Opinião

Teratologia das execuções milionárias em trâmite nos Juizados Especiais Cíveis

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1 de novembro de 2024, 16h21

Sabe-se que a pretensão para postular em um Juizado Especial Cível é limitada pela alçada legal de 40 salários-mínimos para a Justiça estadual (artigo 3º, I, da Lei 9.099/1995) e de 60 salários para a federal (artigo 3º da Lei 10.259/2001).

Muito embora os JECs tenham sido instituídos para processar e julgar casos de menor complexidade e de baixo valor econômico, não é raro encontrar decisões judiciais que autorizam processamento de execuções até mesmo milionárias, sob a justificativa de que o juizado é competente para processar suas execuções, ainda que ultrapassem, em qualquer medida que seja, a alçada legal.

Muitas dessas decisões acabam por concluir que a exorbitância no momento da execução é irrelevante, pois a competência seria definida com base no valor da causa escolhido no ato de ajuizamento, o que não parece encontrar aderência ao disposto no artigo 39 da Lei 9.099/1995, segundo o qual “é ineficaz a sentença condenatória na parte que exceder a alçada estabelecida nesta Lei”.

Ocorre que, ainda que prevalecesse o entendimento de que o valor a ser considerado para o limite da alçada fosse exclusivamente o do ajuizamento da ação (“valor da causa”), poucos são aqueles juízos que de fato verificam no ato do ajuizamento se o valor definido pela parte realmente corresponde ao conteúdo econômico de sua pretensão ou se é uma ficção atribuída pelo autor exclusivamente para colher os benefícios do rito sumaríssimo.

O que diz a lei

A Lei 9.9099/95 não deixa dúvidas. A opção pelo procedimento de menor complexidade importará em renúncia ao crédito excedente, nos exatos termos do artigo 3º, I, §3º da Lei 9.099/95:

“Art. 3º O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas:

I – as causas cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo;

[…]

§3º A opção pelo procedimento previsto nesta Lei importará em renúncia ao crédito excedente ao limite estabelecido neste artigo, excetuada a hipótese de conciliação.”

Para além disso, duas outras regras da Lei 9.099/95 devem ser obedecidas em conjunto com a anterior, quais sejam, (1) a vedação da sentença condenatória ilíquida, e (2) a ineficácia da sentença condenatória que exceder a alçada legal:

“Art. 38. A sentença mencionará os elementos de convicção do Juiz, com breve resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência, dispensado o relatório.

Parágrafo único. Não se admitirá sentença condenatória por quantia ilíquida, ainda que genérico o pedido.

Art. 39. É ineficaz a sentença condenatória na parte que exceder a alçada estabelecida nesta Lei.”

A vedação da condenação ilíquida e excedente ao teto legal demonstra a preocupação do legislador, para fins de definição de competência e de procedimento, não somente quanto ao momento de ajuizamento, como também no momento da sentença. No entanto, não são poucas as sentenças proferidas sem fixar qualquer valor para a condenação, normalmente fundamentadas na alegação de que tais cálculos dependem apenas de “meros cálculos aritméticos”, motivo pelo qual não precisariam ser realizados naquele momento.

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Na prática, essa conduta mascara a iliquidez dessas decisões e impede que, nesse momento crucial, seja confirmado se o valor atribuído à causa pela parte autora respeitou o teto legal, de modo que, ao não verificar o valor da condenação no momento da sentença, o juiz pode deixar passar casos em que o autor atribuiu um valor arbitrário à causa e, por consequência, deixar de aplicar a renúncia ao crédito excedente prevista no aqui aludido artigo 3º, I, § 3º, da Lei 9.099/95.

Entendimento dos tribunais

Não é incomum encontrar juízos que se considerem aptos a processar nos juizados execuções de qualquer valor pecuniário, por mais altos que sejam, podendo inclusive chegar à casa do milhão.

Para exemplificar, podem-se observar decisões proferidas em dois casos distintos que enfrentaram o mesmo problema jurídico. No primeiro caso (Execução nº 1000006-78.2017.8.11.0109, Tribunal de Justiça de Mato Grosso), que se tratou de ação anulatória de negócio jurídico, com pedido de repetição de indébito em dobro, a parte autora atribuiu à causa, em 19/4/2017, o valor no teto da época de R$ 37.480, quando ela sabia já tinham sido descontados de seu benefício previdenciário históricos R$ 66.392,23, diga-se, sem a dobra que ela pediu, atualização monetária ou juros.

Dois anos depois, em 2019, foi sentenciado o feito e teve início uma execução de mais de R$ 400 mil, que apesar de inflacionado pelos consectários legais aplicáveis no decorrer do tempo, se desdobra de uma pretensão econômica que desde o início era muito maior do que o declarado incialmente e excede, em muito, o limite permitido pelos juizados especiais.

Apontado o excesso em embargos à execução, o TJ-MT entendeu que o valor da execução não era relevante, desde que se respeitasse a alçada legal no momento do ajuizamento, o que, repita-se mais uma vez, igualmente não foi respeitado, já que o valor inicialmente atribuído à causa não refletia, nem de longe, o proveito econômico pretendido com a demanda que desde a origem superava o teto legal.

No segundo caso (Execução nº 0036025-82.2022.8.03.0001, Tribunal de Justiça do Amapá), de natureza semelhante, verificou-se que apesar de a parte autora ter atribuído à causa valor pouco superior aos R$ 35 mil, o pedido também foi o da repetição do indébito em dobro, o que fez com que já no ato de ajuizamento o valor de causa ultrapassasse significativamente o limite legal, vício novamente não vislumbrado pelo juízo da causa.

O TJ-AP, diferentemente do TJ-MT no caso anterior e ao analisar a execução, reconheceu que, no ato do ajuizamento, a parte autora não calculou adequadamente o valor da causa, resultando na perda de valores da sua pretensão ao formular um pedido que ultrapassou a alçada legal dos Juizados Especiais, aplicando à espécie justamente a disposição do artigo 3º, I, § 3º, da Lei 9.099/95.

Apesar da semelhança dos casos, os entendimentos divergiram, na medida em que em um deles foi realmente apurada a situação da iliquidez da sentença e o conteúdo fictício do valor atribuído à causa, enquanto no outro se passou completamente por cima dessa importantíssima condição processual para a higidez do rito sumaríssimo.

Na jurisprudência, no geral, é possível concluir que é pacificado o entendimento acerca da renúncia tácita do valor excedente. O que pode incidir, para além do limite legal, é a correção monetária e os juros de mora, conforme esclarece o aresto abaixo, de lavra do STJ:

“PROCESSO CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. JUIZADO ESPECIAL. COMPETÊNCIA. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. MULTA COMINATÓRIA. ALÇADA. LEI 9.099/1995. RECURSO PROVIDO. 1. A jurisprudência do STJ admite a impetração de mandado de segurança para que o Tribunal de Justiça exerça o controle da competência dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, vedada a análise do mérito do processo subjacente. 2. Dispõe o art. 3º, § 1º, inciso I, da Lei 9.099/95, que compete ao Juizado Especial promover a “execução dos seus julgados”, não fazendo o referido dispositivo legal restrição ao valor máximo do título, o que não seria mesmo necessário, uma vez que o art. 39 da mesma lei estabelece ser “ineficaz a sentença condenatória na parte em que exceder a alçada estabelecida nesta lei”. 3. O valor da alçada é de quarenta salários mínimos calculados na data da propositura da ação. Se, quando da execução, o título ostentar valor superior, em decorrência de encargos posteriores ao ajuizamento (correção monetária, juros e ônus da sucumbência), tal circunstância não alterará a competência para a execução e nem implicará a renúncia aos acessórios e consectários da obrigação reconhecida pelo título. (…) Redução do valor executado a título de multa ao limite de quarenta salários mínimos. 7. Recurso provido.” (RMS 33.155/MA – rel. ministra Maria Isabel Gallotti – 4ª Turma – DJe 29/8/2011)

O problema reside na falta de apuração matemática dos valores envolvidos tanto no ajuizamento da ação quanto no momento da sentença.

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Seria o caso de o processo passar pela contadoria judicial, que já deve ser instruída a expurgar o excedente da alçada legal (ainda que isso, por si só, demonstre complexidade incompatível com o rito dos Juizados)? Ou os próprios tribunais ou o CNJ devem editar atos normativos para reforçar em seus procedimentos internos a obediência aos limites típicos dos juizados aqui abordados?

Situação dos devedores

É gravíssima a insegurança jurídica causada aos devedores que, na difícil tarefa de demonstrar a falta de nexo entre os valores das causas e o seu conteúdo econômico na execução, possuem meios reduzidos de defesa nos juizados, que inclusive não admitem a elaboração de perícias contábeis que pudessem revelar o excesso pretendido desde o início dos processos.

De todo modo, para contribuir com a superação do problema, é necessário que os réus e os seus advogados sejam mais combativos para sempre atacarem esses comuns excessos logo em suas contestações. Para além disso, é dever também dos próprios magistrados serem mais atentos a essa prática de atribuição de valor da causa fictício para que cesse a conivência a essa prática que vem sendo observada sistematicamente entre operadores do direito que atuam nos juizados.

Até lá, muitos devedores poderão ser prejudicados em razão das execuções excedentes aos limites legais praticados no âmbito dos juizados especiais e da falta liquidez de muitas sentenças proferidas, considerando o caráter proforma dos valores das causas atribuídos pelos autores e a complexidade matemática que só vem ser constatada depois da sentença.

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