Algumas pessoas não podem atuar como testemunhas diante de alguma espécie de parcialidade em relação ao objeto litigioso ou às partes. O sentimento pessoal de alguém quanto a um dos litigantes pode ser um desses obstáculos à participação no processo como testemunha.
No CPC/1973, o amigo íntimo e o inimigo capital foram considerados suspeitos para depor (artigo 228, VI), previsão que viria a ser mantida pelo atual Código Civil (artigo 228, IV).
De acordo com Robson Godinho, inimigo capital seria uma “designação antiga e vinculada ao duelo” [1]. A alusão, com sabor medieval, parece ser tão anacrônica que, nos dias de hoje, dá lugar a episódios anedóticos.
Talvez alguém se recorde de que o ministro aposentado Marco Aurélio de Mello, em certo momento, afirmou ser inimigo capital do ministro Gilmar Mendes e que essa inimizade seria tão grande que “caso estivessem no século 18”, só poderia acabar “em duelo” [2].
Mas a regra é, realmente, muito antiga. Não prevista no CPC/1939 nem no CC/1916, a suspeição do inimigo capital remonta, no ordenamento jurídico brasileiro, às Ordenações Filipinas, em que estavam elencadas as circunstâncias ensejadoras da qualificação: a prática de crime, o ajuizamento de ação que envolvesse a totalidade ou a maioria dos bens, a agressão física e o homicídio em relação à parte, à sua mulher, ao seu filho, neto ou irmão ou, ainda, o cometimento de adultério com a mulher do litigante ou de algum daqueles outros familiares (Livro III, Título LVI, § 7).
Solução
Ocorre que o CPC de 2015 promoveu uma pequena alteração na previsão e deixou de exigir que o inimigo fosse “capital”. Agora, basta que seja inimigo para a qualificação como suspeito (artigo 447, §3º, I).
O dispositivo evidencia interessante juízo do legislador a respeito da natureza humana. Presume-se, em razão da inimizade, a ausência de isenção, em um tal grau em que o sujeito estaria disposto a cometer um crime (artigo 342, CP), não fosse a exclusão legal do compromisso, para satisfazer o impulso de saber-se causador de prejuízo ao seu desafeto ― outra palavra, aliás, que não parece pertencer aos tempos atuais.
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A previsão legal é rigorosa: o inimigo não pode depor como testemunha, exceto quando “necessário” (artigo 447, § 4º, CPC), isto é, somente quando não existir outra prova capaz de permitir o alcance de resultado equivalente [3], situação em que prestará seu depoimento independentemente de compromisso (artigo 447, § 5º, CPC).
Limita-se, então, a prova ainda na etapa da admissibilidade [4], presumindo-se que o senso moral do sujeito ou seu eventual interesse no adequado esclarecimento dos fatos não serão o suficiente para abrandar, no contexto de realização de um ato solene perante o Poder Judiciário, o furor da inimizade.
A opção legislativa é questionável [5], é verdade, mas é esta a solução que está posta.
Fidelidade ao ódio
De qualquer modo, deixou-se a previsão de amizade íntima, suprimindo-se a exigência do caráter capital da inimizade (artigo 447, §3º, I). Para parte da doutrina, a norma não mudou: não basta que seja inimigo, mas que essa inimizade gere um estado anímico que “possa levar à alteração do relato dos fatos” [6], em que a “forte animosidade exterioriza ódio e desejo de desforra, como sucede nos fatos típicos penais” [7]. Assim, tanto a amizade deve ser íntima, como a inimizade deve ser qualificada.
Pensamos um pouco diferente. É que, para o brasileiro, afirmar ser amigo de alguém, em geral, não depende de uma intimidade. O colega de trabalho, vizinho, muitas vezes pode ser identificado como amigo pela convivência.
A amizade íntima seria uma situação de maior contato, em que as pessoas realmente convivem entre si, uma frequenta a casa da outra etc. Conhecem, em medida considerável, aspectos das suas vidas privadas e nelas estão inseridas.
A inimizade, em si, já é algo menos corriqueiro. Não nos parece que exista o inimigo “colega” ou “conhecido”. O ser humano, afinal, é mais fiel ao ódio do que ao amor, como dizia Nelson Rodrigues. Para que alguém qualifique uma outra pessoa como inimigo, já é necessário haver um sentimento bastante intenso. Em outros termos, o fato de ser inimigo já o qualifica como suspeito para testemunhar.
A volta da qualificação
Esses apontamentos têm por objetivo a reflexão sobre o que vem sendo divulgado como redação da relatoria-geral de um dos dispositivos do anteprojeto de reforma do Código Civil. O texto proposto mantém a redação do artigo 228, IV [8], exigindo que a pessoa seja inimiga capital para que não se admita seu depoimento como testemunha.
Não nos parecer ser o caso.
Primeiro, por uma simples questão de uniformidade legislativa. Menos de dez anos atrás o atual CPC foi publicado, estando em vigor há pouco mais de oito anos, tendo o legislador optado por deixar de exigir a qualificação da inimizade como capital.
Não foi por acaso, perceba, que o legislador dispensou a desafiadora prova de que, em determinada relação, a inimizade cultivada alcança seu mais elevado patamar. Será apropriado, agora, voltar a exigir essa qualificação?
Segundo, a qualificação de inimigo capital não parece ser necessária. Sempre que líamos a expressão, a sensação era de estar em um filme de ação no qual o vilão principal era o inimigo capital do protagonista.
Quase o vilão do primeiro filme de John Wick, que mata o seu cachorro e desencadeia o melhor filme de ação dos últimos tempos. Ou mesmo, saindo da tela do cinema para o cenário político, a relação entre o atual presidente Lula e o seu antecessor, Jair Bolsonaro.
Para que alguém seja suspeito de ser testemunha basta que seja inimigo. Não precisar ser “o” grande inimigo. Capital pode também remontar à ideia de principal, e não é isso que é necessário para que haja suspeita no testemunho. Até porque a ideia de principal é a de que, no mínimo, existam poucos naquele nível.
Alguém (espero que não seja o nosso caso) pode ter vários inimigos e todos seriam suspeitos para testemunhar, mas essa mesma pessoa apenas deve ter um ou poucos inimigos capitais.
Enfim, sugere-se que, enquanto há tempo, os especialistas que estão realizando as últimas alterações no anteprojeto de reforma do Código Civil retirem a qualificação de inimigo capital. Ainda há tempo para dispensar os duelos.
[1] GODINHO, Robson Renault. Comentários ao art. 447. In: DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DANTAS, Bruno (coords). Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 1138.
[2] https://veja.abril.com.br/politica/marco-aurelio-sobre-duelo-com-gilmar-escolheria-arma-de-fogo.
[3] MARINONI, Luiz Guilherme; arenhart, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado. 9ª ed. São Paulo: RT, 2023, p. 576.
[4] É curioso perceber que o Código de Processo Civil da Bahia, de 1915, adotava solução diferente, com enfoque no momento da valoração da prova, não da sua admissibilidade. O art. 189 do Código previa que as testemunhas suspeitas de parcialidade, como o inimigo (sem a qualificação de capital) da parte, poderiam ser inquiridas, cabendo ao juiz extrair as conclusões dos depoimentos de acordo com sua “livre convicção”. No Código de Processo Civil de 2015, a regra é de vedação do depoimento do inimigo da parte, excepcionada apenas quando estritamente necessário, hipótese em que, somente aí, atribuirá ao depoimento “o valor que possa merecer” (art. 447, § 5º), o que, de resto, deve fazer em relação aos depoimentos em geral, justificando racionalmente a valoração.
[5] RAMOS, Vitor de Paula. Prova testemunhal: do subjetivismo ao objetivismo, do isolamento científico ao diálogo com a Psicologia e a Epistemologia. 3ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 210.
[6] GODINHO, Robson Renault. Comentários ao art. 447. In: DIDIER JR., Fredie; TALAMINI, Eduardo; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DANTAS, Bruno (coords). Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil,cit., p. 1138.
[7] ASSIS, Araken de. Processo Civil brasileiro. v. II: Parte Geral – institutos fundamentais: I. 3ª ed. São Paulo: RT, 2022, p. 941.
[8] Art. 228. Não podem ser admitidos como testemunhas: (…) IV – o interessado no litígio, o amigo íntimo ou o inimigo capital das partes;