O direito das mulheres à interrupção voluntária da gravidez
22 de março de 2024, 20h31
Recentemente a França tornou-se o primeiro país do mundo a reconhecer, constitucionalmente, o direito ao aborto. O Congresso do país que protagonizou a Revolução de 1789 aprovou, em sessão conjunta, a inclusão do direito à interrupção voluntária da gravidez em seu texto constitucional, vindo o presidente Emmanuel Macron a promulgar o reconhecimento do aborto como um direito constitucional — le droit à l’avortement — no último dia 8, Dia Internacional da Mulher [1].
Trata-se de uma decisão importante na luta pelos direitos das mulheres, em especial no que tange ao direito de dispor do próprio corpo e decidir sobre sua saúde sexual e reprodutiva.
Uma decisão que provoca a reflexão sobre o tratamento jurídico dado para o aborto no Brasil e sobre quais soluções poderiam ser as mais adequadas, do ponto de vista jurídico-normativo, para essa questão. Uma decisão que também instiga a reflexão a inquirir os fundamentos da linguagem dos direitos, ao provocar uma discussão sobre o sujeito de direitos, isto é, sobre o que é possuir um direito e sobre quem pode possuí-lo.
O aborto consiste na interrupção da gravidez sem que o feto consiga sobreviver fora do útero materno. A gestação pode ser interrompida por causas naturais e o aborto pode ocorrer espontaneamente devido a complicações de saúde da gestante e do feto, mas pode também ser provocado, intencionalmente, pela própria gestante ou ser induzido por terceiros, como médicos e profissionais da área da saúde, a partir de diversos métodos ou procedimentos cirúrgicos.
Trata-se, por certo, de uma questão polêmica [2] que gera divergências jurídicas sobre qual o melhor tratamento a ser dado à gravidez indesejada. Parte da polêmica se deve a confusões conceituais que misturam o Direito a convicções religiosas. Além disso, não se pode negar que há divergências sobre o momento em que a vida humana começa, o que impacta, por certo, a própria noção sobre o que é o direito à vida.
Religiosos defendem o início da vida desde a concepção. Médicos afirmam que a atividade cerebral do embrião se desenvolve a partir da semana semana de gravidez. Cabe ao jurista se perguntar, em termos jurídicos: quando a vida inicia? Desde a concepção ou apenas após o nascimento? Qual é o estatuto jurídico do feto? É o mesmo de uma pessoa natural que já nasceu? Ambos possuiriam os mesmos direitos?
Creio que essas perguntas podem balizar a investigação sobre os fundamentos dos direitos e auxilia na compreensão sobre qual direito está a se referir quando se fala em interrupção voluntária da gravidez.
O aborto é uma questão polêmica na sociedade, tratado como tabu. As ambiguidades em torno dessa prática se devem, em primeiro lugar, ao modo como a questão é colocada em pauta, uma questão que é levantada como se fosse um dilema moral ou, em termos jurídicos, um conflito entre direitos fundamentais: a vida do feto ou a escolha das mulheres no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos? Afinal, qual direito deveria prevalecer?
A resposta a essa pergunta depende de um esclarecimento, que pode evitar uma série de confusões conceituais, ambiguidades e imprecisões no tratamento da questão da interrupção da gravidez indesejada. Trata-se de não confundir a vida uterina com a vida de uma pessoa já nascida.
Expectativas de direitos
Em termos dogmáticos, o nascituro ainda não possui personalidade e, nesse sentido, não é considerado (ainda) sujeito de direitos, embora possa vir a adquirir direitos em breve, desde que venha a nascer com vida. Por exemplo, o feto não possui direito ao nome, não tem domicílio e não pode registrar a propriedade de um imóvel em seu nome. Em tese, não possui honra, nem imagem, embora o STJ já tenha julgados em que reconhece o nascituro como sujeito de direitos da personalidade [3].
Conforme o Código Civil, o nascituro não é ainda uma pessoa natural, embora seus direitos estejam garantidos e assegurados. Na verdade, o Código Civil está a se referir a expectativas de direitos, tanto é que, no artigo 2º, resta explícito que a personalidade civil da pessoa natural começa com o nascimento com vida.
Aliás, o projeto do novo Código Civil, embora inovador em muitos pontos, seguirá com uma postura não muito distinta do código em vigor. Seguirá definindo a personalidade a partir do nascimento, ressalvando os direitos do nascituro desde a concepção. Haverá, ao que tudo indica, um acréscimo importante: a morte encefálica, que permite a interpretação de que a vida e a morte dependem da atividade cerebral [4].
De todo modo, segundo a dogmática jurídica, não é difícil inferir que somente pessoas já nascidas possuem os direitos da personalidade, ou que somente pessoas com atividade cerebral podem possuir direitos como a vida. O nascituro possui expectativas com relação aos direitos e essas expectativas só podem ser concretizadas com o nascimento com vida.
Direitos do nascituro e direito da mulher
A gestante, por sua vez, possui personalidade – isso é um fato incontestável. É uma pessoa natural, conforme apregoa o Código Civil brasileiro. Trata-se de uma pessoa já nascida com vida, e, enquanto pessoa natural, é, portanto, detentora dos direitos da personalidade, como a vida, a intimidade, a honra, a imagem, etc. Os direitos da personalidade conferem à gestante o direito de tomar decisões sobre o próprio corpo, desde que isso não prejudique outras pessoas naturais, isto é, desde que não prejudique outras pessoas que já tenham nascido com vida.
Colocar a questão como um dilema é fingir que o tratamento jurídico dado ao nascituro seja o mesmo que se costuma dar a uma pessoa já nascida, que já adquiriu os direitos da personalidade. Não é razoável que os direitos do nascituro (que ainda não possui personalidade civil) se sobreponham ao da mulher, que, sim, já possui personalidade e, portanto, possui, sim, direitos invioláveis. Ora, a existência de alguém que ainda não nasceu não pode estar condicionada à sobrevivência de outra pessoa.
Não pode uma pessoa ser obrigada a pagar com o próprio corpo para garantir a sobrevivência de outro corpo — esse tipo de obrigação, como uma obrigação jurídica de manter a gravidez, é injustificável do ponto de vista normativo. É violar os direitos de personalidade da mulher. Nesse sentido, a distinção entre vida uterina e a vida de uma pessoa natural é importante justamente porque revela sobre qual direito estamos a referir e a quem pertence a sua titularidade. Estamos a nos referir ao direito da mulher, enquanto pessoa natural, de decidir sobre o seu próprio corpo.
Punitivismo e descriminalização
De todo modo, não se pode negar que ordenamento jurídico brasileiro, ao contrário de diversos outros países em que o aborto é legalizado desde os anos 1970 [5], apresenta ambiguidades e imprecisões sobre a interrupção da gravidez, ainda mais se cruzarmos as fronteiras entre as áreas civil e criminal. Nossa cultura punitivista reconhece o aborto como um crime contra a vida e reprime a interrupção da gravidez provocada ou consentida pela gestante (Código Penal, artigo 124) e o aborto praticado por terceiros, sem ou com o consentimento da mãe (artigos 125 e 126).
No artigo 128, CP, a punibilidade é excluída para os casos de aborto necessário para salvar a vida da mãe ou quando a gravidez resulta de estupro. Duas condutas que não são punidas, tornando, assim, o aborto quase que permitido para estes dois casos, visto que, além da gestante não ser punida, também pode buscar os cuidados do sistema de saúde para interromper a gravidez indesejada.
De algum tempo para cá, mulheres vêm relatando não conseguir acesso, nos hospitais brasileiros, a nenhum desses casos para os quais a punibilidade é excluída. Elas relatam encontrar obstáculos que dificultam a autorização para o procedimento médico antes da realização do parto [6], o que revela que, no Brasil, nem o aborto garantido pelo legislador da década de 1940 é concretizado.
Nas duas últimas décadas, o STF reconheceu uma terceira possibilidade de descriminalização do aborto: a do feto anencéfalo, isto é, o feto que teve má formação do cérebro ou ausência parcial do cérebro e da calota craniana. Mas a efetivação desse direito foi lenta e gradual.
O julgamento do Habeas Corpus nº 84.025, em 2004, reconheceu o direito ao aborto em caso de feto anencéfalo [7], embora, cabe ressaltar, essa ação só tenha sido julgada quando o parto da gravidez em causa já havia ocorrido. Anos mais tarde, por meio do controle de constitucionalidade, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54 provocou o Supremo a declarar, em 2012, inconstitucional a criminalização do feto anencéfalo [8], permitindo, assim, a interrupção da gravidez nestes casos.
Atualmente, existe uma ação pendente de julgamento no STF: a ADPF nº 442, de 2017, uma ação proposta pelo PSOL. Quando será julgada? Não costumamos ter uma resposta clara e objetiva quando o assunto é a pauta do STF. É lamentável que toda conquista de direitos no Brasil seja demorada, dando-se um passo de cada vez, morosamente. O julgamento da ADPF 442 já foi iniciado, com o voto favorável da ministra Rosa Weber à descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez [9]. Depois disso, o ministro Barroso pediu vista e o processo aguarda o voto dos demais ministros.
Questão de saúde pública
Se compararmos com outros países, em especial com os mais ricos e desenvolvidos, pode-se dizer que, em resumo, o Brasil apenas reprime e criminaliza a prática da interrupção voluntária da gravidez. Não há política pública a esse respeito. Apenas a conduta da interrupção voluntária da gravidez é que é criminalizada.
Cria-se um contexto de opressão e morte de mulheres, um contexto que penaliza com a prisão [10], de modo que o debate sobre liberdades e direitos individuais das mulheres é posto em segundo plano para dar lugar a uma discussão mais emergencial que é a descriminalização dessa conduta. Não é difícil deduzir que a criminalização do aborto mais atrapalha do que ajuda, pois exclui as mulheres do acesso ao sistema de saúde e ainda as penaliza, criminalmente, pela conduta praticada.
Aqui reside o argumento favorável ao aborto como uma questão de saúde pública, visto que o aborto legal pode diminuir o alarmante número de mortes por abortos clandestinos feitos sem nenhum cuidado médico. Milhares de mulheres morrem a partir de procedimentos cirúrgicos precários e inseguros. Por consequência, nem o feto e nem a mãe sobrevivem.
Para reduzir o número alarmante de mortes, defende-se, em razão de uma política de redução de danos, a emergência da descriminalização do aborto provocado por médicos e dentro de determinadas condições. Esse argumento é bastante razoável, inclusive para aqueles que vaticinam a prevalência do direito à vida do feto. Se o objetivo é garantir o direito à vida, nada mais efetivo do que implementar uma política pública que visa justamente reduzir o número de mortes. Tratar o aborto como uma questão de saúde pública é reconhecer a necessidade de políticas que protejam os direitos das mulheres e promovam sua saúde e bem-estar.
Liberdade individual e o caso da França
Todavia, a França nos convida a ir além de uma política de redução de danos. Instiga-nos a adentrar o bojo filosófico do presente dilema para mostrar que o que está em jogo é o direito das mulheres de dispor do próprio corpo, o que implica dizer que as mulheres são titulares de direitos sexuais e reprodutivos. São elas que decidem sobre sua vida sexual e saúde reprodutiva.
Ao constitucionalizar o tema da autodeterminação pessoal, o país berço da revolução liberal destaca, mais uma vez, o respeito à liberdade de escolha das mulheres — promovido por uma via democrática e sem precisar recorrer à Suprema Corte. Ao contrário do Brasil, o aborto é um procedimento legal na França desde 1975, assim como o é em vários países, incluído os Estados Unidos e os países da Europa. Agora, pela primeira vez no mundo, foi incluído na Constituição, como um direito das mulheres, e não somente por uma questão de saúde pública.
O caso da França é simbólico porque coloca a interrupção voluntária da mulher como uma liberdade individual que pode ser exercida, independentemente de existir necessidade ou justificativa plausível de interesse público. O direito das mulheres à interrupção voluntária da gravidez, como um direito constitucionalizado, é um grande passo para uma discussão madura e aprofundada sobre o direito à vida e os direitos da personalidade.
O caso francês mostra o longo processo histórico de formação dos novos (velhos) direitos, dos direitos que, de início, constituem-se enquanto reivindicações por supostos direitos, ou por direitos não-reconhecidos ou não-enumerados enquanto direitos fundamentais.
Desde a Revolução Francesa, esse país mostra como reivindicações morais e políticas se tornam direitos, como elas ingressam no sistema jurídico, e não apenas como direitos legais, mas sim como direitos previstos no texto constitucional.
Outras reivindicações sobre vida e morte também precisam ser amadurecidas no mundo, como a eutanásia ou outros tipos de escolha e decisão sobre o que fazer com o próprio corpo e a própria vida. Seria pedir muito que o Brasil se inspirasse nessas ideias para realizar uma discussão laica e republicana a respeito da interrupção voluntária da gravidez?
[1] O presidente francês mencionou a necessidade de se incluir esse direito na carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: IVG dans la Constitution: Emmanuel Macron souhaite inscrire l’avortement dans la Charte des droits fondamentaux de l’Union européenne. In: LE Monde. Paris, 8 de março de 2024. Disponível em: <https://www.lemonde.fr/societe/article/2024/03/08/ivg-dans-la-constitution-emmanuel-macron-souhaite-inscrire-l-avortement-dans-la-charte-des-droits-fondamentaux-de-l-union-europeenne_6220854_3225.html>. Acesso em: 15 mar. 2024.
[2] Para iniciantes no estudo do Direito, sugiro um livro introdutório a respeito dos diversos posicionamentos e justificativas para a questão do aborto: DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya Gasparetto. O caso da gravidez indesejada: dilemas éticos e jurídicos sobre aborto. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. Para iniciados no tema, consultar a seguinte referência: DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[3] JURISPRUDÊNCIA do STJ vem reconhecendo nascituros como sujeitos de direito. In: CONJUR – Consultor Jurídico. São Paulo, 1 jul. 2019. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2019-jul-01/stj-vem-reconhecendo-nascituros-sujeitos-direito/#:~:text=A%20jurisprud%C3%AAncia%20do%20STJ%20possibilita,nascimento%20com%20vida%2C%20ou%20repercutam>. Acesso em: 15 mar. 2024.
[4] Consultar Relatório Geral apresentado pela Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil no final de fevereiro do presente ano, disponível no site do Senado: <https://legis.senado.leg.br/comissoes/arquivos?ap=8019&codcol=2630>.
[5] Conferir países em que o aborto é permitido apenas com a requisição da gestante, disponível em: <https://reproductiverights.org/maps/worlds-abortion-laws/>.
[6] MULHERES enfrentam recusa médica e humilhações para acessar aborto legal no Brasil. In: FOLHA. São Paulo, 7 mar. 2024. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2024/03/mulheres-enfrentam-recusa-medica-e-humilhacoes-para-acessar-aborto-legal-no-brasil.shtml>. Acesso em: 15 mar. 2024.
[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Habeas Corpus no 84.025 Rio de Janeiro. Relator: Ministro Joaquim Barbosa, 04 de agosto de 2004. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=384874>. Acesso em 10 mar. 2024.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 54 Distrito Federal. Relator: Ministro Marco Aurélio Mello, 12 de abril de 2012. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334>. Acesso em: 10 mar. 2024.
[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Voto da Relatora). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no 442 Distrito Federal. Relatora: Ministra Rosa Weber, 22 de setembro de 2023. Disponível em: <https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Voto.ADPF442.Versa771oFinal.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2024.
[10] MULHER é presa logo após ser submetida a aborto na região do Anália Franco, em São Paulo. In: FOLHA. São Paulo, 8 fev. 2023. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/02/mulher-e-presa-logo-apos-ser-submetida-a-aborto-na-regiao-do-analia-franco-em-sao-paulo.shtml>. Acesso em: 15 mar. 2024.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!