Lavagem & Afins

Operando com bitcoins: conduta de ocultação exigida pelo tipo penal do art. 1º, da Lei nº 9.613

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Especialista em Direito Penal Econômico pela FGV. Bacharel em Direito pela FD da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado consultivo no escritório Heloísa Estellita Advogados.

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  • é mestre em Direito Penal pela FDUSP professora dos cursos de pós-graduação de Direito Penal Econômico e Compliance do FGV Law. Advogada.

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  • é graduada pela FDUSP especialista (LL.M) em Mercado Financeiro e de Capitais pelo Insper. Mestranda em Direito Penal pela FDUSP.

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6 de março de 2024, 10h18

Uma transação de bitcoins simples configura conduta de ocultação exigida pelo tipo penal do art. 1º, da Lei nº 9.613/98?

Considere o seguinte caso: após conseguir valores em espécie fruto de vantagem indevida de um crime de corrupção, o funcionário público F transfere-os, em espécie, para o detentor de bitcoins D. Após essa transferência, D, a partir de sua chave privada, transfere o correspondente valor em bitcoins de seu endereço para o endereço de F. Pergunta-se: F praticou conduta objetivamente típica do crime de lavagem de dinheiro, disposto no art. 1º, caput, da Lei nº 9.613/98?

A ascensão e popularização da bitcoin suscitam cada vez mais debates sobre a relação entre tecnologia blockchain e lavagem de dinheiro. Não há dúvida de que, de um ponto de vista político criminal, o surgimento e crescimento das criptomoedas facilitou a prática de lavagem de dinheiro [1].

Não obstante, é necessário investigar, de um ponto de vista repressivo, se as transações com bitcoins, pela tecnologia que utilizam (blockchain), podem ser consideradas, por si mesmas, condutas típicas de ocultação ou de dissimulação exigidas pelo tipo penal de lavagem de dinheiro.

Nesta primeira parte, o artigo [2] procura responder à pergunta acima delimitada, ou seja, uma transação simples de bitcoins (sem qualquer tipo de fraude externa, como uso de identidade falsa ou identidade de terceiros) configura conduta de ocultação exigida pelo tipo penal?

Dois são os objetivos dessa investigação: (i) testar os “dogmas”, por vezes simplórios, de que o simples uso da tecnologia blockchain sempre configuraria ocultação, dada sua característica de privacidade [3], ou, em sentido contrário, de que a rastreabilidade ínsita à tecnologia blockchain afastaria o verbo típico do crime de lavagem de dinheiro [4], e (ii) procurar diminuir o risco de que se realizem acusações automáticas de lavagem de dinheiro sempre que a conduta envolver transações com bitcoins.

O conceito de ocultação

O primeiro desafio para se responder à pergunta não é a compreensão a respeito da tecnologia blockchain, mas sim algo bem mais próximo do penalista: definir o conceito de ocultação.

Parte-se do conceito gramatical/literal (limite do intérprete em Direito Penal pela proibição de analogia em malam partem), para o qual a palavra ocultar significa esconder ou encobrir [5]. Porém, ele ainda é insuficiente para delimitar a conduta proibida.

Primeiro, o termo ocultar representa, ao mesmo tempo, o resultado de “estar oculto/escondido” e a conduta “ocultante” [6]. A ocultação é um processo por meio do qual pratica-se uma conduta — idônea para ocultar — sobre determinados objetos, de modo que, ao seu final, tais objetos se tornem mais ocultos do que estavam no momento anterior.

Em segundo lugar, a conduta de ocultação recai sobre objetos específicos, que, ao contrário do que o senso comum pode indicar, não são o bem, o direito ou o valor proveniente da infração penal, mas sim determinadas características deles, que são a origem, a natureza, a movimentação, a disposição, a localização e a propriedade [7].

Conjugando essas delimitações, chega-se a duas importantes conclusões:

(i) na situação concreta, os objetos sobre os quais recai a conduta devem estar identificados no momento em que a conduta ocultante será realizada (ex ante). Esta identificação é que servirá de padrão de comparação com o que se observou após a prática da conduta (ex post), para então se definir se houve ou não o resultado de estar oculto.

(ii) na medida em que a ocultação é um processo em que se compara como determinadas características dos bens, direitos ou valores estavam expostas ex ante e como ficaram escondidas ex post, somente as características que se mantenham iguais antes e depois é que são aptas a serem objeto da ocultação. Vale dizer, ao realizar transferência bancária de valores produto de crime de uma conta, em nome de um indivíduo, para outra conta, em nome de uma empresa no exterior, não se está ocultando a localização desses valores, porque, na realidade, com essa conduta a localização está sendo modificada.

Sendo assim, sem pretensão de exaustividade, pode-se afirmar que a ocultação proibida pelo tipo penal de lavagem de dinheiro é a conduta por meio da qual determinada característica de um bem, direito ou valor identificada ex ante se torna mais escondida (ainda é preciso aprofundar e interpretar o que seria estar mais escondida do que anteriormente) ex post, não podendo se modificar nesse processo.

Aplicando o conceito às transações simples com bitcoins

Dada a característica da pseudoanonimidade (alto grau de privacidade e alta rastreabilidade) das transações que se utilizam da tecnologia blockchain, como é o caso da bitcoin, alguns autores adotam posição categórica de que há incompatibilidade entre a prática da conduta típica de ocultação e a utilização dessa tecnologia.

O argumento apresentado é simples: ao se transferir as bitcoins entre endereços, a transação ficará, obrigatoriamente, registrada publicamente na blockchain, razão pela qual não estaria escondida das autoridades [8].

O problema é que essa posição parte da premissa de que a conduta de ocultação recai sobre o valor proveniente de infração penal em si, porém, conforme destacado, a conduta recai sobre certas características deste valor, o que modifica totalmente a análise [9].

A rastreabilidade permitida pela blockchain é compatível com a conduta de ocultação. Isso porque os rastros constantes da blockchain consistem apenas em dados, que registram numericamente as transações, sem referência a qualquer elemento que permita a identificação imediata do indivíduo responsável por sua movimentação (como seriam, por exemplo, informações cadastrais [10]).

Assim, a existência ou não de ocultação do tipo penal de lavagem de dinheiro não decorre da análise isolada da tecnologia, mas sim da verificação de que, com sua utilização, a característica do bem, direito ou valor identificada ex ante se tornou mais escondida ex post.

Retomando o caso

Após conseguir valores em espécie, fruto de vantagem indevida de um crime de corrupção, o funcionário público F transfere-os, em espécie, para o detentor de bitcoins D. Após essa transferência, D faz uma transação do correspondente valor em bitcoins para o endereço de F.

As características aptas a serem objeto da lavagem de dinheiro nesse caso são: a origem do valor, ou seja, de onde o valor veio para chegar nas mãos de F e a propriedade do valor, que é de F. A pergunta, portanto, é: ao se transferir os valores em espécie e receber o correspondente em bitcoins, a origem e a propriedade desses valores se tornaram mais escondidas ou mais fáceis de rastrear?

É possível afirmar que a origem se mantém igualmente escondida, enquanto a propriedade tornou-se mais facilmente rastreável. Isso porque, após a realização da transação, se tornou possível, a partir das informações disponíveis na blockchain, verificar que aqueles dados pertencem à carteira de F, desde que combinados com outras técnicas de investigação.

Afinal, antes da realização da transação não existia sequer a possibilidade de comprovar que as cédulas pertenciam a F (salvo se fossem encontradas em sua posse). Com relação à origem, mantém-se igualmente oculta, ex ante e ex post à transação, pois mesmo que descubram a identidade do endereço de F ou peguem-no com as notas, a origem continuará sendo desconhecida. Portanto, a transação não representa conduta típica de ocultação para a lavagem de dinheiro.

A resposta se modifica, no entanto, se pensarmos em um segundo cenário no qual F recebeu os valores produto da corrupção passiva em sua conta bancária e, na sequência, converteu-os em bitcoin. Nesse caso, é possível afirmar que a origem do valor e a propriedade passam a ficar mais escondidas do que estavam antes.

Isso porque, em razão da própria tecnologia da blockchain, torna-se muito mais difícil vincular a identidade de “F” àquela fração de bitcoin adquirida com produto de infração penal antecedente, quando comparada à situação anterior, na qual os valores estavam armazenados no sistema bancário.

Diversamente da hipótese anterior, pode-se concluir, nesse segundo cenário, que a troca de dinheiro disponível no sistema financeiro por bitcoin constitui conduta idônea a ocultar a origem e a propriedade dos valores provenientes de infração penal. Portanto, o simples fato de a blockchain permitir a rastreabilidade do histórico das transações não impede a prática de ocultação típica da norma penal [11].

Porém, as transações com bitcoins podem envolver o uso de tecnologias de anonimização, o que suscita outras discussões na avaliação de sua subsunção ao conceito de ocultação ou dissimulação do crime de lavagem de dinheiro. A segunda parte deste artigo pretende tratar dessas discussões. Até lá!

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[1] A respeito do incremento do risco de práticas de lavagem de dinheiro com o advento das criptomoedas, cf. resenha elaborada por Heloisa Estellita a respeito da tese de doutorado de Johanna Grzywotz, denominada “Virtuelle Kryptowährungen und Geldwäsche” (ESTELLITA, Heloisa. Criptomoedas e lavagem de dinheiro. Resenha de: GRZYWOTZ, Johanna. Virtuelle Kryptowährungen und Geldwäsche. Revista Direito GV. V. 16, n. 1, 2020, p. 02-05 e 11). No mesmo sentido, CALLEGARI, André Luís. LINHARES, Raul Marques. Lavagem de Dinheiro (com a jurisprudência do STF e do STJ). Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2022, p. 56.

[2] Esse texto é versão resumida e simplificada do artigo CAMPANA, Felipe Longobardi. SERRA, Joyce. RIBEIRO, Bárbara. Operando com Criptomoedas: Meras Transações com Bitcoins podem configurar ato típico de ocultação ou de dissimulação do delito de lavagem de dinheiro? In. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. CAMPANA, Felipe Longobardi. BRECHT, Marina (Orgs.). Criptoativos e lavagem de dinheiro. Um panorama nacional e internacional. São Paulo: Quartier Latin, 2023. A obra é uma coletânea de artigos, resultado do projeto de pesquisa desenvolvido pelo Grupo de pesquisa de lavagem de dinheiro da Faculdade de Direito da USP no ano de 2022.

[3] A privacidade nas transações com bitcoins está presente na medida em que basta o acesso à rede mundial de computadores para gerar o par de chaves (uma pública, conhecida pelo termo “endereço”, e outra privada, denominada “carteira”) e tornar o indivíduo apto a transacionar com bitcoins. As carteiras privadas não possuem informações pessoais sobre aqueles que as detêm, isto é, não revelam o nome, o endereço, o e-mail de acesso, o número “IP” (Internet Protocol) ou qualquer outra informação que possibilite a individualização do transmissor dos dados. (ESTELLITA, Heloisa. Criptomoedas…op. cit., p. 03)

[4] Em termos figurativos, a blockchain constitui espécie de livro contábil que registra publicamente todo o histórico de transações nela realizadas. Tais transações são registradas a partir de sucessão de blocos encadeados (daí porque denominada “blockchain”), em que o último faz referência ao registro de seus anteriores. Assim, a partir das próprias garantias ínsitas à tecnologia, as transações com criptomoedas armazenadas na blockchain são matematicamente improváveis de manipulação fraudulenta, , garantindo-se validade das operações nela registradas.

[5] O conceito gramatical é adotado por grande parte da doutrina nacional como, por exemplo, BADARÓ, Gustavo. BOTTINI, Pierpaolo. Lavagem de dinheiro: Aspectos penais e processuais penais. Comentários à Lei 9.613/1998, 2 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 66; CALLEGARI, André Luís. LINHARES, Raul Marques. Lavagem…op. cit., p. 134; PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico. 9 ed., rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2021 [e-book], p. 551; BALTAZAR JR., José Paulo. Crimes federais. 11 ed., São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1090; BITENCOURT, Cezar Roberto. MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Lavagem de dinheiro segundo a legislação atual. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 102, pp. 163-220, mai./jun. 2013, p. 170 e ss.; e PRADO, Luiz Regis. Delito de lavagem de capitais: um estudo introdutório. In: PRADO, Luiz Regis. Direito penal contemporâneo: estudos em homenagem ao professor José Cerezo Mir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 249. Importante destacar, no entanto, que a maior parte destes autores faz a ressalva de que o simples encobrimento não é suficiente para caracterizar a conduta típica, é preciso que exista especial fim de converter o bem em ativo com aparência lícita.

[6] Nesse sentido, Badaró/Bottini afirmam: “Ocultar ou dissimular é ao mesmo tempo um comportamento e um resultado, uma ação e sua consequência, e ambos são elementos do tipo penal…” (BADARÓ, Gustavo. BOTTINI, Pierpaolo. Lavagem…op. cit., p. 68).

[7] Conforme destaca QUINTÃO E SILVA FILHO, o conceito de ocultação e, consequentemente, de conduta ocultante (idônea para ocultar), depende da definição, não expressa no tipo penal, do que se oculta. Nesse sentido, CALLEGARI, André Luís. LINHARES, Raul Marques. Lavagem…op. cit., p. 134 e QUINTÃO E SILVA FILHO, Sérgio. Ocultar ou dissimular de quem? Por uma interpretação restritiva dos verbos nucleares da lavagem de dinheiro. Revista do Instituto de Ciências Penais, v. 5, n. 2, pp. 153-169, 2020, p. 161. Quintão e Silva Filho delimita esses objetos a partir da ideia de que estes atributos devem ter relação com o sistema antilavagem estabelecido pela Lei n. 9.613/98, de modo que precisam ser atributos que (i) determinam pessoas a se tornarem pessoas obrigadas e (ii) para serem inseridas nos registros e comunicações à UIF (Ibid., p. 163-164). A partir desta ideia, o autor complementa: “… atos de disposição que são indiferentes para o sistema antilavagem (não são sujeitos a obrigações, ou não deixam registros), ou que deixam os rastros que levam à constatação pela ocorrência do delito antecedente, são atípicos” (Ibid., p. 165).

[8] Adotam essa posição: MORAES, Felipe Américo. Bitcoin e lavagem de dinheiro: Quando uma transação configura crime. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022, p. 197; e Johana Gryzwotz, citada por Heloisa Estellita (ESTELLITA, Heloisa. Criptomoedas…op. cit., p. 10). Callegari/Linhares, por outro lado, destacam que a característica da rastreabilidade pode auxiliar no combate à lavagem de dinheiro, mas não apresentam posição de que há incompatibilidade entre ocultação e operações com blockchain (CALLEGARI, André Luís. LINHARES, Raul Marques. Lavagem…op. cit., p. 57).

[9] O exemplo trazido por Quintão e Silva Filho é ilustrativo desta diferença. O autor apresenta o seguinte exemplo: “em um mesmo voo internacional, dois indivíduos transportam para o exterior um proveito econômico de crime consiste no valor de cem mil reais. Um leva esse valor exposto em seu pulso, na forma de valioso relógio, cujo valor não é informado para as autoridades alfandegárias. O outro leva esse valor em notas, armazenadas em um fundo falso de sua mala, mas informa esses valores às autoridades alfandegárias” (QUINTÃO E SILVA FILHO, Sérgio. op. cit., p. 159).

[10] Por esse motivo é que, para as transações intermediadas por Exchanges (que não são objeto de análise nesse artigo) as políticas de know your client são de suma importância.

[11] Silveira/Camargo fazem o seguinte alerta: “a característica da rastreabilidade não implica impossibilidade de ocultação. A finalidade e a busca de ocultação podem se dar mesmo em ambientes nos quais se permita sua descoberta – aceitar o contrário seria confabular no terreno do crime perfeito e sem praticidade penal” (SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. CAMARGO, Beatriz Corrêa. Ocultar o oculto: apontamentos sobre a lavagem de dinheiro em tempos de criptomoedas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 175, n. 29, pp. 145-187, jan. 2021, p. 154).

Autores

  • é professor de Direito Penal Econômico na pós-graduação da FGVlaw e do Mackenzie. Assessor da ministra Daniela Teixeira (STJ). Doutorando e mestre em Direito Penal pela FD-USP. Especialista em Direito Penal Econômico pela FGV. Bacharel pelo Mackenzie.

  • é mestre em Direito Penal pela FDUSP, professora dos cursos de pós-graduação de Direito Penal Econômico e Compliance do FGV Law. Advogada.

  • é graduada pela FDUSP, especialista (LL.M) em Mercado Financeiro e de Capitais pelo Insper. Mestranda em Direito Penal pela FDUSP.

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