Opinião

Os 60 anos do golpe de Estado de 1964 e a justiça de transição

Autores

  • é professora associada e vice-diretora da Faculdade de Direito do Recife/Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE; doutora em Direito pela UFPE com estágio doutoral na Universidade de Coimbra/Portugal; é mulher trans e seu nome de nascimento foi Bruno Galindo nome sob o qual está registrada a maioria de seus textos (livros artigos e ensaios) já publicados.

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  • é professor do Centro Universitário Asces-Unita; doutor em Direito e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e presidente da Comissão de Relações Internacionais da OAB/Caruaru.

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31 de março de 2024, 6h08

“Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar”
João Bosco & Aldir Blanc: “O Bêbado e a Equilibrista”

No final dos anos 1970 do século 21, Bosco e Blanc criaram a canção que, imortalizada na voz de Elis, se tornou o hino da redemocratização do Brasil. Pensada por Bosco para homenagear Chaplin, falecido pouco antes, Blanc, no entanto, quis aproveitá-la para falar dos tempos difíceis que ainda estavam em curso no país, pois o regime de exceção iniciado em 1964 só teria seu fim quase 6 anos depois, apesar do maior abrandamento a partir de 1979.

O golpe de Estado de 1964 completa 60 anos neste domingo. E o Brasil ainda carece de uma justiça de transição que dificulte que golpes de Estado na forma tentada ou consumada tenha lugar em nosso regime constitucional pós-1988 com a Constituição em vigor.

O termo ‘justiça de transição’

Oriundo da expressão transitional justice, foi criado por Ruti Teitel, professora da New York Law School, em ensaio de 1991, para designar o processo de construção de uma concepção de justiça ligada a períodos de transição política ao regime democrático. Para a autora, a justiça de transição almeja dar respostas jurídicas para superação das atrocidades e violações de direitos humanos ocorridas durante regimes autoritários. [1]

Embora a terminologia seja relativamente recente, as origens da justiça de transição remontam aos julgamentos dos nazistas no Tribunal de Nuremberg e os processos de desnazificação realizados na Alemanha e países ocupados pelas forças do Eixo após a 2ª Guerra. Teitel também esclarece que, no Pós-Guerra Fria, mecanismos de justiça de transição se disseminaram, começando pela América do Sul, alcançando a seguir o Leste Europeu, África e América Central, através de uma onda de redemocratização, sendo determinante para a superação de vários regimes autocráticos. [2]

No início do século 21, o Relatório nº S/2004/616 do Conselho de Segurança da ONU consagrou o conceito de justiça de transição no âmbito internacional. De acordo com o relatório, esta é composta de uma série de mecanismos associados em prol da finalização e da superação das graves violações de direitos humanos do passado autoritário de uma sociedade, tendo no horizonte a construção de regimes garantidores da democracia e dos direitos humanos.

Nesse sentido, a justiça de transição abrange mecanismos judiciais e não-judiciais através de ações estratégicas como processos de natureza penal, civil e/ou administrativa contra agentes do regime autocrático, compensações (pecuniárias ou não) às vítimas das graves violações, políticas de memória e verdade e reformas institucionais no Estado.

Estas ações estratégicas para implementação da justiça de transição formam os seus eixos básicos. Embora não haja consenso teórico sobre o número exato de elementos componentes da justiça de transição, a maioria das análises propõe quatro ou cinco eixos principais focados no direito à memória e à verdade, responsabilização do Estado e de seus agentes, reformas institucionais e reparação às vítimas e à sociedade. [3]

Justiça de transição no Brasil

Sabadell e Dimoulis caracterizam o processo transicional brasileiro como uma justiça de transição do olvido, isto é, do esquecimento, chamando a atenção especialmente para as deficiências na implementação do direto à memória e à verdade, quanto aos fatos ocorridos durante o regime ditatorial pós-1964. [4]

O termo olvido também significa que a justiça de transição no Brasil, de uma forma geral, optou por realizar um processo de esquecimento das atrocidades e graves violações de direitos humanos ocorridas no período em questão, principalmente em relação à responsabilização criminal por elas.

Agência Senado

O marco legal inicial da justiça de transição no Brasil foi a promulgação da Lei 6683/1979 (Lei de Anistia), que anistiou crimes políticos e conexos ocorridos entre 1961 e 1979.

A LA foi fruto de grande mobilização da sociedade civil em todo o país, que reivindicou uma anistia ampla, geral e irrestrita para todos os presos e exilados. Instituições que inicialmente haviam apoiado o golpe de 1964, como a Igreja Católica e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) passaram a pressionar politicamente pela retomada da normalidade constitucional. [5]

Todavia, a proposta de anistia ampla acabou derrotada no Congresso Nacional, no qual o projeto de lei aprovado excluiu expressamente os chamados “crimes de sangue”, isto é, os crimes políticos que envolviam homicídios e delitos violentos em geral. Isso só foi modificado pela Emenda Constitucional 26/1985 à Constituição de 1967/1969, já nos preparativos para a Assembleia Constituinte.

A Constituição de 1988 foi um dos mais importantes alicerces jurídicos para o Estado democrático de direito, assegurou direitos fundamentais, independência dos três poderes e dos entes da Federação, dando ainda novas configurações às funções essenciais à justiça, como o Ministério Público.

Por outro lado, a Carta não avançou em todos os aspectos. Notadamente em relação às estruturas institucionais dos órgãos de segurança e das Forças Armadas, foram pouco alteradas em relação à sua configuração anterior.

O artigo 142 da Constituição não determinou a subordinação dos poderes constituídos às Forças Armadas, apesar da interpretação exótica que lhe tem sido dada nos últimos anos, mas expressamente as colocou sob o comando do presidente da República, estipulando seu dever de obediência aos poderes constitucionalmente estabelecidos.

No período do governo Fernando Henrique foram criadas duas comissões justransicionais, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos e a Comissão de Anistia. A continuidade do funcionamento dessas no governo Lula (imediatamente subsequente), permitiu avanços na temática, em especial nas políticas de reparação às vítimas e em algum grau da memória e verdade.

No que diz respeito à justiça material punitiva, entretanto, não se avançou muito no âmbito judicial. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a ADPF 153 proposta pelo Conselho Federal da OAB e confirmou interpretação correntemente dada à LA de que esta alcançaria também os crimes de lesa humanidade cometidos por agentes do regime.

Apesar disso, naquele mesmo ano de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou o Caso Gomes Lund/Guerrilha do Araguaia, relativo aos opositores, guerrilheiros e camponeses executados pelas forças militares no início da década de 1970, na região do rio Araguaia.

Para a referida Corte, a LA brasileira seria inválida por ser uma “autoanistia”, isto é, uma anistia concedida pelo próprio regime autoritário a seus agentes, considerando também a norma incompatível com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, acrescentando que o STF deveria fazer controle de convencionalidade, aplicando a jurisprudência da Corte IDH a respeito desde o Caso Almonacid Arellano (2006). [6]

A sentença do Caso Gomes Lund possibilitou a instalação da Comissão Nacional da Verdade (CNV) em 2012, durante o governo Dilma Rousseff. O relatório final foi entregue dois anos depois, registrando que a ditadura vitimou 434 pessoas individualmente identificadas, sendo 191 homicídios, 210 pessoas desaparecidas sem localização e 33 pessoas desaparecidas com corpos já localizados.

Porém, a CNV admite que estes números podem ser maiores em virtude de vítimas não identificadas, especialmente entre camponeses e indígenas. O relatório da CNV também identificou 377 agentes estatais que figuraram como autores de graves violações de direitos humanos durante o período, configurando assim, a sua responsabilidade político-institucional no plano administrativo. [7]

A partir da criação da CNV, inúmeras instituições similares foram instaladas em todo o Brasil a nível estadual ou municipal. Participaram dos trabalhos destas comissões não só representantes do Estado, mas de movimentos sociais, universidades, OAB, dentre outros.

Infelizmente, os resultados trazidos pela CNV e comissões estaduais e municipais não conseguiram ter apelo social robusto para promover os avanços da justiça de transição no país.

Como destacado pelo segundo autor deste ensaio em outro trabalho, é possível que o distanciamento no tempo tenha contribuído para isso, já que a CNV foi instalada quase 30 anos após o término da ditadura, ao passo que o mais comum, como aconteceu em países como Argentina, Chile e África do Sul, é que tais entes sejam criados logo após o término do período autoritário. [8]

As informações constatadas não tiveram a visibilidade social necessária e veio a seguir uma onda de negacionismos, possibilitando, aliás, que apologistas da ditadura pós-1964 alcançassem relevantes espaços políticos nos parlamentos e poderes executivos, sendo o caso mais notório o do ex-presidente da República Jair Bolsonaro.

Nestes termos, a justiça de transição do olvido nos últimos dez anos foi substituída por um revisionismo histórico e factual até então sem precedentes no Brasil, fazendo retrocederem conquistas que a justiça de transição nacional tinha alcançado.

60 anos do golpe e estágio atual da justiça de transição brasileira

O golpe de Estado de 1964 que ocasionou 21 anos de regime autoritário, com os recorrentes crimes de lesa humanidade e graves violações de direitos humanos que ocorrem em regimes políticos de tal natureza tem sido lembrado quando está por completar 60 anos.

Tal lembrança não se justifica apenas pela necessidade de rememoração de um fato triste e importante da história do Brasil. Para a construção de um pleno Estado democrático de direito, faz-se necessária a superação do legado autoritário ainda vivo na sociedade brasileira, sendo a justiça de transição o meio fundamental a esse desiderato.

Contudo, os retrocessos justransicionais dos últimos anos trouxeram abalos à institucionalidade e ao regime democrático, como os frequentes discursos e atos violentos contra o Estado democrático de Direito, a apologia ao passado autoritário, políticas de segurança pública focadas na violência policial indiscriminada e normalização das violações de direitos humanos.

Em outro estudo, a primeira autora deste ensaio destaca que um passado autoritário não é superado por meio do esquecimento e suplantar o autoritarismo significa exorcizar seus fantasmas, através de ações que possam prevenir situações tais no futuro.

Destaca ainda que o maior entrave para a justiça de transição no Brasil é no âmbito da justiça material/punitiva, particularmente através da responsabilização penal dos agentes que cometeram graves violações de direitos humanos no período.

No estudo, alude ao fato de que em países como Argentina e Chile isto foi realizado em boa medida, ao passo que no Brasil, o entendimento do STF na ADPF 153, equiparando os delitos cometidos por opositores do regime e por agentes do Estado autoritário, na verdade consolidou uma situação de complacência com o autoritarismo. [9]

A mais grave das consequências disso certamente foi a tentativa de golpe de Estado perpetrada em 8 de janeiro de 2023, ora sendo objeto de inúmeros processos penais face o cometimento de crimes contra o Estado democrático, tipificados no Código Penal com os acréscimos da Lei 14197/2021, em especial os dos arts. 359-L e 359-M.

Sessenta anos depois, pouquíssimos perpetradores de graves violações de direitos humanos elencados no relatório da CNV estão vivos para responderem por seus crimes. Porém, a revogação ou invalidação por inconvencionalidade da LA ainda não seria intempestiva, considerando que representaria um gesto simbólico e material de rejeição ao passado autoritário.

Há a ADPF 320 em curso no STF que se julgada procedente pode trazer uma nova oportunidade para o necessário resgate da justiça de transição no Brasil.

A não comemoração do Golpe de 1964 pelas Forças Armadas neste ano de 2024 não deixa de ser um avanço após quase 10 anos de negacionismo e revisionismo no contexto transicional nacional. Porém, até que ponto esse novo olvido pode realmente suplantar a herança autoritária ainda tão presente em nossa sociedade, instituições e sistema jurídico, e que ronda nossa frágil democracia?

Nossa esperança de um Estado democrático de Direito sólido ainda parece dançar “na corda bamba de sombrinha” e “em cada passo dessa linha pode se machucar”…

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[1] TEITEL, Ruti. Globalizing Transitional Justice – Contemporary Essays. Oxford: University Press, p. 3, 2014.

[2] TEITEL, Ruti G. Genealogia da Justiça Transicional. In: REÁTEGUI, Félix (org.). Justiça de Transição: Manual para a América Latina. Nova York: Centro Internacional para Justiça de Transição, p. 135-170, 2011.

[3] QUINALHA, Renan Honório. Justiça de Transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras Expressões; Dobra, 2013.

[4] SABADELL, Ana Lucia; DIMOULIS, Dimitri. Anistias Políticas: considerações de história e política do direito. In: SABADELL, Ana Lucia; SIMON, Jan-Michel; DIMOULIS, Dimitri (orgs). Justiça de Transição: das anistias às comissões de verdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 249-278, 2014.

[5] PEREIRA, Anthony W. Ditadura e Repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

[6] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund/“Guerrilha do Araguaia” e outros versus Brasil. 24/11//2010. Sentenças. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf. Acesso: 16/01/2024.

[7] BRASIL. Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014, v. 1. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/todos-volume-1.html. Acesso: 24/01/2024.

[8] ASSIS, Emerson Francisco de. Índice de Avaliação de Processos Transicionais (IAPT): uma proposta para maior objetividade na análise de processos de justiça de transição. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 41, 2017, Caxambu-MG. Anais Eletrônicos […] Caxambu: ANPOCS, 2017. Disponível em: https://biblioteca.sophia.com.br/terminal/9666/acervo/detalhe/2975?guid=1706130809730&returnUrl=%2fterminal%2f9666%2fresultado%2flistar%3fguid%3d1706130809730%26quantidadePaginas%3d1%26codigoRegistro%3d2975%232975&i=1. Acesso: 24/01/2024.

[9] GALINDO, Bruno. Justiça de Transição na América do Sul: possíveis lições da Argentina e do Chile ao processo constitucional de transição no Brasil. In: FEITOSA, Enoque; FREITAS, Lorena; SILVA, Artur Stamford da; CATÃO, Adrualdo; RABERNHORST, Eduardo (orgs.). O Judiciário e o Discurso dos Direitos Humanos, v. 2.  Recife: Universitária (UFPE), p. 197-240, 2012.

Autores

  • é professora associada (Direito Constitucional) e vice-diretora da Faculdade de Direito do Recife/Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE (doutorado e mestrado), doutora em Direito pela UFPE/Universidade de Coimbra-Portugal (estágio doutoral). É mulher trans e seu nome de nascimento foi Bruno Galindo, sob o qual está registrada a maioria de seus textos (livros, artigos e ensaios) já publicados.

  • é professor do Centro Universitário Asces-Unita; doutor em Direito e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e presidente da Comissão de Relações Internacionais da OAB/Caruaru.

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