Opinião

Alienação fiduciária em garantia de bens imóveis e escritura pública

Autor

  • Fernando Netto Boiteux

    é advogado consultor jurídico e sócio fundador de Boiteux Advogados doutor em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) especialista em Integração Econômica e Direito Internacional Fiscal (2005) pela FGV/EBAPE e em Direito de Empresa pela Faculdade de Direito Cândido Mendes (Ucam).

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1 de novembro de 2024, 7h05

O instituto da alienação fiduciária é um instrumento jurídico consolidado e amplamente utilizado pelas instituições financeiras, desempenhando um papel crucial na garantia de operações de crédito, bem como no financiamento de bens móveis e imóveis. A formalização desse negócio jurídico se dá por meio de contrato escrito, o qual estabelece a transferência fiduciária da propriedade do bem ao credor, com a previsão de que, havendo a quitação da dívida, a propriedade será transferida de volta ao devedor.

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O contrato que envolve bens imóveis tem gerado interpretações conflitantes. O artigo 38 da Lei nº 9.514/97 “dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI), institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Ele vem sendo alterado por diversas vezes e, em 2004, passou a admitir que todos os contratos de alienação fiduciária em garantia pudessem ser celebrados por instrumento particular [1].

Meses depois, a redação desse dispositivo foi novamente alterada e passou a dispor que apenas os atos e contratos referidos nessa lei (ou seja, no âmbito do SFI) ou resultantes da sua aplicação poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública [2].

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a seguir o provimento 172 de 5 de junho de 2024 dispondo que:

“A permissão de que trata o art. 38 da 9.514/1997 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI (art. 2º da Lei n. 9.514/1997), incluindo as cooperativas de crédito.” [3].

De outro lado, o CNJ, por meio do Provimento nº 175, de 15 de julho de 2024, ampliou o rol de entidades integrantes do Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI) legitimadas a celebrar contratos de alienação fiduciária em garantia por instrumento particular, nele incluindo as cooperativas de crédito, as companhias securitizadoras, os agentes fiduciários e outros entes sujeitos a regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários ou do Banco Central do Brasil relativamente a atos de transmissão dos recebíveis imobiliários lastreados em operações de crédito no âmbito do SFI, bem como e considerou regulares aqueles contratos lavrados antes de 11 de junho de 2024 (data da entrada em vigor do Provimento CN nº 172) [4].

A partir dos dois provimentos do CNJ acima referidos, duas interpretações são possíveis.

Proteção aos consumidores

Ricardo Campos afirma que o Provimento CNJ 172/2024 assegura maior proteção aos consumidores, pois os agentes do SFI e SFH “atuam de forma imparcial, pois têm exclusivo objetivo de fomentar o crédito imobiliário, ou seja, não têm interesse próprio no negócio jurídico garantido por alienação fiduciária, como outros agentes, a exemplo de construtoras, loteadoras e imobiliárias”, e que a celebração dos contratos por meio de escritura pública contaria com a assessoria de “terceiro imparcial na análise das escrituras de alienação fiduciária, tendo — por dever legal — obrigação de coibir abuso do poder econômico de uma das partes”. [5]

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De outro lado, seria possível sustentar que o artigo 4º, VI, da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) veda a criação de “demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros” [6]. Por ser essa lei posterior à Lei nº 9.514/97, ela vedaria a exigência de escritura pública para a celebração dos contratos em tela, pois esta aumentaria os custos e o tempo na concessão de financiamentos imobiliários.

Ocorre que a necessidade de escritura pública para a celebração de negócios imobiliários está estabelecida como regra geral no artigo 108 do Código Civil/2002 [7]. A redação atual do artigo 38 da Lei nº 9.514/97 estabelece exceções à regra, permitindo o uso de instrumento particular nas hipóteses que especifica, e as exceções devem ser interpretadas restritivamente de maneira que não se pode afirmar que esse dispositivo legal estaria criando “demanda artificial” dos serviços a serem prestados pelos cartórios de notas.

O Provimento CNJ 172/2024 apenas explicitou o disposto na lei, sem ampliar a competência dos tabeliães de notas, ao passo que o Provimento nº 175, de 15 de julho de 2024, ampliou o rol de entidades integrantes do Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI) legitimadas a celebrar esses contratos por instrumento particular, estabelecendo novas exceções.

 


[1] BRASIL. Lei nº 9.514/97 “Art. 38. Os contratos de compra e venda com financiamento e alienação fiduciária, de mútuo com alienação fiduciária, de arrendamento mercantil, de cessão de crédito com garantia real poderão ser celebrados por instrumento particular, a eles se atribuindo o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito.” (Redação dada pela Lei nº 10.931, de 2004).

[2] BRASIL. Lei nº 9.514/97. “Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública.” (Redação dada pela Lei nº 11.076, de 2004)

[3] O CNJ editou o Provimento 172 de 5 de junho de 2024, da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça, incluindo no Código Nacional de Normas – Tomo Extrajudicial (Provimento 149/2024) o artigo 440-AO, deixando expresso que: “A permissão de que trata o art. 38 da 9.514/1997 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI (art. 2º da Lei n. 9.514/1997), incluindo as cooperativas de crédito.” (itálicos apostos). Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5614. Acesso em 25/10/2024.

[4] BRASIL. CNJ. PROVIMENTO N. 175, DE 15 DE JULHO DE 2024

“Art. 1°. O art. 440-AO do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra), instituído pelo Provimento n. 149, de 30 de agosto de 2023, passa a vigorar acrescido do seguinte § 2º, renumerado o atual parágrafo único como § 1º:

‘Art. 440-AO. A permissão de que trata o art. 38 da 9.514/1997 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI (art. 2º da Lei n. 9.514/1997), incluindo:

I – as cooperativas de crédito;

II – as companhias securitizadoras, os agentes fiduciários e outros entes sujeitos a regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários ou do Banco Central do Brasil relativamente a atos de transmissão dos recebíveis imobiliários lastreados em operações de crédito no âmbito do SFI.

§ 1º …

§ 2º São considerados regulares os instrumentos particulares envolvendo alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e os atos conexos celebrados por sujeitos de direito não integrantes do Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI, desde que tenham sido lavrados antes de 11 de junho de 2024 (data da entrada em vigor do Provimento CN n. 172).’” (NR).

[5] Afirma Ricardo Campos: “Com o objetivo do fomento do financiamento imobiliário para pessoas de baixa renda e por serem fortemente regulados e supervisionados por órgãos governamentais, agentes que integram os microssistemas do SFI e SFH atuam de forma imparcial, pois têm exclusivo objetivo de fomentar o crédito imobiliário, ou seja, não têm interesse próprio no negócio jurídico garantido por alienação fiduciária, como outros agentes, a exemplo de construtoras, loteadoras e imobiliárias.

[…]

O entendimento, que vai na esteira daquele firmado pelo colegiado, se lastreia na premissa de que instrumento público garante a segurança jurídica e a previsibilidade esperada por todos os envolvidos nos negócios jurídicos imobiliários. Isso é particularmente relevante para os consumidores, que poderão saber de antemão quais agentes podem utilizar a via do instrumento particular com efeito de escritura pública, sem que corram o risco de futura declaração de nulidade do negócio jurídico por vício de forma. Com a decisão do colegiado, os consumidores, acima de tudo, estarão agora assessorados por terceiro imparcial na análise das escrituras de alienação fiduciária, tendo – por dever legal – obrigação de coibir abuso do poder econômico de uma das partes.”

Nelson Rosenvald segue em sentido semelhante, esclarecendo: “O legislador modificou o artigo 38 da Lei 9.514/94 em duas oportunidades. Em um primeiro momento, entre 1997 e 2001, foi coerente e excepcionou a forma pública somente quando o beneficiário final fosse pessoa física e a operação fosse celebrada dentro do ambiente do SFI. A primeira alteração à redação original deu-se em 2 de agosto de 2004 e teve curta vigência, pois foi novamente alterada em 30 de dezembro de 2004.

Essa primeira alteração trouxe dois grandes impactos, quais sejam: deixou de condicionar o uso do instrumento particular ao fato de o beneficiário final ser pessoa física e deixou de restringir o uso do instrumento particular às operações dentro do ambiente do SFI, de modo que qualquer contrato de alienação fiduciária poderia ser feito de forma particular.

Esse período foi curtíssimo (menos de cinco meses), pois a falha evidente precisou ser corrigida para permitir que o instrumento particular pudesse ser elaborado apenas quando o crédito fosse emanado dentro do ambiente do SFI.”. (CAMPOS, Ricardo. Horizontes da alienação fiduciária imobiliária no CNJ. In: Consultor Jurídico [email protected] 9 de julho de 2024. Acesso em 20/08/2024).

Nelson Rosenvald segue em sentido semelhante, esclarecendo: “O legislador modificou o artigo 38 da Lei 9.514/94 em duas oportunidades. Em um primeiro momento, entre 1997 e 2001, foi coerente e excepcionou a forma pública somente quando o beneficiário final fosse pessoa física e a operação fosse celebrada dentro do ambiente do SFI. A primeira alteração à redação original deu-se em 2 de agosto de 2004 e teve curta vigência, pois foi novamente alterada em 30 de dezembro de 2004.

Essa primeira alteração trouxe dois grandes impactos, quais sejam: deixou de condicionar o uso do instrumento particular ao fato de o beneficiário final ser pessoa física e deixou de restringir o uso do instrumento particular às operações dentro do ambiente do SFI, de modo que qualquer contrato de alienação fiduciária poderia ser feito de forma particular.

Esse período foi curtíssimo (menos de cinco meses), pois a falha evidente precisou ser corrigida para permitir que o instrumento particular pudesse ser elaborado apenas quando o crédito fosse emanado dentro do ambiente do SFI.” (ROSENVALD, Nelson. Avanços recentes na alienação fiduciária em garantia sobre imóveis. In: Conjur, 10 de agosto de 2024, 17h22. Disponível em: Avanços recentes na alienação fiduciária em garantia sobre imóveis (conjur.com.br). Acesso em 20/08/2024.

[6] BRASIL. Lei nº 13.874/2019. “Art. 4º É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta Lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta Lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente:

[…]

VI – criar demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros;”

[7] BRASIL. Cód. Civil. “Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.”

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  • é advogado, consultor jurídico e sócio fundador de Boiteux Advogados, doutor em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Integração Econômica e Direito Internacional Fiscal (2005), pela FGV/EBAPE e em Direito de Empresa pela Faculdade de Direito Cândido Mendes (Ucam).

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