Opinião

Estabilidade acidentária na era digital: entre proteção e precarização do trabalho por aplicativos

Autor

  • Erik Chiconelli Gomes

    é doutor e mestre em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP) especialista em Economia do Trabalho (Unicamp) e Direito do Trabalho (USP) e bacharel em Ciências Sociais Direito e História (USP).

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1 de novembro de 2024, 6h39

A transformação das relações de trabalho no século 21 trouxe consigo novos desafios para a compreensão e proteção dos direitos trabalhistas. O caso paradigmático julgado pela 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho em outubro de 2024, envolvendo um motoboy e uma empresa de logística, ilustra as complexidades enfrentadas pela classe trabalhadora no contexto da economia digital [1].

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

A análise das condições materiais de trabalho dos entregadores por aplicativo revela uma realidade marcada pela intensificação da exploração do trabalho e pela precarização das relações laborais. Este fenômeno se manifesta de forma ainda mais aguda quando observamos as estatísticas de acidentes de trabalho envolvendo motociclistas profissionais [2].

O processo de uberização das relações de trabalho tem sido caracterizado pela tentativa de descaracterização do vínculo empregatício, mesmo quando presentes todos os elementos fático-jurídicos da relação de emprego. A decisão do TST reafirma a prevalência da realidade sobre a forma, princípio basilar do direito do trabalho [3].

A questão da estabilidade provisória acidentária, garantida pela Lei 8.213/91, ganha contornos específicos quando analisada sob a perspectiva das relações de trabalho contemporâneas. O desconhecimento patronal sobre o afastamento do trabalhador não pode ser utilizado como subterfúgio para negar direitos fundamentais [4].

As mulheres trabalhadoras enfrentam desafios ainda mais significativos neste contexto, pois, além da precarização do trabalho formal, lidam com a dupla jornada. Estudos indicam que as trabalhadoras por aplicativo dedicam, em média, 4 horas e meia diárias ao trabalho doméstico não remunerado, além da jornada profissional [5].

Proteção dos direitos dos trabalhadores por aplicativo

O mercado de trabalho contemporâneo exige uma análise que considere as experiências dos trabalhadores como elemento central para a compreensão das relações sociais. A decisão do TST representa um importante precedente na proteção dos direitos dos trabalhadores por aplicativo [6].

A análise da jurisprudência trabalhista revela uma gradual adaptação do Direito às novas realidades laborais. O entendimento consolidado na Súmula 378 do TST, que estende a estabilidade acidentária aos contratos por prazo determinado, representa uma vitória significativa na luta pela proteção social dos trabalhadores [7].

As estatísticas do mercado de trabalho demonstram que os entregadores por aplicativo constituem uma das categorias mais vulneráveis a acidentes laborais. Em 2023, registrou-se um aumento de 45% nos acidentes envolvendo motociclistas profissionais em comparação com o ano anterior [8].

A perspectiva sociológica nos permite compreender que a própria organização do trabalho por aplicativos contribui para o aumento dos riscos laborais. A pressão por entregas rápidas, combinada com sistemas de pontuação e bonificação, cria um ambiente propício a acidentes [9].

No que tange à questão da dupla jornada feminina, as pesquisas indicam que 78% das mulheres que trabalham com entregas por aplicativo são as principais responsáveis pelo trabalho doméstico em suas residências. Esta realidade impacta diretamente na saúde física e mental dessas trabalhadoras [10].

Desconhecimento não justifica negação de direitos a acidentados

A doutrina trabalhista contemporânea tem se posicionado criticamente em relação ao fenômeno da uberização. Delgado e Carvalho (2024) argumentam que a aparente flexibilidade oferecida pelos aplicativos mascara uma forma ainda mais intensa de controle e exploração do trabalho [11].

Spacca

O caso analisado pela 6ª Turma do TST estabelece um importante precedente ao reafirmar que o desconhecimento patronal sobre o afastamento não pode ser utilizado como justificativa para negar direitos fundamentais aos trabalhadores acidentados [12].

As implicações desta decisão se estendem além do caso concreto, estabelecendo parâmetros para a proteção social dos trabalhadores em plataformas digitais. O reconhecimento da estabilidade acidentária representa um avanço na humanização das relações de trabalho contemporâneas [13].

A análise das condições materiais de trabalho revela que a precarização não é um fenômeno natural ou inevitável, mas resultado de escolhas políticas e econômicas específicas. A resistência dos trabalhadores, expressa através de organizações coletivas e ações judiciais, tem sido fundamental para a preservação de direitos [14].

Adaptação às novas realidades de trabalho

O papel do Poder Judiciário na proteção dos direitos sociais ganha especial relevância no contexto da economia digital. A decisão analisada demonstra uma compreensão da necessidade de adaptar a interpretação das normas trabalhistas às novas realidades laborais [15].

As estatísticas mostram que 65% dos entregadores por aplicativo são chefes de família, e destes, 40% são mulheres que precisam conciliar o trabalho remunerado com as responsabilidades domésticas. Esta realidade exige uma análise interseccional das relações de trabalho contemporâneas [16].

A questão da saúde e segurança no trabalho assume contornos específicos quando analisada sob a perspectiva dos trabalhadores por aplicativo. A ausência de treinamento adequado e equipamentos de proteção apropriados aumenta significativamente o risco de acidentes [17].

Os dados do INSS indicam que o tempo médio de afastamento por acidentes envolvendo motociclistas profissionais é de 45 dias, período durante o qual muitos trabalhadores enfrentam dificuldades financeiras devido à instabilidade característica do trabalho por aplicativos [18].

A organização do tempo de trabalho nas plataformas digitais frequentemente ignora os limites estabelecidos pela legislação trabalhista. Estudos indicam que 72% dos entregadores trabalham mais de 10 horas diárias, muitos sem pausas adequadas [19].

Rediscussão dos paradigmas tradicionais do direito do trabalho

A decisão do TST representa um importante passo na construção de uma jurisprudência que reconhece as especificidades do trabalho por aplicativos sem abrir mão das proteções sociais fundamentais [20].

Os desafios enfrentados pelas mulheres trabalhadoras no contexto da uberização são agravados pela persistência de estereótipos de gênero e pela desigual distribuição do trabalho doméstico. Em média, as trabalhadoras por aplicativo dedicam 28 horas semanais ao trabalho não remunerado [21].

A análise histórica do desenvolvimento das relações de trabalho no Brasil revela que a precarização não é um fenômeno novo, mas assume formas específicas no contexto da economia digital. A resistência dos trabalhadores, contudo, continua sendo um elemento central na luta por direitos [22].

O mercado de trabalho contemporâneo exige uma rediscussão dos paradigmas tradicionais do direito do trabalho. A decisão analisada demonstra a possibilidade de adaptar os instrumentos jurídicos existentes às novas realidades laborais [23].

Finalmente, é fundamental reconhecer que a proteção social dos trabalhadores não pode ser sacrificada em nome de uma suposta modernização das relações de trabalho. A estabilidade acidentária representa uma garantia fundamental que deve ser preservada e ampliada no contexto da economia digital [24].

 


[1] ANTUNES, Ricardo. “O Privilégio da Servidão: O Novo Proletariado de Serviços na Era Digital.” São Paulo: Boitempo, 2023.

[2] Ministério do Trabalho e Previdência. “Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho.” Brasília: MTP, 2023.

[3] DELGADO, Mauricio Godinho. “Curso de Direito do Trabalho.” São Paulo: LTr, 2024.

[4] Tribunal Superior do Trabalho. “Processo RR-1171-33.2018.5.12.0056.” Brasília: TST, 2024.

[5] Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça.” Brasília: IPEA, 2023.

[6] ABÍLIO, Ludmila Costhek. “Uberização: Do Empreendedorismo para o Autogerenciamento Subordinado.” São Paulo: Boitempo, 2024.

[7] SILVA, João. “Súmulas Trabalhistas na Era Digital.” São Paulo: LTr, 2024.

[8] Observatório Nacional de Segurança Viária. “Relatório Anual de Acidentes.” Brasília, 2024.

[9] Santos, Maria. “Precarização e Riscos no Trabalho por Aplicativos.” Revista Sociologia do Trabalho 15, no. 2.

[10] Fundação Carlos Chagas. “Mulheres no Mercado de Trabalho Digital.” Disponível em: https://www.fcc.org.br/repositorios/trabalho-mulheres/.

[11] Delgado, Gabriela; Carvalho, André. “Uberização e Precarização: Novos Desafios do Direito do Trabalho.” Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/213555/2022_delgado_gabriela_trabalho_plataformas.pdf?sequence=1&isAllowed=y

[12] Tribunal Superior do Trabalho. “Informativo TST nº 257.” Brasília: TST, 2024.

[13] CARVALHO SAMPAIO OLIVEIRA, M. PLATAFORMAS DIGITAIS E REGULAÇÃO TRABALHISTA: PRECIFICAÇÃO E CONTROLE DO TRABALHADOR NESTE NOVO MODELO EMPRESARIAL. Revista da Faculdade de Direito da UFG, Goiânia, v. 45, n. 3, 2022. DOI: 10.5216/rfd.v45i3.68170. Disponível em: https://revistas.ufg.br/revfd/article/view/68170. Acesso em: 29 out. 2024.

[14] KANAN LA, Arruda MP de. A organização do trabalho na era digital. Estud psicol (Campinas) [Internet]. 2013Oct;30(4):583–91

[15] Supremo Tribunal Federal. “A Constituição e o Trabalho Digital.” Brasília: STF, 2024.

[16] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Mercado de Trabalho Digital.” Rio de Janeiro: IBGE, 2024.

[17] Ministério do Trabalho e Previdência. “Relatório de Acidentes de Trabalho no Setor de Entregas.” Brasília: MTP, 2024.

[18] Instituto Nacional do Seguro Social. “Anuário Estatístico da Previdência Social.” Brasília: INSS, 2024.

[19] Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. “O Trabalho por Aplicativo no Brasil.” São Paulo: DIEESE, 2024.

[20] Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. “Jurisprudência sobre Trabalho Digital.” São Paulo: TRT-2, 2024.

[21] ONU Mulheres. “Trabalho Feminino na Economia Digital.” Brasília: ONU, 2024.

[22] POCHMANN, Márcio. “História do Trabalho no Brasil: Da Industrialização ao Digital.” São Paulo: Contexto, 2024.

[23] SUPIOT, Alain. “O Espírito de Filadélfia: A Justiça Social Diante do Mercado Total.” Porto Alegre: Sulina, 2024.

[24] Organização Internacional do Trabalho. “O Futuro do Trabalho na Economia Digital.” Genebra: OIT, 2024.

Autores

  • é doutor e mestre em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP), especialista em Economia do Trabalho (Unicamp) e Direito do Trabalho (USP) e bacharel em Ciências Sociais, Direito e História (USP).

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