O que significa início de cumprimento da pena para fins de interrupção do prazo de prescrição
20 de março de 2024, 18h26
Um tema de extrema importância que não tem tido a devida atenção dos operadores do Direito Penal brasileiro se refere à interrupção da prescrição referente ao início de cumprimento da pena, consoante regra constante da primeira parte do artigo 117 do Código Penal (CP).
Assim dispõe o artigo, in verbis: “Art. 117 – O curso da prescrição interrompe-se: […] V – pelo início ou continuação do cumprimento da pena”.
Com efeito, quando se analisa de forma geral os manuais e livros de Direito Penal que tratam do tema, eles se restringem a afirmar que o início do cumprimento da pena é causa que interrompe a prescrição penal.
Todavia, os referidos manuais e livros de Direito Penal se esquecem de um conceito de extrema importância prática: “Afinal, o que significa início de cumprimento da pena para fins de interrupção do prazo de prescrição penal?”
De fato, basta pesquisar o tema em qualquer livro de Direito Penal que trata da temática, que o leitor verificará que não há qualquer conceito de início de cumprimento da pena para fins de interrupção do prazo de prescrição penal, sendo que os referidos livros apenas informam que o início de cumprimento da sanção penal importa interrupção do prazo prescricional.
Nesses termos, tem-se que os manuais e livros de Direito Penal se omitem em relação a tema de extrema importância não só teórica, mas prática mesmo.
Dessa forma, mister se faz buscar responder à pergunta título deste artigo jurídico, como forma de se aperfeiçoar ainda mais a ciência do Direito Penal e/ou Direito Penitenciário.
Lei de Execução Penal e a guia de recolhimento
Calha destacar que o Código Penal brasileiro apenas prevê que o início de cumprimento da pena é causa interruptiva da prescrição, porém, não descreve nem informa o que deve se entender por início de cumprimento da sanção penal, o que pode ocasionar graves prejuízos aos direitos fundamentais da pessoa condenada.
Pois bem, considerando que nosso Código Penal não esclarece o que deve ser entendido por início de cumprimento da pena para fins de interrupção do prazo prescricional, é preciso buscar a resposta em outro diploma legislativo.
Assim, considerando o princípio da especialidade, há que se buscar a resposta à indagação título deste artigo na Lei nº 7.210 (Lei de Execução Penal), que trata das regras e procedimentos relativos à execução da pena imposta aos condenados por infrações penais.
In casu, cabe destacar que a Lei de Execução Penal (LEP) traz disposições importantíssimas acerca do tema objeto deste artigo jurídico, especialmente o caput do artigo 107 da LEP. Confira, in verbis:
“Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução.
Art. 106. A guia de recolhimento, extraída pelo escrivão, que a rubricará em todas as folhas e a assinará com o Juiz, será remetida à autoridade administrativa incumbida da execução e conterá:
I – o nome do condenado;
II – a sua qualificação civil e o número do registro geral no órgão oficial de identificação;
III – o inteiro teor da denúncia e da sentença condenatória, bem como certidão do trânsito em julgado;
IV – a informação sobre os antecedentes e o grau de instrução;
V – a data da terminação da pena;
VI – outras peças do processo reputadas indispensáveis ao adequado tratamento penitenciário.
Art. 107. Ninguém será recolhido, para cumprimento de pena privativa de liberdade, sem a guia expedida pela autoridade judiciária.
§1°. A autoridade administrativa incumbida da execução passará recibo da guia de recolhimento para juntá-la aos autos do processo, e dará ciência dos seus termos ao condenado.
§2º. As guias de recolhimento serão registradas em livro especial, segundo a ordem cronológica do recebimento, e anexadas ao prontuário do condenado, aditando-se, no curso da execução, o cálculo das remições e de outras retificações posteriores.”
Da análise dos referidos dispositivos da LEP, verifica-se que a guia de recolhimento é um documento expedido durante a execução da pena que individualiza o condenado, tanto do ponto de vista sobre informações pessoais, bem como sobre informações relacionadas à infração penal que foi imposta àquele, tudo como o propósito de se concretizar o princípio da individualização da pena (inciso XLVI do artigo 5º da Constituição de 1988), bem como de se evitar erro judiciário que leve à prisão terceiro que não foi condenado pela infração objeto do processo de execução penal.
Com efeito, embora o Código Penal brasileiro não esclareça o que significa início de cumprimento da pena para fins prescricionais, a Lei de Execução Penal responde à pergunta título deste artigo jurídico, conforme se observa do caput do artigo 107 da LEP, tendo em vista que este dispositivo legal estabelece de forma peremptória que ninguém será recolhido, para cumprimento de pena privativa de liberdade, sem a guia expedida pela autoridade judiciária.
Dois requisitos cumulativos
Observe, atento leitor, que o artigo 107 da LEP preceitua de forma gritante que nenhuma pessoa será recolhida (presa) para fins de cumprimento de pena privativa de liberdade sem a prévia expedição da guia de recolhimento.
Em outras palavras, enquanto não houver a expedição da guia de recolhimento, aliado ao fato de o condenado estar preso, juridicamente não haverá o início de cumprimento da sanção penal imposta ao condenado por infração penal.
De fato, a regra consubstanciada no artigo 107 da LEP é instransponível e não deixa espaço para dúvidas: caso o condenado esteja preso, se não houver a expedição prévia da guia de recolhimento, juridicamente não haverá o início de cumprimento da pena para fins prescricionais previsto no artigo 117, inciso V do CP.
É preciso deixar bem clara essa questão.
Combinando-se os aludidos dispositivos do CP e da LEP, observa-se que só há início de cumprimento da sanção penal se preenchidos dois requisitos cumulativos: 1) que o condenado esteja preso (ainda que se trate de preso provisório, sendo que nesse caso haverá a guia de recolhimento provisória); 2) que haja a expedição da guia de recolhimento, que será definitiva (se houver o trânsito em julgado da sentença penal condenatória) ou provisória (caso se trate de preso provisório).
O requisito do condenado se encontrar preso para que haja a expedição da guia de recolhimento, como prevê a LEP, também consta da Resolução nº 113 do Conselho Nacional de Justiça, de 20 de abril de 2010, que dispõe sobre o procedimento relativo à execução de pena privativa de liberdade e de medida de segurança, conforme regra do §1º do artigo 2º.
No mesmo sentido de ser obrigatória a prisão do condenado par a expedição da guia de recolhimento: CUNHA, Rogério Sanches. Execução Penal para Concursos: LEP. coordenador Ricardo Didier. 6ª ed. rev., atual, e ampl. Salvador: Juspodivm, 2016, p.134/135.
Dito de outra forma, não há início de cumprimento da pena para quaisquer fins: 1) caso o condenado seja preso, mas não haja a prévia expedição da guia de recolhimento; 2) haja a expedição da guia de recolhimento, mas o condenado está livre.
Ou seja, juridicamente só há início de cumprimento da sanção penal para quaisquer fins se preenchidos 2 (dois) requisitos cumulativos: 1) que o condenado esteja preso; 2) que haja a expedição da guia de recolhimento antes do decurso do prazo prescricional.
Ademais, considerando o princípio da legalidade penal e também a proibição de analogia em prejuízo do condenado, não há como se considerar início de cumprimento da pena antes do preenchimento dos dois referidos requisitos cumulativos.
Importância prática
Nessa toada, o atento leitor percebe que a indagação título deste artigo jurídico – “Afinal, o que significa início de cumprimento da pena para fins de interrupção do prazo de prescrição penal?” – envolve tema de extrema importância não só teórica, mas prática mesmo.
Basta pensar no caso de condenado por infração penal qualquer que tenha fugido após ser intimado da sentença penal condenatória (tendo transitado em julgado) e nunca iniciou o cumprimento da pena, cabendo lembrar que a publicação da sentença de condenação é causa interruptiva da prescrição penal (inciso IV do artigo 117 do CP).
Suponha ainda que essa infração penal prescreva em oito anos, nos termos do artigo 109 do CP, que estabelece que a prescrição antes de transitar em julgado a sentença final prescreve em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro.
Como se sabe, o artigo 110 do CP reza que a prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, isto é, nos prazos fixados no artigo 109 do CP.
Voltando ao exemplo, suponha que o condenado esteja na condição de fugitivo há sete anos e 11 meses, faltando apenas um mês para ocorrer a prescrição, caso ele seja preso antes do decurso do prazo de um mês, estará preenchido um dos dois requisitos legais, faltando apenas a expedição da guia de recolhimento para que ele possa iniciar regularmente o cumprimento da pena.
Pergunta-se: no exemplo acima, estando o condenado preso, caso haja a expedição da guia de recolhimento somente depois do decurso do prazo de um mês, poderá ser considerado início de cumprimento da pena para fins prescricionais?
A resposta só pode ser negativa, tendo em vista a regra solar do artigo 107 da LEP que preceitua de forma gritante que nenhuma pessoa será recolhida (presa) para fins de cumprimento de pena privativa de liberdade sem a prévia expedição da guia de recolhimento, logo, forçoso é se reconhecer a ocorrência de prescrição, pois o binômio prisão do condenado-expedição da guia de recolhimento não foi cumprido antes do decurso do prazo prescricional.
Lembre-se que o Código de Processo Penal estabelece no seu artigo 61, que em qualquer fase do processo, o juiz, se reconhecer extinta a punibilidade, deverá declará-lo de ofício.
Não por outra razão, em nossa obra Lei de Execução Penal: Comentários e Jurisprudência (2020, p.124-126), já tivemos a oportunidade de defender de forma inédita que:
“Da análise do art. 107, não há dúvida de que não poderá haver o início de cumprimento da pena privativa de liberdade sem que antes seja expedida a guia de recolhimento, a qual é o título executivo da sanção penal.
É importante destacar, que a regra do art.107 da LEP tem importante reflexo no jus puniend (direito de punir) do Estado, que nem sempre é percebido pelos operadores do Direito, seja advogado, ministério público e magistrados.
Isto porque, conjugando-se o art. 107 da LEP com o art.117, inciso V, Código Penal, tem-se que enquanto não for expedida a guia de recolhimento, mesmo que o sentenciado seja preso preventivamente ou por mandado decorrente da sentença condenatória transitada em julgado, juridicamente não haverá início de cumprimento da pena e, assim, não será interrompida a prescrição, o que terminará por desaguar no reconhecimento da prescrição executória.
Por exemplo, um sentenciado que tenha sido condenado e fugido, sem jamais ter iniciado o cumprimento da pena, caso o mesmo seja preso preventivamente faltando poucos dias para o transcurso da prescrição executória, caso a justiça criminal não expeça a guia de recolhimento antes do termo final do prazo prescricional, a pretensão estatal estará fulminada pela prescrição executória.
Dito de outra forma, se o juiz saber da prisão do sentenciado, caso ele expeça a guia de recolhimento antes do término do prazo da prescrição executória, o prazo prescricional será interrompido, zerando-se.
Todavia, se a expedição da guia for feita apenas após o transcurso do referido prazo de prescrição, estará extinta a punibilidade do condenado, pois ninguém será recolhido, para cumprimento de pena privativa de liberdade, sem a guia expedida pela autoridade judiciária (art.107 da LEP), isto porque, o prazo prescricional só é interrompido quando há o início de cumprimento da pena (art.117, V, CP), frise-se, o qual não se inicia sem a prévia expedição da guia de recolhimento (art.107 da LEP) ou no caso do preso provisório, pela guia provisória.
Por fim, cabe destacar, que o art.117 do CP não elenca a prisão provisória (preventiva ou temporária) ou por mandado decorrente da sentença condenatória transitada em julgado como causa interruptiva do prazo prescricional, sendo que por estar em jogo a liberdade do cidadão e, ainda, considerando o princípio da legalidade penal, não se pode fazer interpretação extensiva para considerar a prisão provisória (preventiva ou temporária) ou por mandado decorrente da sentença condenatória transitada em julgado como início de cumprimento da pena, ante a regra expressa e clara do art.107 da LEP, que reza que ninguém será recolhido, para cumprimento de pena privativa de liberdade, sem a prévia guia de recolhimento expedida pela autoridade judiciária.
[…] Entretanto, não se desconhece a existência de alguns precedentes do STJ no sentido de que mesmo a prisão por um só dia já é suficiente para interromper a prescrição, mesmo sem a expedição da guia de recolhimento, conforme RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS (RHC) nº4.275/RJ, DJU 05.09.1996, Rel. Min. Edson Vidigal, bem como no RHC nº 16.787 – RS, Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, DJ 21.02.2005.
Todavia, da análise dos referidos precedentes do STJ, verifica-se que em nenhum deles é feito o cotejo do art.117, inciso V, Código Penal com o art.107 da LEP, ou seja, não são rebatidos os nossos argumentos acima destacados, principalmente o da proibição de se fazer interpretação extensiva contra o réu.”
Conclusão
Respondendo ao questionamento título deste artigo jurídico — “Afinal, o que significa início de cumprimento da pena para fins de interrupção do prazo de prescrição penal?” —, tem-se que só pode ser considerado cumprimento da pena para fins de interrupção do prazo prescricional se preenchidos dois requisitos cumulativos: 1) que o condenado esteja preso; 2) que haja a expedição da guia de recolhimento antes do decurso do prazo prescricional.
Notas
- GOMES, Adão Mendes. Lei de execução penal: comentários e jurisprudência. Taboão da Serra, SP: Vicenza Edições Acadêmicas, 2020.
- CUNHA, Rogério Sanches. Execução Penal para Concursos: LEP. coordenador Ricardo Didier. 6ª. ed. rev., atual, e ampl. Salvador: Juspodivm, 2016.
- Regulamentando o art.105 da LEP, a Resolução nº113 do CNJ, de 20 de abril de 2010, que dispõe sobre o procedimento relativo à execução de pena privativa de liberdade e de medida de segurança, in verbis:
“Art.2º, § 1º Estando preso o executado, a guia de recolhimento definitiva ou de internação será expedida ao juízo competente no prazo máximo de cinco dias, a contar do trânsito em julgado da sentença ou acórdão, ou do cumprimento do mandado de prisão ou de internação.”
Entretanto, percebe-se que o prazo de 5 dias para a expedição da guia é impróprio, pois não acarreta na impossibilidade de ultrapassado o referido prazo, haver a expedição da guia, exceto se houver a prescrição da sanção penal.
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