Garantias do Consumo

Impactos das enchentes no RS e as relações de consumo (parte 2)

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29 de maio de 2024, 8h00

Continuação da parte 1. Estamos há mais de 15 dias da maior tragédia registrada no Rio Grande do Sul desde 1941, data da última enchente. Hoje, ainda não temos uma previsão exata de quando a água baixará completamente. Os dados atualizados pelo serviço de defesa civil do estado contabilizam 467 municípios afetados, 68.345 pessoas em abrigos, 581.633 alojados, 806 pessoas feridas, 82 desaparecidas e 161 óbitos confirmados. Os números demonstram o tamanho de todo o impacto das enchentes em um estado que, para se reerguer economicamente, dependerá de muita ajuda do governo federal e da sociedade civil.

enchente Rio Grande do Sul

No que concerne às relações de consumo, como podemos perceber em artigo anteriormente publicado, são diversos setores da economia que foram atingidos, o que fez com que a Secretaria Nacional do Consumidor, o Procon-RS e alguns Procons municipais se preocupassem em propor ações governamentais a fim de equilibrar essas relações de consumo, visando minimizar os prejuízos de consumidores e fornecedores.

Na segunda parte do nosso artigo, iremos analisar mais alguns setores impactados pelas enchentes.

Aviação civil

O aeroporto de Porto Alegre, na capital gaúcha, está fechado e sem previsão de retorno das atividades, pois também foi atingido pela enchente. Diversos voos foram cancelados ou tiveram que ser remarcados para outros aeroportos mais próximos. Assim, muitos consumidores estão sem condições de viajar, pois, além do aeroporto fechado, muitas estradas estão bloqueadas.

Diante do cenário atual e como medida emergencial, a Senacon reuniu-se por meio da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) para dialogar com o setor e estabelecer regras a fim de que os consumidores pudessem ser atendidos.

Dessa maneira, a Senacon solicitou a flexibilização de normas para mitigar impactos da crise aérea no RS e garantir proteção e direitos dos consumidores. “Neste momento, por exemplo, é inviável a utilização do Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre (RS), e a malha aérea foi comprometida em todo o estado, destaca o diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC)”. [1]

Amaral refere que “É uma medida necessária adaptar as normas para atender às necessidades excepcionais dos consumidores. Estaremos não apenas garantindo os seus direitos, mas, também, fortalecendo a confiança no setor aéreo”.

As medidas sugeridas pela Secretaria Nacional do Consumidor foram de: (i) alteração do contrato de transporte aéreo com modificação do destino dentro do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, sem custo adicional para o passageiro, (ii) remarcação sem custo, dentro do prazo de 1 ano a partir do voo original, mantendo o local de origem e destino, (iii) reembolso total ou crédito com a empresa aérea, sem a cobrança da taxa de cancelamento, para os passageiros que não aceitarem a modificação do destino; (iv) flexibilização de assistência material, incluindo hospedagem e transporte rodoviário, (v) eficiência no atendimento ao passageiro, especialmente por telefone, considerando as dificuldades de comunicação virtual devido à falta de energia em algumas áreas do Rio Grande do Sul, (vi) opção de reembolso do valor da passagem em dinheiro, não apenas em crédito, conforme estabelece o artigo 256, § 4º, do Código Brasileiro de Aeronáutica, (vii) fornecimento ou custeio do transporte rodoviário até o aeroporto indicado pela companhia aérea para decolar até o destino contratado, (viii) possibilidade de endosso para outras companhias aéreas em locais aptos para pouso e decolagem.

O documento com as sugestões de medidas foi enviado à Anac [2] para orientar as companhias aéreas. Ou seja, são medidas que contemplam necessidades momentâneas e excepcionais, mas não são obrigatórias [3]. Diferentemente do cenário da pandemia, não há nenhuma medida provisória em vigor até o momento. [4]

Diante da referida solicitação por parte da Senacon, a Anac, na condição de agência reguladora do transporte aéreo, flexibilizou regras previstas na Resolução nº 400 durante o período de paralisação das atividades no aeroporto Salgado Filho.

As flexibilizações abrangem os seguintes pontos: (i) autorizada a alteração do contrato de transporte aéreo, com modificação do destino final, dentre cidades dos Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, sem nenhum custo adicional ao passageiro; (ii) companhias aéreas deverão envidar esforços para, dentro do possível, transportar os passageiros para o aeroporto mais próximo do local de seu interesse, mediante definição do próprio passageiro; (iii) autorizada a remarcação do bilhete aéreo sem custo ao passageiro, até o prazo de 1 ano a contar do voo original, com o mesmo local de origem e destino; (iv) autorizado o reembolso total ou em crédito, sem a cobrança de taxa de cancelamento, sendo possível o reembolso tanto em crédito quanto em dinheiro, conforme escolha do passageiro; (v) flexibilização do dever de assistência material no tocante à hospedagem dos passageiros que tiveram seus voos cancelados e que aceitaram o transporte para local diverso do inicialmente contratado.

A fim de resguardar os interesses dos usuários do transporte aéreo, a Anac determinou a suspensão imediata da comercialização de passagens aéreas para voos com origem e destino no aeroporto de Porto Alegre. A proibição da comercialização de passagens, que vigorará até nova avaliação pela Agência, abrange todos os canais de comercialização, inclusive sistemas que disponibilizem vendas por terceiros, como agências de viagem e outros intermediários que possam comercializar os bilhetes.

Prestação de serviços continuados

Conforme a região em que consumidores e fornecedores se encontram, certamente muitos serviços continuados deixam de ser usufruídos ou prestados, conforme o caso. Daí surgem discussões sobre o cancelamento ou abatimento proporcional da mensalidade devida.

À época da pandemia muito se discutiu sobre o cabimento de descontos relacionais aos serviços educacionais, dado o modelo remoto de ensino instituído por bastante tempo. Na presente situação das enchentes, será preciso avaliar caso a caso a capacidade das partes para prestar ou usufruiu dos serviços contratados, bem como as previsões contratuais estabelecidas ente as partes, sem deixar de lado a possibilidade de aplicação da força maior, se for o caso, e sempre com atenção à boa-fé.

Em relação ao serviço público de fornecimento de água, extremamente atingido em diversos locais, cabe trazer o exemplo da Prefeitura de Porto Alegre, que anunciou acordo emergencial sobre a tarifa de água, prevendo algumas isenções para estabelecimentos em áreas alagadas, conforme a categoria.

Além disso, a prefeitura solicitou às instituições financeiras a suspensão dos pagamentos das dívidas, prorrogação do prazo total de amortização dos contratos firmados por dois anos, além da transferência desses pagamentos para os últimos anos de contrato. De acordo com a estimativa da Secretaria Municipal da Fazenda, a medida pode resultar em uma economia de aproximadamente R$ 550 milhões, garantindo recursos para a reconstrução da cidade [5].

Setor de serviços/atendimentos

Diante do estado de calamidade e da vasta área com acessos comprometidos, é natural prever o atraso na devolução de produtos submetidos a reparos em assistências técnicas. Igualmente será preciso que consumidores e fornecedores avaliem cada situação concreta de modo a encontrar a solução mais adequada. Apesar do prazo de 30 dias para reparo previsto no CDC [6], as partes podem convencionar a ampliação do prazo em 180 dias.

Ademais, consumidores também ficam sujeitos à invocação, por fornecedores, do evento de força maior como excludente de eventual responsabilização por atrasos deste tipo, como entendeu o TJ-SP em situação de atraso no reparo durante a epidemia do Covid-19, aplicando o princípio da conservação e continuidade dos negócios jurídicos e da boa-fé objetiva. Decidiu-se, no caso, que devem ser consideradas as excepcionais e singulares condições geradas pela pandemia de Covid-19, que gerou restrição ao funcionamento de estabelecimentos e à circulação de pessoas [7].

Também não se pode esquecer que o setor de atendimento ao consumidor de diversas empresas diretamente afetadas pelas enchentes atuais sofreu e ainda poderá sofrer falta ou escassez de pessoas, também atingidas, para seguir realizando a atividade de atendimento ao cliente. Embora grandes organizações com várias unidades e/ou estabelecimentos no país, ou com empresas terceiras contratadas, possam gerir tudo isso com viabilidade e eventual facilidade, é certo que diversos fornecedores tendem a levar mais tempo para se reorganizarem, o que pode gerar falhas ou demora no atendimento.

E-commerce

Uma das consequências imediatas de uma situação de calamidade pública é o atraso na entrega de produtos adquiridos, seja porque a logística está comprometida, seja porque o fornecedor pode ter suspendido suas atividades em decorrência do evento. Assim como em outras situações, cabe a demonstração de que o atraso é decorrente do evento de força maior.

Exemplificativamente, o TJ-SP concluiu que, não obstante a promessa de entrega de veículo adaptado a necessidades físicas, a negociação não se concretizou devido ao advento de causa externa de força maior, devido à pandemia COVID-19, tendo havido paralisação parcial das atividades empresariais da cadeia produtiva de automóveis, havendo ausência de infração contratual pela empresa [8].

Conclusão

O momento é de cautela e solidariedade. É importante analisar todos os casos e a particularidade de cada problema apresentado pelos consumidores em meio ao impacto dessa magnitude na economia. Há a necessidade de considerarmos que muitas empresas foram devastadas pelas enchentes, produtos e mercadorias foram perdidos, e funcionários estão em alojamentos e sem acesso às suas casas, ou até mesmo sem casa. Logo, como ensina Claudia Lima Marques: “aqui cooperar é manter os contratos de consumo, mesmo frente aos desastres e as dificuldades” [9], porém com as adaptações necessárias que o momento exige.

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[1] AMARAL, Vitor Hugo do. Em resposta à crise, a Secretaria entrou em contato com a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), enfatizando a necessidade urgente de equilibrar a relação entre fornecedores e consumidores do setor aéreo. Fonte: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/mjsp-solicita-a-anac-alteracao-nas-regras-de-reembolso-e-cancelamento-em-voos-para-o-rs. Acesso em 15 de maio de 2024.

[2] a ANAC criou um portal no site oficial destinado apenas ao Rio Grande do Sul: https://www.gov.br/anac/pt-br/assuntos/transporte-aereo-no-rio-grande-do-sul-orientacoes-da-anac

[3] Em relação a julgados sobre o tema, o TJSP formou entendimento pela ausência de ato ilícito por parte das companhias aéreas em relação ao cancelamento dos voos em decorrência da pandemia, caracterizada como força maior, realizando uma análise caso a caso para a definição de eventual cabimento de indenização por danos materiais ou morais.

[4] A Medida Provisória 925/2020 convertida na Lei 14.034 de 2020 estabeleceu medidas emergenciais para a aviação civil brasileira e deliberou sobre a possibilidade de remarcação de voos referente a passagens aéreas compradas entre 01 de março de 2020 até 31 de dezembro de 2020 e canceladas em razão do agravamento da pandemia, com observância também a regulamentação da Agência Nacional da Aviação Civil (ANAC).

[5] https://prefeitura.poa.br/gp/noticias/porto-alegre-solicita-suspensao-de-dividas-para-reconstrucao-pos-enchente. Acesso em 23 de maio de 2024.

[6]  Art. 18, § 2° Poderão as partes convencionar a redução ou ampliação do prazo previsto no parágrafo anterior, não podendo ser inferior a sete nem superior a cento e oitenta dias. Nos contratos de adesão, a cláusula de prazo deverá ser convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do consumidor.

[7] TJSP, Apelação Cível 1002678-80.2020.8.26.0127

[8] TJSP Apelação Cível 1002847-02.2021.8.26.0008

[9] MARQUES, CLAUDIA LIMA. Vulnerabilidade agravada do consumidor no desastre e dever de cooperar. https://www.conjur.com.br/2024-mai-23/vulnerabilidade-agravada-do-consumidor-nos-desastres-e-o-dever-de-cooperar-o-principio-da-manutencao-do-contrato/. Acesso em 23 de maio de 2024.

Autores

  • é pós-doutora em Direito pela UFRGS, professora universitária e sócia consultora da área de consumidor e product liability no Souto Correa Advogados.

  • especialista em Direito Empresarial pela PUC-RS e sócia da área de consumidor e product liability de Souto Correa Advogados.

  • é pós-graduada pela Fundação Getúlio Vargas (São Paulo) em Direito dos Contratos e sócia consultora da área de Resolução de Conflitos de Souto Correa Advogados.

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