Escritos de Mulher

Entendendo o estelionato sentimental sob a perspectiva de gênero (parte 2)

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13 de março de 2024, 10h19

O crime praticado por meio virtual
Romance scammer – ‘golpista de romance’ em um namoro virtual

Semana passada, nesta coluna, narramos o caso de Joana, que conheceu Mateus em uma festa, e foi vítima de estelionato sentimental. Hoje, falaremos de Silvia [1], também empresária bem-sucedida, que conheceu Kevin no Tinder, famosa rede social de relacionamentos.

No auge da pandemia, ela perdeu mais de R$ 600 mil para um homem que sequer conheceu pessoalmente. Hoje ela sabe que se comunicava com uma verdadeira associação criminosa, especialista na prática desse tipo de crime no âmbito virtual, identificada por meio dos bloqueios de contas bancárias.

A partir desse caso, explicaremos a nova modalidade de estelionato sentimental virtual, conhecida nos Estados Unidos como “romance scammer” por meio da qual o golpista escolhe uma vítima nas redes sociais, identifica sua principal vulnerabilidade e utiliza suas informações públicas para gerar pontos de convergência: gostar de escalada, ter animais de estimação, as músicas favoritas ou séries de televisão.

Tudo pode servir para que o criminoso forme o personagem perfeito, puxe assunto e escolha o melhor “avatar” para lhe servir de identidade. Via de regra, o casal sequer chega a se conhecer pessoalmente, pois o sujeito afirma morar em outro país, mas alimenta, todos os dias, as promessas de encontro, enquanto asfixia, financeiramente, a namorada.

Assim aconteceu com Silvia. Aos 40, ela havia acabado de perder o pai por Covid, estava sensível e vulnerável, quando aquele homem lindo e interessante lhe mandou o primeiro “match”. Súbito, ele preencheu seu vazio com mensagens de amor, carinho e atenção.

Eles passavam horas se comunicando pela internet. Ele se dizia americano, filho de brasileiros, residente na Califórnia. Dia e noite, enviava-lhe fotos e vídeos de sua vida cotidiana: o trabalho em um grande hospital, o cuidado com o cachorro, o amor pela filha, as idas ao supermercado ou à academia.

Spacca

Tempos depois, Silvia descobriu que todas as imagens que recebeu, durante meses, não eram de nenhum Kevin, mas, sim, de um famoso médico americano, estilo blogueiro. O estelionatário escolheu tal perfil para usar como “identidade” e aproveitava o excesso de postagens do rapaz para extrair diversas fotos e enviar à vítima, como se aquela fosse sua vida.

Como ela nunca encontrou o suposto namorado pessoalmente, não sabe sequer se ele existe, se é uma mulher, um homem ou se ela se comunicava, de modo ingênuo, com diversas pessoas por dia. Agora, em retrospectiva, ela se lembra de diálogos nos quais Kevin se esquecia de algo que ela havia dito dias antes — o que pode indicar uma possível falha de comunicação entre os agentes da associação criminosa.

Os pedidos de dinheiro

Após alguns poucos meses de relacionamento, o ludibriador disse que havia despachado diversos presentes para Silvia (relógio, joias, bolsa, sapato), por um serviço de entrega.

Dias depois, ela recebeu o e-mail de uma suposta empresa solicitando o pagamento de uma vultosa taxa para a liberação do pacote pela alfândega. Indagado por Silvia, Kevin pediu que ela efetuasse o custeio, com a promessa de reembolsá-la.

Ele disse que todas as suas contas, seus bens e cartões estavam bloqueados em razão de um conturbado processo de divórcio, prestes a ser resolvido.

Ele chegou a enviar o link de um banco, com um suposto acesso a sua robusta conta bancária, para que Silvia pudesse verificar que ele teria como ressarci-la em breve.

Spacca

A criação de uma página de instituição bancária falsa, bem elaborada, toda em inglês, mostra a sofisticação da associação criminosa e dá veracidade ao golpe.

Silvia, então, fez a transferência solicitada, mas nunca recebeu os presentes enviados pelo namorado. Em sucessivas trocas de emails com a empresa, todos em inglês bem escrito, o problema sempre parecia ser da transportadora, e Kevin se mostrava igualmente indignado.

Daí em diante, diversos foram os motivos — os mais variados — para Silvia transferir valores para Kevin: ele chegou a inventar, até mesmo, que sua filha precisava se submeter a uma cirurgia, prontamente custeada pela namorada. Dias depois, ele disse que a menina havia falecido… e a empresária chorou, copiosamente, por uma enteada que nunca existiu.

A criação desse tipo de drama não é em vão. Os estelionatários se aproveitam dos sentimentos legítimos de suas vítimas: amor, saudade, tristeza. Não raro, passam um tempo sem dar notícias, para gerar angústia, ansiedade, inquietação. Depois, reaparecem com uma história triste, acompanhada de um pedido de dinheiro. A mulher, feliz com o retorno da pessoa amada, não consegue perceber o golpe. Assim ocorreu com Sílvia.

Após o suposto falecimento da filha, Kevin dizia que estava arrasado e que, agora, só lhe restava Sílvia em sua vida. Prometeu se mudar para o Brasil, onde eles se casariam e viveriam, como em um conto de fadas, felizes para sempre.

Contudo, em mais uma sucessão de histórias mirabolantes, os vôos eram sempre cancelados ou alterados. Quando, enfim, Kevin afirmou ter chegado em solo brasileiro, disse ter testado positivo para Covid e que teria que ser hospitalizado. Sucederam-se inúmeros contatos com supostos médicos da equipe que o atendia de modo particular, solicitando pagamentos exorbitantes para mantê-lo internado e entubado.

A responsabilidade pela vida de outra pessoa fez Silvia gastar todo o resto do dinheiro que tinha, em sucessivas transferências para uma conta bancária que, ora se sabe, jamais foi de uma instituição médica.

Somente quando precisou contrair um empréstimo ela percebeu que havia algo de errado naquela gastança. Uma pessoa de sua confiança lhe alertou que ela poderia estar sendo vítima de um golpe. Ao encontrar a página do verdadeiro médico na internet — cuja imagem foi surrupiada por Kevin — ela realizou que havia dispendido mais de meio milhão de reais, por alguém que não existia.

A ciência explica que, no auge da paixão, os excessos de dopamina, serotonina e outros neurotransmissores e hormônios podem diminuir o juízo crítico e deixar a vítima menos desconfiada e racional. Um cérebro apaixonado — e manipulado emocionalmente — potencializa a idealização do ser amado e não é capaz de identificar a mentira e a falsidade.

Justo por isso, é muito difícil a mulher se perceber enganada e, mesmo quando ela compreende sua condição de vítima, sente vergonha e culpa por ter se deixado seduzir pela lábia do falsário. Não à toa, são baixos os índices de registro de ocorrência em sede policial, apesar da crescente prática criminosa.

O estelionato por fraude eletrônica

O protagonista dessa trama, assim como o Mateus da história de Joana, narrada no artigo anterior, também se mostrava apaixonado pela vítima, prometia casamento e uma vida feliz ao seu lado. Ele induzia e mantinha Silvia em erro, mediante artifício, ardil, e diversos outros meios fraudulentos, para obter vantagem ilícita, o que configura o estelionato.

A diferença é que, no caso de Silvia, a forma de atuação foi toda virtual, sem contato físico e envolveu diversos agentes.

Na divisão de tarefas, alguns ficavam incumbidos das bem escritas mensagens em português e inglês; outros pela criação de um link falso de um banco inexistente, mas em tudo verossímil; um homem chegou a fazer um vídeo com a vítima, em um hospital, fingindo ser o médico responsável pelo atendimento a Kevin.

Dezenas de pessoas receberam as transferências bancárias realizadas por Silvia.

Embora não haja um tipo penal específico para o chamado “estelionato sentimental”, o caso de Silvia configura o crime de estelionato por fraude eletrônica (artigo 171, §2º-A do Código Penal), que se caracteriza pela obtenção de vantagem financeira ilícita mediante fraude, utilizando-se de “informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo”. A pena é de reclusão, de 4 a 8 anos, e multa.

No exemplo em questão — e isso é muito comum nesse tipo de crime — os agentes também respondem pelo crime de associação criminosa, previsto no artigo 288 do Código Penal, com pena de cinco a dez anos de reclusão, e multa.

Como iniciar uma investigação desse tipo de crime?

O ideal é que o Registro de Ocorrência e a Notícia de Crime sejam realizados na Delegacia de Repressão a Crimes de Informática, que tem expertise no assunto. Quanto mais informações a noticiante oferecer — emails, números de telefone, contas de redes sociais, skype, links etc — mais chances de êxito terá nas investigações.

De modo geral, o principal ponto de partida da autoridade policial são as informações bancárias de transferência. Com o famoso “follow the money” (“siga o dinheiro”), a delegacia começa a identificar os beneficiários da fraude.

Além disso, as trocas de mensagens pelos mais diversos aplicativos podem indicar os números de IPs (Internet Protocol) utilizados pelos golpistas, ou seja, uma espécie de endereço que identifica o dispositivo acessado, ou uma rede de internet local.

O problema é que, não raro, esse tipo de organização criminosa utiliza IPs localizados em outros países do mundo, o que leva a polícia a expedir Carta Rogatória para a intimação dos criminosos, retardando ou dificultando as investigações. Essa é a maior dificuldade na apuração de um crime virtual, que rompe fronteiras e apresenta formas cada vez mais especializadas de realização.

Projetos de lei sobre estelionato sentimental

Há anos, tramitam projetos de lei com vistas a incluir, no tipo penal do artigo 171 do Código Penal, a modalidade de estelionato sentimental.

O Projeto de Lei 6.444/2019, do deputado federal Júlio César Ribeiro (Republicanos-DF) (ora apensado a outros sobre temas similares), trazia a seguinte previsão:

“Estelionato sentimental. VII – induz a vítima, com promessa de constituição de relação afetiva, a entrega de bens ou valores para si ou para outrem.”

Tal projeto de lei reconhece que “nessa espécie de estelionato, o prejuízo não é apenas material, mas moral e psicológico”. Não há previsão de aumento de pena, apenas uma redação mais específica para o tipo penal.

Um segundo projeto (PL 5.197/2023), de autoria do deputado federal Ricardo Ayres (Repub- TO), propõe a inclusão de um novo parágrafo ao artigo 171, com uma causa de aumento de pena para a modalidade denominada “estelionato afetivo”, nos seguintes termos:

“A pena aumenta-se de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o agente comete o crime prevalecendo-se de relação afetiva mantida com a vítima.”

Atualmente, tal projeto tramita na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, aguardando manifestação. A justificava apresentada para a proposição do projeto é a de que “a gravidade da conduta e a extensão dos prejuízos decorrentes desse tipo de ação impõem o endurecimento da lei penal”.

Meios de reparação e prevenção

Um processo criminal pode buscar a condenação dos acusados e a reparação financeira da vítima, de modo a minimizar seu prejuízo. Contudo, nada apagará os efeitos de uma verdadeira violência psicológica que esse tipo de crime lhe causa.

No caso em questão, a vítima foi submetida a todo tipo de aflição e angústia, por fatos que jamais existiram e foram fabricados, apenas, para pressioná-la a fazer os mais diversos pagamentos. Ao descobrir-se enganada, ela se viu em profunda depressão, em um inabalável processo de culpa.

É preciso, portanto, pensar meios de prevenção desse tipo de crime. A conscientização das mulheres é fundamental. E algumas dicas de segurança podem ser seguidas por elas, ao conhecerem novos parceiros nas redes sociais, dentre as quais:

i) checar a identidade da pessoa, pedir o seu nome todo, endereço, informações de seus familiares e amigos, para se certificar de que não se trata de um perfil falso;
ii) verificar, por meio de programas de reconhecimento facial disponíveis na internet, se a imagem enviada corresponde à identidade apresentada (foi assim que, tardiamente, Silvia percebeu que Kevin utilizava a foto e os vídeos de outra pessoa);
iii) não compartilhar cartões de crédito, senhas, informações pessoais;
iv) cuidado especial com pedidos de transferências, pix, pagamentos solicitados pelo amado ou a ele relacionados.

De toda forma, evitar a prática desse tipo de crime não deveria ser responsabilidade da vítima, mas sim dos órgãos de persecução penal, e das plataformas nas quais os estelionatários navegam livre e impunemente.

O crime só acontece, porque seus autores estão acobertados por perfis fakes e não há meios eficientes e ágeis para denunciá-los, nem nas próprias redes sociais, tampouco no sistema de justiça criminal.

O caso ora narrado é verídico, acompanhado juridicamente por uma das subscritoras desse artigo. Ao realizar o registro de ocorrência, a advogada recomendou técnicas de inteligência e investigação que poderiam levar à imediata prisão dos acusados — que à época ainda enviavam mensagens para a vítima — mas ouviu, da autoridade policial, que a delegacia não tinha equipe e mecanismos para aquelas medidas, e que esse tipo de flagrante só existia em séries de televisão.

Os golpes ocorrem com a velocidade da luz e, com o avanço das tecnologias, enquanto as investigações dependerem de lentos ofícios às plataformas digitais, cartas precatórias, rogatórias e atas notariais. Nada mais anacrônico, em um mundo cada vez mais digital.

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[1] Nome fictício, para preservar a identidade da vítima.

Autores

  • é advogada criminalista, sócia do escritório Maíra Fernandes Advocacia, mestre em Direito e especialista em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora convidada da FGV Rio, presidente da Comissão de Crimes Digitais da OAB-RJ e coordenadora do Departamento de Novas Tecnologias e Direito Penal do IBCCRIM.

  • é advogada criminalista.

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