Opinião

Importância do laudo psicológico em crimes de estupro de vulnerável

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14 de março de 2024, 7h04

Crimes sexuais são fatos complexos e de delicado tratamento perante o sistema de Justiça Criminal. São fatos cometidos amiúde às escondidas, sem a presença de testemunhas, de modo que não raro o único elemento de prova é a palavra da vítima, que acaba por receber alto valor probatório.

A participação da vítima possui delicado tratamento pela norma penal e pelo rito processual. Basta ver a polêmica questão da (des)necessidade de representação e o fenômeno da revitimização.

Quando delitos desta natureza são praticados em desfavor de menores de idade, há questões ainda mais graves envolvidas.

Isso porque o menor de idade não tem o seu desenvolvimento psíquico completo, de modo que não há ainda discernimento ou capacidade cognitiva para compreender os fatos e comportamentos humanos que o cercam — menos ainda a capacidade para consentir.

Nesse contexto, elemento de prova que se mostra fundamental em delitos dessa natureza é o laudo psicológico, cuja aplicação possui parâmetros processuais a serem observados.

Valor probatório do laudo e momento processual para a sua confecção

O laudo psicológico é de fundamental importância para a apuração de crime sexual contra menor, especialmente em delitos de estupro de vulnerável.

A palavra laudo vem do latim laudis, e significa valor, mérito. No âmbito processual, pode-se dizer que: “o Laudo [Psicológico] destina-se a fazer prova de uma situação ou condição psicológica, cujo conhecimento é importante para fundamentar a tomada de decisão do órgão julgador ou, preliminarmente, instruir uma ação ou contestação” [1].

No aspecto defensivo, o laudo psicológico é apto, por exemplo, a encontrar sinais de indução ou manipulação da fala, como em casos que o(a) infante verbaliza um discurso decorado ou fala palavras que não correspondem ao vocabulário de sua faixa etária — sinal de que não são elementos espontâneos, mas sim que alguém está manipulando o seu comportamento.

A depender da idade da vítima, é somente a partir de um exame realizado por profissional, a partir de critérios técnicos, que poder-se-á extrair um relato embasado do ocorrido, de modo que sem tal elemento, não há prova condenatória [2].

Na jurisprudência, a importância do laudo é reforçada em muitos julgados, sendo comum falar-se na sua importância para a descoberta da “verdade real” [3]. Há situações concretas, portanto, que a ausência do laudo psicológico (somado a outras circunstâncias do caso concreto) leva à absolvição do acusado [4].

Ademais, tem-se que o momento ideal para a confecção do exame é em tempo próximo do fato. Isso auxilia na preservação da memória, mormente em vítimas de pouca idade, e diminui os danos da revitimização.

A solução jurídica costuma ser a iniciava da autoridade policial, ou, então, a ação de produção antecipada de provas, cujo exercício encontra guarida tanto no Código de Processo Penal (artigo 156, inciso I), quanto no Código de Processo Civil (artigo 381), devendo o Juízo observar os requisitos da necessidade e da adequação da medida [5].

Nesse sentido, consulte-se ementa de julgado do TJ-RS:

AÇÃO CAUTELAR DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVAS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. REALIZAÇÃO DE PERÍCIA PSICOLÓGICA NA VÍTIMA. 1 – A realização do exame psicológico pelo Poder Judiciário, com a finalidade de verificação da credibilidade/confiabilidade das declarações da menor, encontra guarida no inciso I do art. 156 do CPP, o qual autoriza, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observada a necessidade, adequação e a proporcionalidade da medida. 2 – No caso em apreço, em se tratando de delito sexual    praticado, em tese, contra vítima com apenas sete anos de idade, imprescindível a produção da prova pericial para a apuração da verdade real. Ademais, evidente a probabilidade de que a elucidação dos acontecimentos fique prejudicada caso não seja imediatamente realizada a prova. Isto porque o transcurso do tempo tende a macular a memória da infante, contribuindo, ainda, para o fenômeno da revitimização da suposta ofendida. APELO IMPROVIDO. (Apelação Crime, nº 70061031456, 5ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, relator: Cristina Pereira Gonzales, julgado em: 29/10/2014 – grifou-se).

Muito embora seja esse o paradigma esperado, há situações em que é difícil ou mesmo impossível uma realização da perícia em momento próximo à realização do fato. Em situações tais, é necessário que se faça um balanço entre a proteção da vítima (que não deve passar por revitimização, salvo em situações pontuais e justificadas) e os direitos processuais do réu.

Não se pode, aprioristicamente, demarcar um lapso temporal mandatário para que o exame não possa mais ser feito, sob pena de não se poder produzir essa prova.

O TJ-RS, contudo, já demarcou diretrizes, tendo reconhecido preclusão de pedido de nulidade por ausência de laudo psicológico, pois tal requerimento foi feito em alegações finais, demonstrando a ausência de interesse na produção da prova. No caso concreto, o delegado de polícia havia requisitado a realização de exame, mas o laudo jamais aportou aos autos; logo, a defesa teve a oportunidade de pedir a remessa do laudo durante todo o processo, mas deixou para fazê-lo apenas ao final [6].

Por outro lado, tribunal gaúcho também já afastou justificativa de juízo de primeiro grau que indeferiu a realização do exame ancorado em metas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Não é preciso dizer que agiu bem a corte gaúcha: nenhuma meta poderá ser honrada ás custas dos direitos e garantias das pessoas submetidas ao sistema de Justiça Criminal [7].

De todo o modo, é preciso consignar que o texto do inciso I do artigo 156 do CPP faculta ao juiz determinar a medida de ofício. Tal possibilidade, contudo, não encontra amparo no sistema acusatório, no bojo do qual é vedada a iniciativa probatória do juiz, a qual deve ficar exclusivamente sob guarida das partes – Ministério Público e Defesa [8].

Importância do laudo à luz do “depoimento especial” e/ou “depoimento sem dano”

Outra questão que muito importa à aplicação prática dos exames psicológicos são as suas relações (e possíveis confusões) com a modalidade do “depoimento especial” (que ainda é comumente chamado de “depoimento sem dano”).

Os ritos do Judiciário, como se sabe, são formais e litúrgicos. Há toda uma ritualística, uma liturgia que pode constranger as pessoas em seus depoimentos perante a corte. Por evidente, tal situação de constrangimento é agravada ao tratar-se de vítimas de delitos sexuais, ainda mais menores de idade. O fenômeno da revitimização se apresenta em situações assim.

Esse problema é conhecido há muitos anos, tendo o Judiciário empregado esforços para superá-lo. A partir do ano de 2003, o Rio Grande do Sul passou-se a utilizar o “depoimento sem dano”, metodologia criada por José Antônio Daltoé Cezar, então juiz de direito da 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre, e hoje desembargador do Tribunal de Justiça daquele estado [9].

Com o tempo, após diversos diplomas regulatórios e decisões dos tribunais superiores, sobreveio a Lei nº 13.431/2017 — complementada pelo Decreto nº 9.603/2018 —, que instituiu todo um sistema de garantias para a proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, e instituindo o denominado “Depoimento Especial”.

Na linguagem do STJ, o depoimento especial, ou depoimento sem dano, visa ao “resguardo e proteção de crianças e adolescentes, evitando sua eventual revitimização pela sucessiva colheita de depoimentos, proporcionando-lhes o devido cuidado e assistência em situações especialmente sensíveis, como no caso de crimes sexuais cometidos contra vulneráveis” (STJ, AgRg no AREsp nº 2.322.796/SP, rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca. D.j. 23 mai. 2023).

Trata-se de instituto hoje consolidado no ordenamento jurídico pátrio e na prática forense. Amiúde, as infantes vítimas de violência sexual têm o seu depoimento colhido com essa técnica, mesmo antes do início da ação penal, com os mesmos fundamentos expostos linhas acima, i.e., a partir dos artigos 156 do CPP e 381 do CPC, somados ao § 1º do artigo 11 da Lei nº 13.431/2017.

De todo o modo, é preciso alertar que o depoimento especial não está imune a críticas. Fala-se, p. ex., que a atuação dos psicólogos ou assistentes sociais não está livre de erros, podendo haver questionamentos indutórios, levando a falsas memórias [10].

Para evitar o nefasto fenômeno, pensa-se que a oitiva deve iniciar com perguntas abertas, que tendem a exigir maior controle na lembrança das memórias — e, assim, mais detalhes e menos distorções —, para apenas então lançar perguntas mais específicas [11]. Além disso, é preciso anotar que há evidentes traços de inquisitorialidade nesse procedimento, o que pode levar a um quadro mental paranoico por parte do julgador [12].

Como lembra Trindade,

“antes de tudo, a oitiva infantil deve ser conduzida no mais absoluto respeito aos direitos da criança e do adolescente e com a consciência de que, em qualquer caso, a busca da verdade dos fatos é uma competência do juiz, que é perito dos peritos (peritum peritorum). Em qualquer hipótese, deverá ser facilitada a coleta das informações e isso significa não conduzir ou guiar o depoimento através de perguntas dirigidas, nem interromper a continuidade do relato, mas favorecer a expressão livre sem colocar perguntas indutoras ou sugestivas que, se formuladas, terão importante repercussão sobre a narração dos fatos” [13].

Portanto, muito embora o “depoimento especial” (ou “depoimento sem dano”) tenha méritos na tentativa de humanizar a coleta da palavra da vítima em crimes tão graves, é preciso ter a consciência de que este procedimento não é infalível.

Não se trata de uma competição entre esse elemento de prova e o laudo psicológico, mas, sim, de complementaridade — que deve vir em favor da defesa. A depender do fato, a complexidade das circunstâncias poderá demonstrar que somente o laudo psicológico poderá fazer a prova da narrativa trazida pela vítima, cuja ausência não poderá ser suprida pelo depoimento especial.

De todo o modo, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem sido no sentido de que fica ao encargo do magistrado competente a decisão motivada pela melhor prova a ser produzida para contemplar as particularidades do caso concreto:

CORREIÇÃO PARCIAL. IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL COM A DECISÃO QUE NA AÇÃO CAUTELAR DE PRODUÇÃO DE PROVAS, OBJETIVANDO-SE O DEPOIMENTO ESPECIAL DE ADOLESCENTE VÍTIMA DE VIOLÊNCIA SEXUAL, CONVERTEU SUA OITIVA POR MEIO DE DEPOIMENTO SEM DANO EM PERÍCIA, NOMEANDO PSICÓLOGA PARA TANTO. VÍTIMA QUE CONTA ATUALMENTE COM 14 ANOS DE IDADE.

Considerando que a suposta vítima possui hoje 14 anos de idade, a solução mais adequada é aquela que entrega à discricionariedade do Magistrado responsável pela instrução do processo a realização ou não da prova na modalidade do “Depoimento sem Dano”, motivo pelo qual não se vislumbra, na decisão que optou pela perícia da vítima por profissional da área de psicologia, qualquer inversão tumultuária dos atos procedimentais pertinentes e das fórmulas legais aplicáveis à espécie.

CORREIÇÃO PARCIAL IMPROCEDENTE. (TJ-RS, Correição Parcial nº 5104771-65.2022.8.21.7000, des.ª rel.ª Maria de Lourdes Galvão Braccini de Gonzalez. Julgado em: 30 jun. 2022).

O laudo psicológico, na acepção ora empregada, constitui antes de mais nada uma garantia aos legítimos interesses defensivos do réu.

Conclusão

Em se tratando de crime de estupro de vulnerável, a prova, que é naturalmente de difícil obtenção em crimes sexuais em geral, se mostra ainda mais complicada devido à tenra idade da vítima.

Não somente o relato é de difícil apreensão, como há todo um risco de revitimização que deve ser mitigado ao máximo por parte dos agentes envolvidos com o sistema de Justiça Criminal, mormente o Judiciário. Contudo, para o fim de preservar os direitos processuais do acusado, é necessário que se produza robusta prova para que haja condenação.

Nesse contexto, o laudo psicológico se apresenta como uma prova confiável, que auxilia na interpretação da experiência da vítima, mitigando também os riscos de revitimização, emprestando confiabilidade ao sistema de Justiça e consolidando-se em uma garantia ao acusado.

 


[1] TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 572.

[2] “Não aportou aos autos, nas fases investigatória e processual, nenhum parecer psicológico, elaborado por especialista, que pudesse confirmar, com base em critérios técnicos, que as frases ditas pela criança à atendente da creche efetivamente corresponderam a uma situação vivenciada por ela, e que a hesitação em tocar novamente no assunto decorra de um eventual trauma gerado a partir desse episódio. […] Com efeito, tal dificuldade de dar um relato da situação vivida, quase sete meses após os fatos, é inerente da própria idade da menina. No entanto, não há como deixar de observar que a criança não foi ouvida na fase investigatória, por profissional competente para realizar avaliação psicológica e apresentar um laudo que poderia servir de prova dos abusos denunciados.” (TJRS, Apelação criminal nº 70084038694, rel.ª Des.ª Glaucia Dipp Dreher. D.j. 27 ago. 2020).

[3] Este princípio não será discutido, bastando dizer que, embora tenha-se ressalvas quanto a sua validade deontológica, ele é bem-vindo na medida em que favoreça o devido processo legal e os direitos à ampla defesa e ao contraditório. Para uma abordagem crítica, consultar: OLIVEIRA, Theodoro Balducci de. Delação premiada e verdade no processo penal brasileiro. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022, p. 34 e s.

[4] “No caso em tela, a prova produzida ficou restrita aos depoimentos da vítima e de testemunhas circunstanciais, não existindo qualquer exame técnico/pericial para avaliação social, psicológica ou psíquica dos envolvidos a corroborar a descrição fática contida na denúncia” (TJRS, Apelação Criminal nº 5001034-79.2014.8.21.0031/RS, rel. Des. Leandro Figueira Martins. D.j. 14 dez. 2022).

[5] Esses requisitos estão previstos no texto do art. 156, I, CPP, e correspondem ao que se consagrou na doutrina como princípio da proporcionalidade. O tema é complexo e não será abordado nestas linhas, ficando a leitura de SALTIEL, Ramiro Gomes von. Jurisdição penal e proporcionalidade: linhas sobre a proteção de direitos fundamentais na execução penal. Cadernos de direito, v. 21 (40), jan. jun. 2022, p. 110.

[6] TJRS, Apelação crime nº 70083516138, rel.ª Des.ª Isabel de Borba Lucas. D.j. 30 set. 2020.

[7] TJRS, Correição Parcial nº 70078324886, rel. Des. Dálvio Leite Dias Teixeira. D.j. 12 set. 2018.

[8] Referencie-se o sempre atual texto de COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, a. 30, n. 30, 1998, p. 166 e s.

[9] Consultar a cuidadosa exposição histórica do instituto feita por: TRINDADE, Matheus Gonçalves dos Santos; GUARNIERI, Pedro Guilherme Ramos. Violência sexual contra criança ou adolescente: uma análise dos mecanismos de escuta especializada e depoimento especial. In: CASTILHOS, Aline Pires de Souza Machado de; POLL, Roberta Eggert (org.). Crimes sexuais e suas implicações na ordem social. Florianópolis: Habitus, 2023, p. 183 e s.; e, também, por DI GESU, Cristina. Prova penal e falsas memórias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 190 e s.

[10] DI GESU, Cristina. Op. cit., p. 196.

[11] TRINDADE, Matheus Gonçalves dos Santos; GUARNIERI, Pedro Guilherme Ramos. Op. cit., p. 190.

[12] Cfr. ROSA, Alexandre Morais da. O depoimento sem dano e o advogado do Diabo. A violência “branda” e o “quadro mental paranoico” (Cordero) no Processo Penal. Disponível em: https://encurtador.com.br/pzBU6; e ROSA, Alexandre Morais da; LOPES JR., Aury. Depoimento Especial é antiético e pode levar a erros judiciais. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-jan-23/limite-penal-depoimento-especial-antietico-levar-erros-judiciais/

[13] TRINDADE, Jorge. Op. cit., p. 409.

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