Opinião

Tirar da clandestinidade o aborto é uma questão de saúde pública

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15 de março de 2024, 16h24

Após o choque causado pela dolorosa notícia de que uma brasileira sofreu estupro coletivo enquanto acampava com seu marido na Índia, surge uma faísca de esperança que figura como um marco nas conquistas femininas: a França tornou-se o primeiro país do mundo a assegurar constitucionalmente o direito ao aborto, consolidando uma legalização que já estava em vigor desde 1974.

A promulgação da medida pelo presidente francês, Emmanuel Macron, no Dia Internacional da Mulher, 8 de março, desencadeia reflexões cruciais.

Dentre elas, emerge o debate acerca da questão do aborto no Brasil contemporâneo. A pauta vai além das esferas morais e religiosas, tratando-se de algo crucial para a saúde pública, demandando urgência, atenção e resolução.

A descriminalização do aborto assegura a independência da mulher em relação ao seu próprio corpo, proporcionando o direito à escolha de prosseguir, ou não, com uma gravidez indesejada, sem ser submetida à pressão do Estado ou da sociedade.

Sobre isso, essa cultura enraizada na sociedade e, sobretudo, na legislação que criminaliza o aborto, infringe o princípio da dignidade da pessoa humana, impondo um sofrimento físico e emocional à mulher que busca interromper a gestação.

Integralidade da saúde da mulher e o aborto ilegal

A Constituição Federal de 1988 consagra princípios fundamentais, entre os quais se destacam a dignidade da pessoa humana, a igualdade e o direito à saúde. Além disso, reconhece a importância da autonomia e liberdade das mulheres sobre seus corpos.

Nesse contexto, assegurar direitos que abrangem desde a interrupção voluntária da gravidez até a preservação da vida durante o parto e o puerpério torna-se crucial para garantir a integralidade da saúde das mulheres.

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A proteção desses direitos não apenas reflete os valores fundamentais da sociedade, mas também promove a equidade de gênero e o respeito à autonomia individual, contribuindo para uma sociedade mais justa e inclusiva.

Nesse contexto, é crucial considerar a questão da saúde pública ao abordar a descriminalização do aborto. Segundo a Medicina Social Brasileira, existem três critérios para definir um problema de saúde pública: a prevalência da condição, o impacto no indivíduo e na sociedade, e se a condição pode ser prevenida ou se existe algum tratamento efetivo. Infelizmente, o aborto ilegal se encaixa nos três.

Apesar dos dados do aborto induzido não serem precisos no Brasil por conta da sua criminalização, é possível ter uma estimativa através de pesquisas realizadas por centros médicos e instituições brasileiras. O aborto clandestino é a terceira principal causa de mortes maternas no Brasil e a quarta principal, no mundo. Uma em cada sete mulheres já passou por aborto no Brasil.

Segundo o Ministério da Saúde, em 2018 houve no país um milhão de casos de aborto induzidos e cerca de 250 mil mulheres precisaram ser internadas após o procedimento.

É fato que o aborto ilegal traz diversas consequências maléficas para a vida da mulher, tanto físicas — hemorragias, infecções, perfurações de órgãos e infertilidade — quanto mentais e psicológicas, como flashbacks de culpa e depressão, quadros que muitas vezes resultam em suicídios.

Indo além, a gestante possui condições especiais de saúde que precisam de acompanhamento médico. As mulheres sem acesso à informação têm medo de recorrer às instituições médico-hospitalares por conta da criminalização. Ora, evidente que quem necessita de acompanhamento médico deveria ser incentivado a buscar ajuda.

Aborto é tema de interesse estatal

Em países como o Brasil, em que as restrições no acesso à educação caminham junto com a pobreza, o aborto clandestino afeta predominantemente as mulheres em situação de pobreza e marginalização. A redução da mortalidade materna devida ao aborto requer a presença de serviços públicos de saúde bem estruturados em diferentes níveis de assistência, assegurando atendimento adequado às mulheres.

É curioso que em países em desenvolvimento, como o Brasil, onde grande parte da população enfrenta restrições no acesso à educação, algumas pessoas ainda insistam em ignorar que o aborto é, sim, uma questão de interesse estatal.

Por fim, a precariedade na oferta de assistência à saúde sexual e reprodutiva, incluindo deficiências no planejamento familiar, contribui para a ocorrência de numerosas gravidezes indesejadas.

Como resultado, muitas mulheres acabam optando pela prática do aborto como uma resposta a essa lacuna na atenção à saúde. Daí resulta a necessidade urgente de se implementar abordagens mais abrangentes e acessíveis para promover a educação reprodutiva no país.

Descriminalização do aborto é garantia de independência

Em suma, a luta pela descriminalização do aborto emerge como uma necessidade imperativa em prol da saúde pública. É imprescindível desvincular o debate dessas práticas do âmbito moral e religioso, direcionando-o para a realidade alarmante das estatísticas de mortes e internações hospitalares relacionadas ao aborto clandestino.

A criminalização não apenas falha em impedir a ocorrência dessas práticas, mas também contribui para um cenário de riscos e precariedade na saúde das mulheres. Assim, a busca por políticas em busca da descriminalização visa assegurar o direito à saúde reprodutiva, reduzir as taxas de mortalidade e garantir que as mulheres tenham acesso seguro a serviços médicos adequados.

A superação das barreiras morais e religiosas é essencial para promover uma abordagem baseada em evidências, focada na saúde e no bem-estar das mulheres, contribuindo para uma sociedade mais justa e consciente.

A descriminalização do aborto é a garantia legal de que cada mulher é a única com poder de decisão sobre seu próprio corpo. Uma declaração de independência que reverbera em nome da liberdade e da dignidade feminina.

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