Processo Novo

Impactos processuais da reforma da Lei 14.825/2024 na recuperação de créditos

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  • é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

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22 de março de 2024, 13h16

A Lei 14.825, de 20 de março de 2024, foi aprovada para garantir a eficácia dos negócios jurídicos relativos a imóveis em cuja matrícula inexista averbação de qualquer tipo de constrição judicial.

Com sua edição, foi adicionado o inciso V ao caput do artigo 54 da Lei 13.097/2015:

“Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:

[…]

V – averbação, mediante decisão judicial, de qualquer tipo de constrição judicial incidente sobre o imóvel ou sobre o patrimônio do titular do imóvel, inclusive a proveniente de ação de improbidade administrativa ou a oriunda de hipoteca judiciária.”

Esta nova disposição encontra-se em vigor desde a publicação oficial da Lei 14.825 no Diário Oficial da União do dia 21 de março de 2024.

O artigo 54 da Lei 13.097/2015 deve ser interpretado em conjunto com o artigo 792 do CPC de 2015. Com a alteração promovida pela Lei 14.825/2024, enfatiza-se o princípio da concentração dos fatos no registro do imóvel adotado por esse conjunto de regras.

Esse princípio, no entanto, a meu ver, não é absoluto, mesmo após a importante reforma da Lei 14.825/2024. Explicarei melhor o meu ponto de vista:

Em se tratando de ação que deva recair ou de ato executivo que tenha incidido sobre bem sujeito a registro, a pendência do processo ou o ato constritivo devem ser levados à averbação (cf. incs. I a III do artigo 792 do CPC/2015).

Essa regra coaduna-se com aquelas previstas no artigo 799, IX do CPC/2015 (que dispõe que ao exequente incumbe “proceder à averbação em registro público do ato de propositura da execução e dos atos de constrição realizados, para conhecimento de terceiros”; destacamos) e no artigo 844 do CPC/2015 (segundo a qual o arresto ou a penhora devem ser levadas à averbação no registro público competente, “para presunção absoluta de conhecimento por terceiros”).

O CPC/2015, no ponto, apenas reproduziu, em certos termos, parte do que já constava do artigo 54 da Lei 13.097/2015.

De acordo com esse dispositivo, “os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel” (destacamos) o registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias, a averbação de constrição judicial, da admissão de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, a “averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso IV do caput do artigo 792” do CPC/2015 (na redação da Lei 14.382/2024), e, ainda a “averbação, mediante decisão judicial, de qualquer tipo de constrição judicial incidente sobre o imóvel ou sobre o patrimônio do titular do imóvel, inclusive a proveniente de ação de improbidade administrativa ou a oriunda de hipoteca judiciária” (na redação da Lei 14.825/2024).

O § 1.º do artigo 54 da Lei 13.097/2015 (na redação da Medida Provisória 1.085/2021, convertida na Lei 14.382/2022), por sua vez, estabelece que “não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos artigo 129 e artigo 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel” (além disso, cf. o que consta do § 2.º do artigo 54 da Lei 13.097/2015, na redação da Medida Provisória 1.085/2021, convertida na Lei 14.382/2022).

Spacca

Vê-se que o artigo 54 da Lei 13.097/2015, e, em alguma medida, também o artigo 792 do CPC/2015 adotam o princípio da concentração dos fatos no registro oficial do imóvel. Todos os fatos relacionados à “vida” do imóvel devem ser concentrados em um mesmo local, evitando a necessidade de dispersão dos interessados em busca de dados relacionados às condições em que se encontra o bem (sobre este princípio, cf. o que escrevi em Código de Processo Civil Comentado, 9.ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 2024, em comentário ao artigo 792 do CPC, e doutrina ali citada).

Sob esse prisma, como regra, só se reconhecerá a fraude à execução se realizada a averbação a que se referem os artigos 54 da Lei 13.097/2015 e os incisos do artigo 792 do CPC/2015 (cf., também, artigo 799, IX do CPC/2015). A necessidade de averbação, no caso do inciso IV do artigo 792 do CPC/2015, em se tratando de imóveis, decorre do previsto no artigo 54, IV da Lei 13.097/2015. Em se tratando de outro tipo de constrição judicial, incide o inciso V do artigo 54 da Lei 13.097/2015, adicionado pela Lei 14.825/2024.

Proteção ao terceiro que adquiriu bens executados

O CPC/2015, assim, em consonância com a Lei 13.097/2015, optou por proteger os interesses do terceiro que venha a adquirir bens do executado, exigindo, nos casos em que o bem se sujeite a registro, a averbação da pendência do processo ou do ato constritivo para que a alienação ou oneração do bem possa ser considerada em fraude à execução.

Tais disposições fazem com que se consolide, na lei, em parte, orientação firmada na jurisprudência do STJ, na vigência do CPC/1973, cf. primeira parte da Súmula 375 do STJ:

O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. Essa orientação foi reiterada pelo Tribunal por ocasião do julgamento do REsp repetitivo 956.943/PR: “1.4. Inexistindo registro da penhora na matrícula do imóvel, é do credor o ônus da prova de que o terceiro adquirente tinha conhecimento de demanda capaz de levar o alienante à insolvência, sob pena de tornar-se letra morta o disposto no artigo 659, § 4º, do CPC. 1.5. Conforme previsto no § 3º do artigo 615-A do CPC, presume-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens realizada após a averbação referida no dispositivo”; Corte Especial, j. 20/8/2014).

As regras acima referidas, previstas na Lei 13.097/2015 e no CPC/2015 não são incompatíveis, mas convivem, devendo ser interpretadas de modo harmônico. No caso, não se coloca a questão referente ao ônus de provar o conhecimento de terceiro, em virtude do disposto no artigo 844 do CPC/2015.

Isso não significa, porém, que, ausente a averbação, fique impossibilitado o reconhecimento do vício. A evidente primazia dada pela lei ao princípio da concentração não impõe que quaisquer atos praticados pelo executado em prejuízo do exequente e da própria função jurisdicional devam ser necessariamente respeitados, se não realizada a averbação de bens sujeitos a registro.

A leitura isolada dos incisos I a III do artigo 792 do CPC/2015 e do inciso V do caput artigo 54 da Lei 13.097/2015 (na redação da Lei 14.825/2024) poderia induzir o intérprete ao entendimento de que, não realizada a averbação em registro público, não haveria como se opor à alienação ou oneração de bem penhorado (o inciso III do artigo 792 do CPC/2015, p. ex., é claro ao dispor que há fraude à execução quando o ato constritivo tiver sido averbado no registro do bem).

Mesmo que tais dispositivos sejam interpretados de modo restritivo, a alienação de bem penhorado, ainda que não tenha havido averbação de tal ato constritivo, não pode ser admitida, se demonstrada a scientia fraudis do terceiro adquirente. Adoto esse entendimento pelas seguintes razões:

O § 1.º do artigo 54 da Lei 13.097/2015 ressalva, textualmente, que fica protegido quanto a “situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis” apenas o terceiro de boa-fé. Assim, atos praticados entre o executado e terceiro de má-fé não são amparados pela lei processual ou pela disciplina prevista no artigo 54 da Lei 13.097/2015, mesmo após a reforma da Lei 14.825/2024.

A alienação de bem penhorado sujeito à averbação, ainda que esta não tenha sido realizada, é ato atentatório à dignidade da justiça (no mínimo, o executado, no caso, está a dificultar a realização da penhora, cf. inciso III do artigo 774 do CPC/2015, mas não se exclui que outros dos incisos previstos no referido dispositivo também incidam, no caso).

Demonstrada a ciência de terceiro quanto à penhora, deverá o juiz declarar a ineficácia do ato de alienação ou oneração do bem penhorado, reprimindo, ex vi do artigo 139, III do CPC/2015, o ato atentatório à dignidade da justiça perpetrado.

A jurisprudência, na vigência do CPC/1973, distinguia a alienação do bem penhorado (que não era mencionado pelo artigo 593 do CPC/1973 como uma das hipóteses de fraude à execução) da fraude à execução prevista no inciso II do artigo 593 daquele Código (no CPC/2015 prevista no inciso IV do artigo 792), ressaltando ser, aquela, situação mais grave:

“Convém evitar a confusão entre a fraude à execução prevista no inciso II do artigo 593 [de 1973, correspondente ao inciso IV do artigo 792 do CPC/2015], cuja configuração supõe litispendência e insolvência, e a alienação de bem penhorado (ou arrestado, ou sequestrado), que é ineficaz perante a execução independentemente de ser o devedor insolvente ou não. Realmente, se o bem onerado ou alienado tiver sido objeto de anterior constrição judicial, a ineficácia perante a execução se configurará, não propriamente por ser fraude à execução (CPC, artigo 593, II [de 1973, correspondente ao artigo 792, IV do CPC/2015]), mas por representar atentado à função jurisdicional” (STJ, REsp 494.545/RS, 1.ª T., j. 14.09.2004, relator ministro Teori Albino Zavascki). A despeito disso, ambas as hipóteses eram tratadas, também na jurisprudência, como modalidades de fraude à execução (cf. revela o enunciado da Súmula 375 do STJ, transcrito acima).

Possibilidade de fraude

Tem-se, assim, que se pode configurar a fraude à execução quando ocorrer uma das hipóteses referidas nos incisos I a III do artigo 792 do CPC/2015, para as quais, de acordo com o texto legal, faz-se necessária a averbação em registro público, mas isso não impede que se reconheça haver ato atentatório à dignidade da justiça quando o executado aliena bem penhorado, e o terceiro adquirente tem ciência da penhora.

Ainda que se diga que, no caso, não haveria fraude à execução em sentido estrito (isso é, nos precisos termos da redação restritiva dos incisos I a III do artigo 792 do CPC/2015), o reconhecimento do vício deverá conduzir ao mesmo resultado.

Semelhantemente, em relação à hipótese prevista no inciso IV do artigo 792 do CPC/2015 (que, em princípio, também depende de averbação no registro de imóveis, nos termos do artigo 54, IV e dos artigos 56 e 57 da Lei 13.097/2015), não se deverá deixar de reconhecer a ocorrência de ato atentatório à dignidade da justiça, se verificada a scientia fraudis. Isso também se aplica ao caso previsto no artigo 54, V da Lei 13.097/2015, hipótese adicionada pela Lei 14.825/2024.

Além de o § 1.º do artigo 54 da Lei 13.097/2015 ser claro quanto à proteção de terceiro de boa-fé (excluindo-se, ipso facto, o terceiro que tenha ciência da fraude), solução diversa criaria grave incoerência sistêmica, já que, embora possível o reconhecimento da fraude contra credores prevista no artigo 158 do CC/2002 (que, em princípio, resguarda apenas o interesse do credor), criaria condições mais severas para que se reconhecesse a fraude à execução (em que está em jogo não apenas o interesse do exequente, mas, também, o da própria atividade jurisdicional).

O conjunto de regras acima referidas conduz a que se entenda que, em princípio, o exequente terá o ônus de provar a ausência de boa-fé do terceiro, caso não seja feito o registro a que se referem os artigos 792 do CPC/2015 e 54 da Lei 13.097/2015. A jurisprudência do STJ vem caminhando nesse sentido (cf. STJ, AgInt no REsp nº 1.993.894/SP, 3.T., j. 14/11/2022; STJ, AgInt no REsp nº 1.768.672/PR, 4.T., j. 12/6/2023).

Não poderá ser utilizado, como argumento a justificar a atribuição do ônus da prova ao exequente, a exigência de se apresentar certidões referentes a “feitos ajuizados” para a lavratura de escritura pública, antes prevista no § 2.º do artigo 1.º da Lei 7.433/1985, pois a necessidade de se constar tal informação não mais consta do dispositivo (cf. redação da Lei 13.097/2015). Esse entendimento é confirmado pelo § 2.º do artigo 54 da Lei 13.097/2015 (parágrafo este adicionado pela Medida Provisória 1.085/2021, convertida na Lei 14.382/2022).

Continua a ter aplicação, nesses termos, a segunda parte do enunciado da Súmula 375 do STJ, acima transcrita. Semelhantemente, cf. Enunciado nº 149 da Jornada CEJ/CJF: “A falta de averbação da pendência de processo ou da existência de hipoteca judiciária ou de constrição judicial sobre bem no registro de imóveis não impede que o exequente comprove a má-fé do terceiro que tenha adquirido a propriedade ou qualquer outro direito real sobre o bem”.

Esse entendimento, segundo meu ponto de vista, deve ser mantido, mesmo após a adição do inciso V ao caput do artigo 54 da Lei 13.097/2015 pela Lei 14.825/2024.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM, ex-visiting scholar na Columbia Law School, em Nova Iorque (EUA), ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015, advogado, árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

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