Opinião

Simplificação da linguagem jurídica e a falácia do espantalho

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  • é doutor em Letras mestre em Letras pela Universidade Federal de Sergipe licenciado em Letras bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais licenciado em Filosofia pela Faculdade João Calvino doutorando em Direito na Universidade Federal da Bahia e pesquisador acadêmico nas áreas de direitos linguísticos e funcionamento da linguagem jurídica.

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20 de março de 2024, 21h35

O Pacto Nacional pela Linguagem Simples, recentemente lançado pelo Conselho Nacional de Justiça, procura promover uma mudança na maneira de os órgãos do Poder Judiciário comunicarem-se, seja internamente, entre si, com outras instituições públicas ou — sobretudo — com os cidadãos.

Trata-se de uma iniciativa de política linguística (“language policy” para os anglomaníacos) que, segundo propõe Louis-Jean Calvet [1], refere-se ao processo de decisão de transição de uma situação linguística atual vista como insatisfatória (S1) para um cenário linguístico idealizado julgado como satisfatório (S2), o que envolve identificar e explicar as razões da insatisfação com S1, caracterizar e fundamentar com exatidão S2, e planejar uma trajetória para mudar de S1 para S2.

A avaliação de S1 como insatisfatória é de natureza política e corresponde a uma ponderação subjetiva sobre as práticas sociais de linguagem (sejam elas diagnosticadas, percebidas ou imaginadas); outros sujeitos, ao contrário, podem considerar S1 como confortável e até mesmo necessária (a forma correta de comunicação, a linguagem legítima socialmente).

Portanto, reações de resistência às propostas de mudança linguística costumam ser esperadas e previsíveis, pois as formas linguísticas são mais do que recursos de comunicação, constituem elementos de identidade, parte distintiva das pessoas e das comunidades.

Todo falante/usuário de uma dada língua tem legitimidade para concordar ou discordar com certas mudanças [2], por uma mera questão de bom gosto (bon usage, para os adeptos de estrangeirismos), embora a efetiva consagração ou rejeição dos usos linguísticos caiba à coletividade.

No caso de línguas de Estado, quer dizer daquelas empregadas pelas instituições públicas ou no desempenho de funções públicas, no entanto, a questão precisa revestir-se de maior rigor, afinal, não se trata de atender aos gostos individuais, mas de alcançar o bem comum [3]. Jesús Prieto de Pedro [4] propôs que o Estado deve agir comunicativamente observando ao menos três racionalidades:

(1) instrumental (desenvolver sua comunicação de modo eficaz, quer dizer, com clareza, concisão, adequação técnica e democrática, economia e eficiência);

(2) jurídica (aprimorar a qualidade jurídica de sua comunicação, por meio da precisão lexical e da estrutura lógica);

(3) comunicativa ou dialógica (adequar sua comunicação à relação político-jurídica que efetivamente deve ser desenvolvida entre Estado e cidadão). O autor enfatizou a necessidade de permanente atualização das línguas estatais para acompanhar as transformações sociais e político-administrativas: é incompatível com um Estado democrático a permanência de certos estilos autoritários de comunicação.

Há, assim, que se expurgar da comunicação pública as expressões inapropriadas (bajuladoras, autoritárias, discriminatórias etc.) e impróprias (não idiomáticas, alheias à tradição da língua etc.), que não possuem qualquer valor sob o ponto de vista instrumental, jurídico ou dialógico.

Enunciados como “Ex positis, quando da averiguação do referido pedido, suplicamos que Vossa Excelência se digne outorgar ao enclausurado sua liberdade provisória, com fulcro nos termos do inciso III do artigo 310 contido no Código Processual Penal Pátrio” são exemplos de uma linguagem funcional, técnica e democrática ou de um formalismo supérfluo, obtuso e servilista?

Particularmente considero que se trata da segunda alternativa, e acrescento que seria muitos mais técnico apresentar o pedido em termos mais simples: “Ante o exposto, requer a liberdade provisória, com fundamento no artigo 310, inciso III do Código de Processo Penal”.

Iniciativas e críticas

Onde quer que tenham sido propostas, as iniciativas de simplificação da linguagem jurídica (seja ela normativa, administrativa ou processual-judiciária) enfrentaram resistências e uma saraivada de críticas das mais diversas; no entanto, têm sido levado a cabo com bastante êxito, sobretudo, por meio da atuação paciente e persistente de grupos de trabalho como: Plain English Campaign no Reino Unido, Plain Language Action and Information Network nos Estados Unidos, Comisión para la Modernización del Lenguaje Jurídico na Espanha, Comité d’orientation pour la simplification du langage administratif e Direction interministérielle de la transformation publique na França, entre muitos outros.

Desenvolvendo ideias, estudos, soluções e experiências há mais cinco décadas de trabalho duro, o Movimento pela Linguagem Simples (MLS) conhece bem as críticas às suas práticas de linguagem clara, simples e acessível.

Um estudo sistemático, inclusive foi realizado por Joseph Kimble [5], que as dividiu em “velhas” e “novas” críticas, sendo certamente a mais empoeirada e revisitada a ideia de que a linguagem simples é anti-literária, anti-intelectual, pouco sofisticada, monótona, feia, infantil ou vulgar; quase sempre as reações mais imediatas e efusivas apresentam-se como uma cruzada contra o empobrecimento da linguagem jurídica e em favor da manutenção da tradição apostólica (digo, “forense”).

Língua hermética dos juristas

Não é preciso ir muito longe para perceber que essa crítica não possui terra sob seus pés… Estudantes e operadores de Direito raramente tomam autos processuais corriqueiros como objeto de estudo stricto sensu, quer dizer, como forma de aprimorar seu conhecimento e sua linguagem técnico-forense, pois em geral buscam isso em obras doutrinárias consagradas e em jurisprudências tidas como paradigmáticas…

O trabalho com os autos processuais, em geral, é bastante instrumental e muito pouco ou nada literário (especialmente em tempos de Ctrl C + Ctrl V, ChatGPT etc.)… Na maior parte dos casos de que se ocupam, os juristas não enfrentam hard cases a exigir longa e profunda revisitação dos fundamentos do Direito (aí incluído todo o latinório do Direito Romano Clássico e os latinismos pós renascentistas), mas — em geral — uma série de questões repetitivas e ordinárias.

Os juristas apegados a invencionismos vocabulares e malabarismos sintáticos acreditam estar honrando Ruy Barbosa e Sílvio Romero, mas não o estão fazendo (sejamos humildes e honestos!) e, na verdade, estão deixando em tormentos póstumos as almas dos gramáticos, desde os mais inveterados (como Napoleão Mendes de Almeida) até os mais liberais: certamente não é a língua do povo que falam, nem a língua culta dos literatos, e menos ainda a norma padrão da língua portuguesa.

Os que tentam defender essa língua hermética dos juristas (malfalada como juridiquês) muitas vezes recorrem ao conceitos linguísticos como linguagem técnica, língua de especialidade ou tecnoleto, mas é preciso colocar pontos nos is: “enfiteuse” é termo técnico, “peça vestibular” é criação fantasiosa de quem não sabe fazer coesão e acredita que repetir (ou omitir) termos é sinal de pobreza vocabular; “dormientibus non succurrit jus” é lição propedêutica de aulas de Introdução ao Estudo do Direito, ninguém será mais ou menos proficiente por empregá-la (mas sim, poderá ser mais claro e compreensível a outros concidadãos ao não usá-la).

Muitos estudiosos da linguagem jurídica — cito Gérard Cornu [6] e Luis Alberto Hernando Cuadrado [7] — têm reiterado que termos técnicos podem ser de dois tipos:

(1) exclusivos da linguagem forense, porque representam conceitos, institutos, relações etc. que são essencialmente limitados (ou delimitados) pelo domínio jurídico;

(2) extraídos da linguagem comum e que adquirem no âmbito jurídico uma acepção bastante específica e precisa, ao contrário da polissemia e equivocidade que podem adquirir em outros domínios sociais.

Entre esses dois tipos de termos técnicos não figuram latinismos (nominais, conexionais, axiomáticos), arcaísmos, preciosismos, neologismos, estrangeirismos etc., que são tão somente opções estéticas cristalizadas pela reiteração e legitimadas pelo imaginário sobre o que é um jurista e como deve escrever.

No contexto contemporâneo, em que é preciso eficiência comunicativa, o rebuscamento lexical (ou sintático) é disfuncional porque dificulta a compreensão dos textos forenses (a menos que as estatísticas sejam todas mentiras corporativas e os juízes, advogados e promotores estejam com tempo de sobra e não vivam abarrotados de afazeres processuais).

A falácia do espantalho

Assim, a linguagem simples não se opõe à técnica, mas à rebuscada. Não raramente os críticos da linguagem simples, requentando a velha crítica da linguagem pouco sofisticada, constroem um espantalho para poder refutá-lo: sem qualquer fundamento nos estudos do MLS, reportam-se a um estilo de comunicação informal e infantilizado apresentando-o como o resultado inexorável do emprego da linguagem simples.

Unesco

Consideremos uma imaginária conversa entre dois oftalmologistas: “O paciente está com uns carocinhos brancos no olho direito e reclamando que já não enxerga mais como antes, necessita de cuidados especiais e exames adicionais”. Esse não é um exemplo de comunicação em linguagem simples, no sentido adotado pelo MLS, porque não é efetivo na transmissão de informações nem adequado aos destinatários.

A simplicidade realmente proposta pelo MLS não é a de um colóquio banal em um “lugarzinho no meio do nada com sabor de chocolate e cheiro de terra molhada”. Simplicidade é – entre outras qualidades linguísticas – clareza, objetividade e precisão adequadas aos destinatários da mensagem (o público-alvo, a audiência, o interlocutor etc.).

Para ser simples e eficiente, um médico pode falar do “caroço no pescoço” com o paciente e do “nódulo cervical” com seu colega de trabalho; do mesmo modo ao prescrever um receituário que precisará ser lido tanto pelo paciente quanto por um farmacêutico, convém que escreva “Tomar a cada 8 horas um comprimido de dipirona monoidratada 1g por 3 dias”.

Essa é uma forma de comunicação simples e eficiente, o que não parecer ser verdade se ele escrevesse de forma infantilizada “Compre aquele remedinho da caixa verde na versão mais forte e use hoje, amanhã e depois de amanhã três vezes cada dia” ou de modo quase criptográfico “dip. mon. 1g 8/8h p/3d”.

Mas voltando à analogia com a linguagem jurídica, recordo-me da seguinte consideração feita por um aluno de Português Jurídico: “em um atendimento médico, mesmo que eu não entenda muito do que disserem, posso partir do pressuposto de que todos os profissionais trabalham ao meu favor; mas no processo judicial, embora eu conte com um advogado, existe uma parte declaradamente contra mim e uma autoridade que não é minha aliada, eu preciso pelo menos entender o que está acontecendo”.

Parece confortável atribuir aos advogados a função de tradutores/intérpretes dos hieróglifos jurídicos para o cidadão e de mediadores entre ele o Judiciário, mas se trata de uma falsa solução, entre tantos outros motivos porque: o cidadão, que não tem controle sobre a qualidade dessa “tradução”, terá de suportar a responsabilidade pelo que dela derivar (culpa in eligendo, nobre cidadão, culpa in eligendo!); se a tradução for malfeita caberá ao próprio cidadão percebê-lo e providenciar a substituição do advogado-tradutor conforme o artigo 111 do Código de Processo Civil (pois dormientibus non sucurrit ius); além disso, há muitas hipóteses legais em que o cidadão pode prescindir de advogado e dirigir-se diretamente ao Judiciário (quem fará a tradução de/para o juridiquês?).

A busca pelo equilíbrio

Se a linguagem simples não propõe a supressão da linguagem técnica, o que propõe, então? Bem, isso depende: para os textos normativos, o emprego racionalizado e equilibrado entre a linguagem técnica e linguagem comum, tal como estabelecido há décadas pela Lei Complementar nº 95/1998 (artigo 11, I, “a”; II, “a”); para os documentos administrativos destinados aos cidadãos, a substituição dos termos técnicos por termos comuns sempre que isso for possível, ou sua explicação no próprio texto.

No caso dos textos forenses, faz-se necessário uma articulação entre termos técnicos e comuns que favoreça a comunicação clara e acessível aos seus efetivos destinatários: o balanceamento adequando no caso de uma decisão de saneamento não é o mesmo de uma sentença definitiva de mérito, de um despacho ou de uma carta rogatória, porque são gêneros textuais diferentes, com estruturas, funções e destinatários específicos e não coincidentes.

Linguagem simples não corresponde a um estilo de linguagem simplório e pobre, mas a um sofisticado conjunto de princípios para a ação comunicativa e de parâmetros para a construção de textos. Segundo a International Organization for Standardization (ISO) [8], a linguagem simples envolve a articulação de quatro princípios informacionais: relevância, localizabilidade, compreensibilidade e utilizabilidade.

Para Heloisa Fischer de Medeiros Pires [9], as diretrizes da linguagem simples envolvem atitude de empatia, organização hierárquica das informações, familiaridade e concreticidade lexicais, brevidade e canonicidade oracionais, revisão etc.. Martin Cutts [10], por sua vez, apresenta 30 orientações redacionais compostas por sugestões como elaborar frases curtas, distribuir períodos complexos em listas, preferir a voz ativa, evitar construções negativas, abandonar clichês e termos pejorativos, usar expressões completas em vez de siglas etc.

Encerro esse artigo opinativo não com uma conclusão, mas com um convite: antes de construirmos espantalhos da linguagem simples e lutarmos bravamente contra eles (ao estilo Dom Quixote), convém nos debruçarmos um pouco sobre a riquíssima literatura dessa área e suas exitosas experiências havidas em muitos países (aí incluídas as iniciativas em avançado estágio de desenvolvimento que temos no Brasil).

 


[1] CALVET, L.J. Le marché aux langues: essai de politologie linguistique sur la mondialisation. Paris: Plon, 2002. p. 21.

[2] RAJAGOPALAN, K. Política linguística: do que é que se trata afinal?. In: NICOLAIDES, C. et al. (org.). Política e Políticas Linguísticas. Campinas: Pontes, 2013. p. 22.

[3] A garantia de uma linguagem jurídica compreensível extrapola o âmbito da política linguística e da estética comunicativa, pois também é um direito que decorre de princípios basilares do ordenamento jurídico: a publicidade e a eficiência da Administração Pública, o acesso à justiça etc. Dada a brevidade deste artigo, no entanto, limitamo-nos aos aspectos mais pragmáticos do uso da linguagem simples.

[4] PEDRO, J.P. Lenguas, lenguaje y derecho. Madrid: Editorial Civitas, 1991. pp. 104-107.

[5] KIMBLE, J. Answering the Critics of Plain Language. Scribes Journal of Legal Writing, v. 5, pp. 51-86. Los Angeles: Scribes — The American Society of Legal Writers, 1995.

[6] CORNU, G. Linguistique juridique. 2 ed. Paris: Montchrestien, 2000. pp. 68-93.

[7] CUADRADO, L.A.H. El linguaje jurídico. Madrid: Editorial Verbum, 2003. pp. 51-52.

[8] ISO. ISO 24495-1: First edition 2023-06 (Plain language – Part 1: Governing principles and guidelines). Geneva: ISSO, 2023.

[9] PIRES, H.F.M. Minicurso 7 Diretrizes de Linguagem Simples. Rio de Janeiro: Comunica Simples, 2020.

[10] CUTS, M. Oxford Guide to Plain English. 5. ed. Oxford: Oxford University Press, 2020.

Autores

  • é doutor em Letras, mestre em Letras pela Universidade Federal de Sergipe, licenciado em Letras, bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, licenciado em Filosofia pela Faculdade João Calvino, doutorando em Direito na Universidade Federal da Bahia e pesquisador acadêmico nas áreas de direitos linguísticos e funcionamento da linguagem jurídica.

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