tributacao-diferenciada-agronegocio-nao-privilegio;

[5] Com maiores detalhes: https://www.conjur.com.br/2023-nov-17/reforma-tributaria-alimentos-e-cesta-basica/

[6] CALCINI, Fabio Pallaretti. Tributação e Agronegócio: Diretrizes para uma interpretação adequada da legislação “in” Quarta com Tributo. REBOUÇAS, Daniele Fukui. GONÇALVES, Cristiano. TAVARES, Vitor. MALUF, Rafael. Rio de Janeiro: Lumen Juris/OAB/MT, 2024. P. 21-26. Vol. 3.

[7] Esta projeção decorre das notícias da alíquota referência que deve ser aprovada. Naturalmente, como a regulamentação não está em vigor, este percentual pode alterar. No entanto, ele é importante a fim de compararmos com as legislações de outros países.

[8] OECD (2020), Taxation in Agriculture, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/073bdf99-en. Outros trabalhos também foram fonte de pesquisa, especialmente,: (i) – ABRAHAM, Marcus. PEREIRA, Vitor Pimentel. Sistemas Tributários do Mundo. Almedina, 2020.; VIEIRA, Lucas. MOURÃO, Pablo. MANICA, Alexandre. ZANON. Simone. Reforma Tributaria e o Agronegócio. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023.; Tributacion de las actividades agrícolas, ganaderas e florestales. Memento Experto. Francis Lefebvre, 2018.

[9] “In almost all countries, standard value added and general tax rates range between 8% and 27% in Hungary (Figure 2.3). The average tax rate in EU Member States is 22%, while for other OECD countries covered, the average rate is lower at 15%. Canada combines a federal sales tax of 5% and provincial taxes, while in the United States, sales taxes only apply at the state or local levels, the total rate varying between states from zero to 10%. Reduced rates are frequently used for some products, in particular agricultural and food products, which are considered as basic necessities. A few countries also apply reduced rates in specific region (Table A B.3). Zero or special reduced Value Added Tax (VAT) rates for agricultural outputs or inputs are offered by all countries apart from Chile, Denmark (standard rate 25%), Estonia (standard rate 20%), Japan (standard rate 10%) and New Zealand (standard rate 15%) (Table 2.5). VAT is often either not levied or levied at reduced rates on basic foodstuffs. Reduced prices of agricultural outputs can be beneficial to farmers via increased demand, but consumers are the main beneficiaries and the target for this policy measure.” (OECD (2020), Taxation in Agriculture, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/073bdf99-en, p. 50.

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  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), professor da FGV Direito SP e Ibet e sócio tributarista Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

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