Paradoxo da Corte

Ilegitimidade do advogado para requerer liquidação de verba honorária

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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31 de maio de 2024, 8h00

Dedico a coluna de hoje ao colega gaúcho Pablo Camusso, que gentilmente me enviou instigante precedente do Superior Tribunal de Justiça, de particular interesse dos advogados, sobre o qual permito-me tecer as seguintes considerações.

Spacca

Reconhecida a prescrição de ação de anulação de doação inoficiosa em sede de agravo de instrumento pela 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, foi imposta condenação ao autor da demanda ao pagamento de honorários de sucumbência estipulados em 10% sobre o valor atribuído à causa em prol do patrono da requerida.

Diante da irrisoriedade do valor da causa (R$ 10.000), a requerida vencedora interpôs recurso especial alegando violação ao artigo 85, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil, visto que os honorários deveriam ter sido fixados num percentual sobre o proveito econômico obtido por ela demandada, correspondente à metade do valor do imóvel objeto da alegada doação inoficiosa, e não com base no valor atualizado da causa. E, assim, tal montante serviria de parâmetro para a incidência do referido percentual a título de honorários advocatícios.

A 3ª Turma do STJ, ao julgar o Recurso Especial nº 1.933.685/SP, com voto condutor da ministra Nancy Andrighi, negou-lhe provimento, com fundamento em várias premissas que merecem ser sintetizadas nos limites do presente artigo.

Em primeiro lugar, o acórdão assevera que, ao contrário do que sustenta a recorrente, não se faz possível estimar o proveito econômico por ela obtido, em decorrência da prematura extinção do processo (reconhecimento da prescrição).

E isso, “porque não há elementos concretos que indiquem qual o verdadeiro valor do imóvel cuja doação se pretendia anular, sendo inverídica a afirmação de que o recorrido  ‘confessou’ se tratar de bem de R$ 2.050.000”.

Ademais, “se o acórdão recorrido, a partir de determinadas premissas fáticas, afasta o valor indicado pela parte como correspondente ao valor do imóvel em disputa e, consequentemente, torna incerto o valor do proveito econômico por ela obtido para fins de base de cálculo dos honorários, descabe a esta Corte reexaminar a questão, infirmando as referidas premissas, em virtude do óbice da Súmula 7/STJ”.

Saliente-se, por outro lado, que a recorrente, em caráter subsidiário, apegou-se ao seguinte argumento: mesmo que não possa ser utilizada a suposta confissão como critério para definição do valor do imóvel doado, o proveito econômico por ela então obtido poderia ser apurado em liquidação de sentença, ocasião em que, mediante a produção de provas, seria possível definir o valor do imóvel e, assim, a base de cálculo sobre a qual deverá incidir o percentual dos honorários advocatícios atribuídos a seu patrono.

Ocorre que, independentemente desta pretensão manifestada pela recorrente, defende o acórdão que as obrigações impostas pela sentença passíveis de liquidação são aquelas que concernem ao direito disputado pelas partes, isto é, as obrigações ou condenações principais, que emergem no plano do direito material e que são objeto do pedido e da causa de pedir na ação proposta pelo autor em face do réu.

Não obstante, ao enfrentar esse fundamento deduzido nas razões recursais, o referido julgado assinala que não são passíveis de inclusão na respectiva liquidação as obrigações ou condenações acessórias, como se descortina a hipótese da condenação do vencido ao pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais ao advogado do vencedor.

É bem verdade que não há expressa previsão legal para a liquidação de condenações acessórias.

A rigor — prossegue o acórdão —, na situação vertente, a condenação à verba honorária constitui uma espécie de obrigação acessória, incidentalmente estipulada em favor de quem não é parte e de quem não teve o reconhecimento de nenhum direito material a ser satisfeito com gênese no respectivo processo, e, portanto, “deve ser necessariamente líquida ou, ao menos, liquidável a partir de uma obrigação principal ilíquida de titularidade da parte, ‘mas jamais pode ser objeto, sozinha, de liquidação de sentença’…”.

Como bem asseverou, a propósito, o ministro Moura Ribeiro, no voto-vista convergente que apresentou nos autos:

“(…) Em hipóteses como a dos autos, em que não há condenação, os honorários somente podem ser arbitrados em percentual sobre valor do proveito econômico, quando o julgador, no momento da prolação da sentença, possa mensurá-lo. Se isso não for possível, eles devem ser estipulados sobre o valor da causa…

Assim, se o valor do proveito econômico não pode ser mensurado no momento do julgamento, ele não pode ser utilizado como base de cálculo dos honorários advocatícios sucumbenciais.

A meu sentir, a própria redação do art. 85 do NCPC, é suficiente para impedir que a verba honorária seja fixada em percentual sobre o proveito econômico nas situações em que este não seja mensurável de plano, ficando inviabilizada, por conseguinte, a possibilidade de remeter essa questão para fase de liquidação de sentença.”

É dizer: o nosso sistema processual não admite liquidação de sentença exclusiva de obrigação de natureza acessória visando à apuração do quantum debeatur a título de verba honorária sucumbencial.

Parâmetro

É exatamente por esta razão — segundo a ministra Nancy Andrighi 3, que o artigo 85, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil, preceitua que os honorários serão fixados tendo como parâmetro o valor da condenação (líquida ou liquidável), do proveito econômico obtido (sempre líquido) ou, não sendo possível mensurá-lo (porque inexistente ou ilíquido), do valor atualizado da causa (também sempre líquido).

Sob diferente enfoque, conclui ainda o referido precedente que a lei e a melhor doutrina outorgam ao autor e ao réu, que são os sujeitos da relação jurídica obrigacional no plano do direito material, legitimação ativa para aforar o incidente de liquidação da sentença, na certeza da existência de uma obrigação principal carecendo de liquidação.

Passa, assim, o mencionado acórdão ao exame da legitimidade para requerer a respectiva liquidação.

Em regra, o interesse para liquidar é do autor, para que possa ter início o cumprimento de sentença e a satisfação de seu crédito.

Sob a égide do Código de Processo Civil revogado, após as últimas reformas introduzidas naquele diploma processual, não havia menção ao réu. O vigente estatuto processual, por outro lado, altera esta diretriz, uma vez que o caput do artigo 509 é expresso ao determinar que a liquidação poderá ocorrer “a requerimento do credor ou do devedor”.

Tanto quanto o vencedor, o vencido tem igualmente interesse para definir desde logo o valor devido, procurando realizar o pagamento e se possível, com esta atitude, obter alguma condição que lhe seja mais favorável. E isso, “porque o devedor tem não apenas o dever de cumprir a condenação, mas também o direito de se liberar da obrigação. Não pode lhe ser retirada a faculdade de tomar a iniciativa de propor a liquidação, assumindo posição ativa no procedimento” (cf. Rodrigo Frantz Becker, Manual do processo de execução dos títulos judiciais e extrajudiciais, Salvador, JusPodivm, 2021, pág. 153).

Diante desse proscênio, o voto da lavra da ministra relatora, secundado, neste particular, por todos os integrantes da 3ª Turma do STJ, enfatiza, em conclusão, ser “inviável acolher a pretensão recursal de reconhecimento da existência de proveito econômico com a extinção do processo pela prescrição, com posterior remessa à fase de liquidação apenas para apuração do valor dos honorários advocatícios sucumbenciais, sem que haja nenhuma outra parcela ilíquida de titularidade da parte que também necessite ser liquidada”.

Em suma, dado o seu inegável ineditismo, o acórdão em apreço, a meu ver, merece destaque porque realmente convida à reflexão, sobretudo se for cotejado com a regra do artigo 23 do Estatuto da Advocacia, que reconhece ao advogado, beneficiário da verba honorária de sucumbência, a titularidade de um “direito autônomo para executar a sentença”.

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, conselheiro do MDA e vice-presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp.

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