Opinião

Existe 'golpe usando a Constituição'

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1 de março de 2024, 6h08

No último domingo (25/02), o Brasil assistiu atento e apreensivo uma grande manifestação na avenida Paulista, na qual o ex-presidente da República dirigiu-se a milhares de apoiadores após recentes descobertas no bojo das investigações sobre a frustrada intentona golpista.

Certamente, a esta altura, não restará mais dúvidas a qualquer cidadão atento e minimamente desapaixonado de que, diante do que se revelou por meio dos vídeos recentemente descobertos, sem falar nas famigeradas “minutas golpistas”, de fato, estávamos em meio a uma perigosa e ousada escalada antidemocrática — para ficarmos aqui com um eufemismo.

Tal movimento, aliás, muito anterior às próprias eleições, estabeleceu no poder uma rotina de permanente tensão, política e institucional, uma dinâmica de constantes provocações, desafiando e testando limites, incitando e sustentando um clima de desconfiança e insurreição que teria, nos atos de 8/1/2023, seu ponto mais alto e, porque não dizer, decisivo.

Sem intenção de aprofundar qualquer análise política sobre o ato do dia 25, seu propósito e desdobramentos, interessa-me aqui apenas tecer breves reflexões sobre algumas falas do ex- presidente e, especialmente, sobre o que elas podem nos ensinar, ou advertir.

Isto porque, por vezes, nossa crença e confiança excessivas na legalidade e na institucionalidade — e aqui me refiro especialmente a nós, do mundo jurídico — pode nos tornar descuidados e desatentos a ameaças veladas e mesmo descrentes dos riscos aos quais devemos nos manter permanente atentos. Essa foi, inclusive, uma das causas de muitos dos golpes experimentadas ao longo da história, para além de outros tantos fatores, por óbvio.

Risco permanente
Gosto sempre de evocar a velha lição em forma de advertência, de que o estado democrático convive com o risco permanente do estado de exceção. É como a relação entre um corpo e sua própria sombra.

Outro ponto interessante para a reflexão é o de que mesmo Constituições também podem se tornar itens meramente figurativos.

Jair Bolsonaro no ato do último domingo na avenida Paulista

Basta lembrar que Hitler nunca precisou revogar expressamente a tão celebrada Constituição Alemã de 1919. Bastou a edição prévia de um repertório de leis de exceção, dentre as quais as conhecidas “leis de Nuremberg”, et voilà. Eis o golpe.

E tudo, vejam só, “dentro das quatro linhas da Constituição” (ou nem tanto). Seja como for, Hitler sobe ao poder e dissolve o Bundestag sem sequer precisar rasgar a Constituição de Weimar, que se tornou letra morta.

Não se trata, evidentemente, de forçar comparações indevidas e impróprias, mas apenas de uma ilustração, aqui evocada com simplismo e superficialidade, que ainda assim, serve de exemplo, um tanto extremo, do que estou dizendo.

Autocratas nem sempre rasgam as leis, ou as desprezam por completo. Muito pelo contrário. A história, aliás, nos revela que muitos deles demonstraram um verdadeiro fetiche pela lei — no caso, suas próprias leis, editadas, reeditadas ou revogadas sem qualquer controle ou limite, ao sabor de seus ímpetos, vontades e de uma incontrolável fúria legiferante.

Alguns chegaram ao deleite de editarem suas próprias constituições. Sim, Constituições e leis também podem servir de adorno a autocratas.

Por isso é que devemos ficar particularmente atentos e preocupados em relação a uma fala do ex-presidente, especialmente porque endereçada a milhares de presentes e ecoada entre seus milhões de seguidores.

Destaco aqui especialmente a fala, em evidente tom de autodefesa, de que golpe seria colocar tanque na rua, arma, conspiração. Desse modo, para o ex-presidente, o que haveria de propósito golpista em uma minuta de decreto de estado de defesa, um “golpe usando a Constituição”?

Para além do conteúdo de absurdo e do evidente desconhecimento histórico, penso que tal afirmação possui um caráter antipedagógico, deseducativo, enfim, uma fala que, intencionalmente ou não, desinforma, na medida que naturaliza excessos, vendendo como aceitável, aos olhos da população, investidas antidemocráticas.

Enquanto diversos colegas, advogados e juristas, muito bem comentam e discutem eventuais impactos e implicações desta fala nas investigações em andamento contra o ex-presidente, que aqui parece se enrolar ainda mais, gostaria de me ater ao aspecto discursivo.

Isto porque a referida manifestação não visava apenas a uma demonstração de força ou ato de defesa, muito menos de um pedido de desculpas ou explicação pública. Sua fala dirige um recado a milhões de brasileiros.

Sua visão estreita e limitadamente literal de golpe pregada às multidões ao arrepio dos fatos  — uma verdadeira “anti-lição” de política — ofusca algo que nossa história muito bem mostra. Naturaliza a prática de golpes e arroubos autoritários em um país onde, aliás, sempre foram comuns.

Nosso histórico
Sem precisar voltar tão longe no tempo, basta lembrar nosso extenso currículo de golpes. Deodoro da Fonseca não precisou sacar baionetas nem disparar canhões, acertou na madrugada a fuga da família imperial e de seu amigo Pedro 2º, e pela manhã, já republicaníssimo, formalizou o golpe numa parada militar.

Enquanto isso, o povo que “assistiu àquilo bestializado” — para lembrar o comentário do jornalista e político Aristides Lobo publicado no Diário Popular daquele 15 de novembro de 1889 —, totalmente alheio ao golpe em curso, pensava se tratar de um mero desfile.

Passeando brevemente pela nossa história, temos ainda Getúlio Vargas com suas duas Constituições, uma rasgada e a outra, a de 1937, que sequer chegou a viger completamente em razão de um dispositivo que conferia ao presidente poderes para governar por decreto enquanto a Constituição não fosse submetida a um plebiscito popular, o qual, naturalmente, nunca foi sequer convocado.

Isso sem falar na ditadura militar com seus 17 Atos Institucionais e outros penduricalhos jurídicos, alguns dos quais ainda sobrevivem ocultos sob a pele fina de nossa jovem democracia.

Ou seja, simplificando bastante a questão, é possível sim, a existência de golpes “pela constituição”.

Aliás, golpes muitas vezes se valem dos próprios poderes constitucionalmente estabelecidos e definidos, mas que, em contextos de turbulência e instabilidade, tornam-se desmedidos, sem controle ou se viram em armas contra o próprio sistema.

Déspotas estão e sempre estarão à espreita, inclusive com seus juristas de estimação, à procura de brechas e frestas por onde deixar vazar seus ímpetos e instintos desmedidos de poder.

Tudo isso, aliás, deve nos forçar e nos fazer olhar para dentro de nossa própria ordem jurídica, à procura de eventuais pontas soltas, algumas deliberadamente dispostas no caminho, como cascas de banana à espera de um escorregão.

Claro que Constituições devem trazem, obrigatoriamente, mecanismos internos de controle e excepcionalidade, como é o caso do Estado de Defesa invocado e sondado pelo ex-presidente como possível instrumento de quebra institucional, um “golpe usando a Constituição”.

Contudo, para muito além das minutas de golpe e da discussão sobre o estado de defesa, outro artigo da Constituição, muito mais controverso e muito menos “constitucional” (ao meu ver), deveria estar sob análise e, especialmente, nos chamar a atenção para uma urgente discussão acerca da sua revisão ou revogação.

Refiro-me aqui à controversa GLO, Garantia da Lei e da Ordem, prevista no artigo 142 da Constituição Federal.

Sem intento de esgotar tal discussão acerca deste que penso ser um dos pontos talvez mais delicados da Constituição de 1988, acredito que o momento justifica e exige, ao menos, um debate sério sobre a manutenção deste dispositivo.

Isto porque, como se sabe, a GLO foi apenas um dos muitos agrados e acenos feitos pelos Constituintes às Forças Armadas no complicado processo de redemocratização, isso sem falar na Lei de Anistia, termo por sinal, já quase esquecido e também, ironicamente, invocado pelo ex- presidente em seu discurso, um assunto que certamente merece toda uma discussão à parte.

Confesso, porém, que às vezes sinto um estranho temor de que a história do Brasil esteja condenada a viver e reviver episódios do passado. E é aí que mora o perigo.

A GLO, até então utilizada para decretos pontuais, especialmente em intervenções federais em matéria de segurança, mostra agora sua outra face, um propósito aliás, que certamente não passou despercebido ao constituinte, tampouco a quem a encomendou, forças historicamente autoritárias que nunca foram devidamente colocadas em seu lugar, nem mesmo pela Constituição Cidadã.

Por esta razão, aliás, é o que o Brasil parece ser o único país do mundo a padecer de uma verdadeira disfunção cognitivo-constitucional que permite a milhares de juristas amadores (alguns até ditos “profissionais”) acreditarem, ou até defenderem, uma absurda ideia de “intervenção militar constitucional” amparada no controverso artigo 142 da Constituição.

Todo esse debate torna-se ainda mais importante quando se leva em conta que, de acordo com o que se revelou até agora, esse parece ter sido o plano estabelecido no roteiro do golpe: a decretação da garantia da lei e da ordem depois dos ataques de 8 de janeiro de 2023.

De se cogitar, inclusive (embora esse não seja um exercício propriamente jurídico) que esse seria, dentre os vários aparentes roteiros de golpe até aqui descobertos, a aposta mais alta dos golpistas.

A proposta, colocada à mesa no fatídico dia — uma solução aparente inocente e fácil prevista na Constituição — por sorte, foi rejeitada.

Dúvida não há de que o desfecho certamente seria outro, caso fosse aceita. Contudo, a armadilha segue pronta na Constituição, bastando a quem queria e possa, acioná-la no momento oportuno.

Não à toa o recurso discursivo, na fala do ex-presidente, à caricatura de golpe, evocando na multidão o imaginário de tanques, fuzis e homens na rua. Todo resto, deve ser apenas brincadeira inocente — e constitucional.

A ideia parece ser investir na imagem exagerada para mascarar o golpe caricato intentado, não menos real nem menos perigoso do que outros tantos de nossa história, bem-sucedidos ou fracassados.

Com isso, especialmente, aplacam a multidão e jogam areia sobre as muitas armadilhas e forças autoritárias que, infelizmente, e se nada fizermos, continuarão à espreita aguardando apenas uma ocasião.

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