Opinião

ICMS: protagonismo fiscal nos estados e a situação pós-reforma

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  • Gilmara Nagurnhak

    é advogada especializada em Direito Civil e Processo Civil com pós-graduação pela PUC-RS em Direito Tributário e fundadora do escritório Gilmara Nagurnhak Advocacia & Assessoria Empresarial.

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30 de maio de 2024, 11h18

O ICMS é um dos pilares do sistema tributário brasileiro. De competência dos estados e do Distrito Federal, conforme o artigo 155, II, da Constituição, esse imposto incide sobre a circulação de mercadorias e a prestação de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação.

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Juridicamente, o ICMS é um tributo indireto, o que significa que o encargo financeiro é transferido ao consumidor final, embora o responsável pelo recolhimento seja o vendedor ou prestador de serviços. Essa característica o define como um “imposto sobre o consumo”, essencial para a dinâmica econômica e fiscalizatória.

A Lei Kandir (Lei Complementar nº 87/1996) estabelece normas gerais sobre o ICMS, como definição de contribuintes, base de cálculo e substituição tributária. Cada estado regula as especificidades através de seus próprios regulamentos, conferindo uma pluralidade de regimes tributários no país, aumentando a complexidade da gestão.

A adaptabilidade do ICMS às diversas realidades econômicas estaduais é marcante, permitindo que os estados legislem sobre diferencial de alíquota (Difal) e substituição tributária para promover o equilíbrio concorrencial e eficiência na arrecadação.

O princípio da não-cumulatividade, previsto no artigo 155, § 2º, I, da Constituição, assegura que o imposto seja calculado sobre o valor da operação em um estágio específico, permitindo o crédito do montante pago nas operações anteriores. Isso evita a incidência múltipla do tributo e o efeito em cascata, onerando menos o consumo de bens e serviços.

Na prática, o valor do ICMS destacado na nota fiscal de venda é um débito para o vendedor. Quando este adquire produtos ou serviços, o ICMS pago é registrado como crédito fiscal. No fechamento do período fiscal, confrontam-se os créditos acumulados com os débitos devidos, pagando-se a diferença ao fisco.

Essa dinâmica de débito e crédito evita a tributação em cascata e fomenta a justiça fiscal, distribuindo de forma mais equânime o ônus tributário ao longo da cadeia produtiva. Também incentiva a formalidade nas operações comerciais, já que apenas os créditos comprovadamente documentados podem abater os débitos, reforçando a estrutura de compliance das empresas.

O princípio da não-cumulatividade do ICMS assegura que ele mantenha sua característica de imposto sobre o valor agregado, evitando distorções econômicas. Assim, o imposto se ajusta aos diferentes níveis de produção e comercialização, adaptando-se às diversas realidades econômicas da federação brasileira.

Operacionalização do ICMS

Os débitos no ICMS são gerados a partir das saídas de mercadorias, ou seja, toda vez que uma empresa realiza uma venda ou presta um serviço que está sujeito à incidência deste imposto, o valor correspondente é registrado como um débito. Este valor é calculado aplicando a alíquota do ICMS sobre a base de cálculo da operação, que geralmente é o valor da operação ajustado por inclusões e exclusões específicas previstas na legislação tributária aplicável.

Por outro lado, os créditos no ICMS surgem das entradas de mercadorias no estabelecimento, tais como compras ou aquisições de serviços que também estejam sujeitas ao ICMS. Os valores pagos nestas operações podem ser utilizados para abater os débitos acumulados, conforme o princípio da não-cumulatividade. O montante de crédito que uma empresa pode aproveitar depende de diversos fatores, incluindo as alíquotas aplicáveis e as condições específicas de cada operação.

O saldo de ICMS a recolher é determinado pelo confronto entre os créditos e os débitos registrados. Se o total de débitos exceder o total de créditos, a empresa deve recolher a diferença ao estado. Caso os créditos superem os débitos, o saldo pode ser transportado para o período seguinte como um crédito acumulado, ou, dependendo da legislação estadual, pode ser solicitada a restituição ou a transferência desses créditos.

É crucial para as empresas manter um sistema rigoroso de controle e documentação de todas as operações que influenciam a apuração do ICMS. A escrituração fiscal deve ser meticulosamente realizada, garantindo que todas as notas fiscais emitidas e recebidas sejam registradas e que os cálculos do ICMS sejam feitos com precisão. Esta prática não só assegura a conformidade com as obrigações fiscais, mas também serve como um mecanismo de defesa em eventuais fiscalizações pelos órgãos competentes.

A implementação do Regime Periódico de Apuração (RPA) permite que as empresas organizem seus créditos e débitos de ICMS de maneira sistemática e cronológica, facilitando o controle fiscal e a transparência das operações. A estrutura do RPA está intrinsicamente ligada ao princípio da não-cumulatividade, pois permite a compensação de créditos do ICMS sobre as entradas de mercadorias e serviços contra os débitos gerados nas saídas, proporcionando uma visão clara do imposto devido ou do crédito acumulado ao final do período de apuração.

A peculiaridade do RPA reside na sua capacidade de adaptar-se às diferentes realidades empresariais e às especificidades regionais impostas pelos regulamentos estaduais. Cada estado pode definir particularidades no método de apuração e nos prazos de recolhimento do ICMS, o que exige das empresas uma atenção constante às atualizações legislativas e uma forte capacidade de adaptação dos seus sistemas contábeis e fiscais.

Além disso, o RPA é fundamental na gestão de riscos fiscais, pois a correta aplicação desse regime protege a empresa contra possíveis contingências tributárias. A precisão nos registros e a fidelidade na aplicação das regras de débito e crédito são essenciais para evitar descompassos que podem levar a autuações fiscais. Este regime, portanto, não apenas simplifica a apuração do ICMS, mas também serve como um mecanismo de governança tributária, assegurando que as práticas fiscais da empresa estejam alinhadas com as exigências legais.

Empresas que operam em múltiplos estados devem dar especial atenção ao RPA, pois podem enfrentar complexidades adicionais ao lidar com as variações nas legislações estaduais. A uniformidade na aplicação do regime em todas as filiais e a integração das informações fiscais são desafios que requerem soluções robustas de gestão tributária e tecnológica. A utilização de sistemas de Escrituração Fiscal Digital (EFD) integrados com a contabilidade se torna uma ferramenta indispensável para o correto cumprimento das obrigações fiscais sob o RPA.

Outrossim, o regime de substituição tributária (ST) e o Difal são mecanismos fundamentais na estrutura do ICMS, destinados a simplificar a cobrança do imposto e garantir a equidade na distribuição da carga tributária entre os estados. No entanto, esses mecanismos introduzem uma camada de complexidade que exige um entendimento aprofundado e uma gestão meticulosa por parte das empresas sujeitas a essas regras.

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A substituição tributária é uma técnica de arrecadação de ICMS onde a responsabilidade pelo recolhimento do imposto é atribuída a um contribuinte diferente do que realiza a operação final com o consumidor. Este regime é aplicado principalmente em cadeias de produção e distribuição onde há previsibilidade de circulação subsequente das mercadorias, tais como produtos industrializados e commodities.

O Difal é aplicado nas operações interestaduais destinadas a consumidores finais, contribuintes ou não do ICMS, onde a alíquota interna do estado destinatário é superior à alíquota interestadual. Busca equalizar a carga tributária entre os estados, assegurando que o estado de destino da mercadoria receba a diferença de alíquota que, de outra forma, seria concentrada no estado de origem.

A aplicação do Difal requer que os contribuintes identifiquem corretamente as alíquotas aplicáveis e realizem os cálculos adequados para cada operação, o que implica em desafios logísticos e administrativos, especialmente para empresas com alto volume de operações interestaduais. A complexidade é agravada pelas constantes alterações legislativas e pelas diferenças nas regulamentações estaduais, exigindo que as empresas mantenham sistemas de informação atualizados e precisos para evitar erros de apuração que podem levar a autuações fiscais.

Aspectos econômicos e distributivos do ICMS

O ICMS, principal tributo estadual, é essencial para a economia dos estados e municípios brasileiros, influenciando diretamente o desenvolvimento regional. Além de ser uma fonte significativa de receita para os governos estaduais, também redistribui parte da arrecadação com os municípios.

Estados utilizam a receita do ICMS para financiar serviços públicos essenciais como saúde, educação e infraestrutura. A capacidade de atrair investimentos está ligada à oferta de infraestrutura robusta, financiada em grande parte pelo ICMS. Assim, regiões que geram mais receita de ICMS têm mais recursos para investir em melhorias, atraindo novos negócios e promovendo crescimento econômico.

Os estados podem usar políticas de ICMS, como incentivos fiscais, para atrair empresas a áreas menos desenvolvidas, apesar da guerra fiscal entre estados. A Constituição determina que uma parcela do ICMS arrecadado seja compartilhada com os municípios, essencial para suas finanças e capacidade de fornecer serviços básicos. O critério de distribuição do ICMS incentiva o desenvolvimento econômico local e a eficiência na coleta de impostos.

Entretanto, municípios com menor capacidade de gerar receita enfrentam dificuldades para financiar serviços públicos, perpetuando desigualdades regionais, a menos que políticas compensatórias sejam eficazes. Do ponto de vista empresarial, o ICMS afeta diretamente as estratégias empresariais, influenciando a competitividade das empresas. A alíquota do ICMS é um fator decisivo na formação dos preços de produtos e serviços, podendo levar a uma redistribuição geográfica das atividades econômicas, com empresas buscando regiões de tributação mais favorável, fenômeno conhecido como “guerra fiscal”.

O sistema de substituição tributária do ICMS, que exige recolhimento antecipado do imposto, afeta o fluxo de caixa das empresas, representando uma barreira para pequenas e médias empresas. O peso do ICMS na carga tributária de uma empresa é crucial, influenciando políticas de preços e margens de lucro. A complexidade do cálculo do imposto exige investimento em gestão tributária e capacitação de pessoal, aumentando os custos operacionais.

Para mitigar os impactos do ICMS, empresas desenvolvem estratégias como a reestruturação logística e operacional, realocação de centros de distribuição, revisão de cadeias de suprimentos e busca por regimes especiais de tributação.

O futuro do ICMS no contexto da reforma tributária

A reforma tributária em discussão no Brasil promete ser um divisor de águas na maneira como os tributos, especialmente o ICMS, são administrados e recolhidos. As propostas em análise visam simplificar o sistema tributário, reduzir a carga burocrática e promover uma maior justiça fiscal, elementos essenciais para a melhoria do ambiente de negócios e do desenvolvimento econômico nacional.

Uma das principais metas da reforma é a simplificação do sistema de cobrança do ICMS, que atualmente varia significativamente entre os estados. A proposta de unificação das alíquotas e a padronização das regras, reduzindo as complexidades das operações interestaduais, são vistas como medidas que poderiam diminuir os custos de conformidade para as empresas e aumentar a eficiência na arrecadação.

A reforma também busca aumentar a transparência na aplicação do ICMS, com regras mais claras que diminuam o espaço para interpretações divergentes e litígios fiscais. Além disso, ao promover uma distribuição mais equitativa da receita do ICMS, a reforma poderia corrigir desequilíbrios regionais que atualmente beneficiam estados mais industrializados em detrimento daqueles mais focados na agricultura ou serviços.

O Imposto Seletivo, previsto para substituir ou complementar o IPI e outros impostos em operações específicas, traz novas perspectivas para a tributação sobre o consumo. Este imposto seria direcionado principalmente para produtos cujo consumo se deseja desencorajar, como bebidas alcoólicas e cigarros. A relação desse novo imposto com o ICMS é de particular interesse, pois poderia alterar a carga tributária sobre esses produtos e afetar a arrecadação dos estados que hoje dependem significativamente do ICMS desses segmentos.

A implementação do Imposto Seletivo poderia redirecionar parte da receita atualmente destinada aos estados para o governo federal, exigindo ajustes nas finanças estaduais e municipais. A compensação por essas possíveis perdas é um tema crítico nas negociações da reforma tributária, com estados buscando garantias de que suas receitas não serão diminuídas.

Para os contribuintes, especialmente as empresas, a reforma tributária representa tanto oportunidades quanto desafios. A simplificação do ICMS poderia reduzir custos operacionais, mas também exigiria adaptações nos sistemas de gestão tributária e financeira.

Análise Final

O imposto em questão desempenha um papel fundamental na engrenagem fiscal do país. Este imposto, contudo, é frequentemente criticado por sua complexidade e os desafios que impõe tanto aos contribuintes quanto aos administradores tributários. Reflexões sobre a eficiência e a equidade do ICMS são cruciais para entender sua funcionalidade e os impactos no desenvolvimento socioeconômico do Brasil.

A eficiência de um sistema tributário é medida pela sua capacidade de arrecadar receitas de forma econômica, sem gerar distorções significativas na economia. No caso do ICMS, a eficiência é frequentemente comprometida pela complexidade das legislações estaduais divergentes e pelo elevado custo de conformidade para os contribuintes. Essas características podem incentivar a sonegação fiscal e desencorajar investimentos, especialmente em regiões onde as alíquotas são mais altas ou as regras mais complicadas.

A equidade, dividida em equidade horizontal (tratamento igual entre contribuintes em situações semelhantes) e equidade vertical (tratamento diferenciado conforme a capacidade econômica dos contribuintes), é outra área de grande debate no contexto do ICMS. Dadas as variações nas alíquotas e nas bases de cálculo do ICMS entre os estados, surgem questões significativas sobre a justiça do sistema como um todo.

Além disso, o princípio da não-cumulatividade, embora destinado a evitar a tributação em cascata, nem sempre é aplicado de forma que alivie os contribuintes de menor renda de maneira proporcional. Isso levanta preocupações sobre a regressividade do ICMS, onde os consumidores mais pobres podem acabar pagando uma proporção maior de seus rendimentos em ICMS do que os mais ricos.

Finalmente, o ICMS está no cerne do dilema entre necessidade fiscal e justiça social. Enquanto os estados dependem fortemente deste imposto para financiar serviços públicos essenciais como educação, saúde e segurança, a forma como o ICMS é estruturado e implementado pode ter implicações profundas para a distribuição de carga tributária e, por extensão, para a justiça social.

Portanto, qualquer reforma do ICMS deve equilibrar a necessidade de os estados arrecadarem receitas suficientes com a necessidade de criar um sistema tributário mais justo e equitativo. A reforma tributária, discutida em capítulos anteriores, poderia ser uma oportunidade para abordar essas questões, propondo um modelo de ICMS que não apenas atenda às necessidades fiscais dos estados, mas que também promova a justiça e a igualdade socioeconômica.

Em conclusão, o ICMS, como um dos mais importantes impostos do sistema tributário brasileiro, merece uma análise detalhada e cuidadosa para garantir que continue a servir como uma ferramenta vital para o financiamento do desenvolvimento estadual e municipal, ao mesmo tempo que se adapta às necessidades de uma economia moderna e justa.

Autores

  • e advogada especializada em Direito Civil e Processo Civil, com pós-graduação em Direito Tributário pela PUC-RS, fundadora do escritório Gilmara Nagurnhak Advocacia & Assessoria Empresarial.

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