Opinião

Execução de sentença arbitral condenatória contra Fazenda Pública

Autor

  • Suzana Soo Sun Lee

    é procuradora do estado de São Paulo e especialista em Direito do Estado pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (Espge).

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29 de maio de 2024, 15h24

A sentença arbitral condenatória constitui título executivo jurisdicional (artigo 31 da Lei nº 9.307/1996 combinado com artigo 515, VII, CPC) e, proferida contra o poder público, deverá se submeter ao rito previsto no artigo 534 e seguintes do CPC. Assim, intimada a Fazenda Pública e não impugnada a execução (ou rejeitadas as arguições da executada), cumprirá ao presidente do tribunal competente a expedição de precatório em favor do exequente, observando-se o disposto na Constituição (artigo 535, § 3º, I, CPC).

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É dizer: a decisão que impõe o pagamento de condenação pecuniária à Fazenda Pública necessariamente atrairá o regime do artigo 100 da Constituição , seja ela proveniente da jurisdição arbitral ou estatal.

Lições dos doutrinadores

O professor Carmona (2023, p. 24) é um dos expoentes que vem defendendo, há tempos, a natureza jurisdicional da arbitragem: “a arbitragem, embora tenha origem contratual, desenvolve-se com a garantia do devido processo e termina com ato que tende a assumir a mesma função da sentença judicial”.

Considerando que são características marcantes da atividade jurisdicional “a terzietá do juiz; o poder de aplicar a norma ao caso concreto, com força de coisa julgada; o desenvolvimento em contraditório e a necessidade de provocação (inércia jurisdicional)”, sustenta ALVIM (2016, p. 133/144) que “o instituto (da arbitragem) exerce idêntica função e produz os mesmos efeitos que a atividade jurisdicional do Estado”.

Se a jurisdição tem por finalidade maior “a pacificação de sujeitos conflitantes, dissipando os conflitos que os envolvem, e sendo essa a razão última pela qual o próprio Estado a exerce”, afirma DINAMARCO (2013, p. 39), “não há dificuldade alguma para afirmar que também os árbitros exercem jurisdição, uma vez que sua atividade consiste precisamente em pacificar com justiça, eliminando conflitos”.

Equiparação

Nesse passo, diz o artigo 31 da Lei Federal nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, que “A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo. De acordo com Carmona (2023, p. 23), o legislador optou, assim, por adotar a tese da jurisdicionalidade da arbitragem, dado que a sentença produzida pelo juízo arbitral, embora não oriunda do Poder Judiciário, “assume a categoria de judicial”.   

De fato, a todas as luzes, a ordem jurídica pretendeu equiparar as sentenças arbitrais e judiciais, fato este reforçado pelo artigo 515, inciso VII, do Código de Processo Civil, o qual dispõe que a sentença arbitral é título executivo judicial, cujo cumprimento deve ser realizado de acordo com as regras previstas no Título II do Livro I da Parte Especial do Código de Processo Civil, que trata do cumprimento de sentença.

Proferida a sentença arbitral, resta exaurida a jurisdição do árbitro. Ainda segundo Carmona, “não há atividade alguma a ser desenvolvida pelo árbitro depois de proferida sua sentença: não há recurso da sentença arbitral, não há medida satisfativa predisposta pelos árbitros, não há providências complementares de que se devam ocupar os julgadores” [1].

Execução

Encerrada a fase arbitral, decerto, todos os atos executivos voltados à satisfação do direito do credor deverão correr perante o Poder Judiciário, segundo as regras ordinárias inerentes ao cumprimento de sentença contidas no Código de Processo Civil. “Proferida a sentença, dá-se por finda a arbitragem (artigo 29) — o que significa dizer que a execução deverá ser feita em outro processo, agora perante o juiz estatal”, assevera Dinamarco (2013, p. 260).

Isso porque falecem ao juízo arbitral poderes para fazer cumprir coercitivamente suas decisões. Com efeito, “de posse da sentença arbitral condenatória de obrigação de pagar quantia certa, necessária a iniciativa do exequente para inaugurar uma nova relação processual (exequente, executado e juiz togado), diversa daquela havida na arbitragem (requerente, requerido e árbitro), bem como exige citação — não se trata de mera intimação — do executado para integrar o processo”, consoante a didática lição de Cahali (2015, p. 357).

Sob essa exata perspectiva, abordam o tema Fichtner, Mannheimer e Monteiro (2019, p. 633), como se colhe da seguinte passagem de sua obra:

“O procedimento diferenciado de execução de títulos judiciais e extrajudiciais previstos nos arts. 534-535 e art. 910, todos do Código de Processo Civil, bem como o regime de precatórios (art. 100 da Constituição da República) aplicam-se, por outro lado, regularmente, pois se trata de disposições externas ao processo arbitral, incidentes sobre o cumprimento de sentença arbitral e sobre a satisfação do crédito da parte vencedora, ambos momentos posteriores ao fim da arbitragem. Essas disposições não dizem respeito à arbitragem, mas sim à execução das decisões arbitrais perante o Poder Judiciário, isto é, dizem respeito ao processo judicial subsequente à arbitragem.”

Lá e cá

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A sentença arbitral condenatória proferida contra a Fazenda Pública, tal qual se sucede com as sentenças judiciais, deve seguir o rito previsto no artigo 534 e seguintes do Código de Processo Civil. Intimada a Fazenda Pública e não impugnada a execução (ou rejeitadas as arguições da executada), cumprirá ao presidente do tribunal competente a expedição de precatório em favor do exequente, observando-se o disposto na Constituição (artigo 535, § 3º, I, CPC).

Logo, aplica-se ao cumprimento da sentença arbitral o mesmo regime jurídico da sentença judicial. E não poderia ser de outra forma, “porque as situações são da mais profunda similitude. Cumprimento de sentença lá, cumprimento de sentença cá. Título judicial lá, título judicial cá – ambos produzidos mediante o exercício de jurisdição” [2].

Consoante referido, reza o artigo 31 da Lei de Arbitragem que a sentença arbitral “produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário[3]. Não pode, pois, “produzir efeitos além daqueles que uma sentença proferida por um magistrado possui, quando decide uma lide da qual é parte a Fazenda Pública”, como bem anotou Willeman (2009, p. 116/137). Ainda segundo o autor: “Quer-se dizer com isso que a sentença arbitral por ser ‘equiparada’ em seus efeitos à sentença judiciária, não pode pretender trazer para o Poder Público, como regra geral, um regime de execução diferente do que está a ele jungido por força da Constituição da República de 1988 no art. 100, e também pelo Código de Processo Civil no art. 730”.

Não é diversa a inteligência de Garcia (2022, p. 198), que igualmente ressaltou a necessidade de que “a parte dê início a processo judicial de execução da sentença arbitral, ao fim do qual o juiz competente tomará as providências necessárias para que o débito ingresse na ordem de pagamentos”, destacando, no ponto, que “a sentença arbitral não difere de uma sentença judicial transitada em julgado que condene ente público”. Em reforço, aduz:

“Caso a parte privada sagre-se vencedora na arbitragem e a sentença imponha o pagamento de obrigação pecuniária à Administração Pública direta e suas autarquias, deverá, necessariamente, ser observado o regime de precatórios. […]

O pagamento pela via do precatório encontra fundamento axiológico no princípio da isonomia. Objetivou-se criar procedimento que evite preferências ou privilégios no momento do pagamento das dívidas dos entes públicos, alcançando indistintamente, sentenças arbitrais ou judiciais.”

Sob outra perspectiva, a contundente afirmação de Ferreira [4]: “A previsão constitucional e infraconstitucional do regime de precatórios é explícita no sentido da imprescindibilidade do precatório, diante da impenhorabilidade dos bens públicos e visando atender à ordem cronológica dos pagamentos, sob pena de irremissível inconstitucionalidade. Eventual decisão do árbitro em sentido contrário criaria modalidade de sequestro de rendas públicas, fora da previsão constitucional. Isso porque a medida permitiria a constrição sobre valores do erário, afigurando-se como manifestamente inconstitucional”.

No mesmo passo, Cunha (2023, p. 632) é categórico ao afirmar que “a sentença arbitral que imponha uma condenação pecuniária ao poder público deve acarretar a expedição de precatório em razão do que dispõe o artigo 100 da Constituição, regra que não pode ser afastada ainda que se trate de arbitragem”. Opinião esta corroborada por Cahali (2015, p. 379): “admite-se a possibilidade de entes públicos se submeterem à arbitragem. E a origem do título, se judicial ou arbitral, neste caso, não altera o procedimento da efetividade da sentença condenatória da Fazenda Pública”.

Pouco importa, segundo Sica (2016, p. 273), que a Constituição tenha se referido à sentença judiciária no caput do artigo 100. “Prova disso é que se reconhece a possibilidade de expedição de precatórios com base em título executivo extrajudicial e com base em título executivo judicial formado a partir da conversão em mandado monitório (verbetes n. 279 e 339, da Súmula do STJ, respectivamente). Em nenhum desses casos há sentença judicial. Ademais, embora a sentença arbitral não seja judicial, prevalece o entendimento de que ela é ao menos jurisdicional.

Por tudo isso, não há dúvidas de que toda sentença arbitral que impõe uma condenação pecuniária às Fazendas Públicas, tal qual se sucede com as sentenças judiciais, deve submeter-se ao regime dos precatórios em virtude do comando cogente previsto no artigo 100 da Constituição [5], concretizando-se, assim, os princípios da impessoalidade, da isonomia e da legalidade orçamentária.

 


REFERÊNCIAS:

ALVIM, Arruda. Sobre a natureza jurisdicional da Arbitragem. In: CAHALI, Francisco José; RODOVALHO, Thiago; FREIRE, Alexandre. Arbitragem: estudos sobre a Lei nº 13.129 de 26-5-2015. São Paulo: Saraiva, 2016.

CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. 5ª edição. São Paulo: Editora RT, 2015.

CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2023.

CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 20ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2023.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A Arbitragem na Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.

FICHTNER, Jose Antonio; MANNHEIMER, Sergio Nelson; MONTEIRO, André Luis. Teoria Geral da Arbitragem. Forense: Rio de Janeiro, 2019

GARCIA, Flávio Amaral. Arbitragem e Infraestrutura Brasileira. In: CUÉLLAR, Leila; MOREIRA, Egon Bockmann; GARCIA, Flávio Amaral; CRUZ, Elisa Schmidlin. Direito administrativo e alternative dispute resolution: arbitragem, dispute board, mediação e negociação. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2022.

MAIA, Alberto Jonathas. Fazenda Pública e Arbitragem: do contrato ao processo. Salvador: Jus Podium, 2020.

SICA, Heitor Vitor Mendonça. Arbitragem e Fazenda Pública. In: CAHALI, Francisco José; RODOVALHO, Thiago; FREIRE, Alexandre. Arbitragem: estudos sobre a Lei nº 13.129 de 26-5-2015. São Paulo: Saraiva, 2016.

WILLEMAN, Flávio de Araújo. Acordos administrativos, decisões arbitrais e pagamentos de condenações pecuniárias por precatórios judiciais. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 64, 2009.

[1] Apud MAIA, Alberto Jonathas. Fazenda Pública e Arbitragem: do contrato ao processo. Salvador: Jus Podium, 2020, p. 348.

[2] Afirmação de DINAMARCO (2013, p. 273) a propósito do cabimento de exceção de pré-executividade em execução de sentença arbitral, que se aplica em sua inteireza na questão dos precatórios como meio de satisfação das condenações proferidas pelos juízos arbitrais contra a Fazenda Pública.

[3] Destaques nossos.

[4] FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Sentença arbitral não pode alterar regime de pagamento de precatórios. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2024-fev-28/sentenca-arbitral-nao-pode-alterar-regime-de-pagamento-de-precatorios/>. Acesso aos 13 mar.2024.

[5] Cita-se, além dos autores já mencionados neste ensaio, prestigiosa doutrina que abona entendimento no mesmo sentido: ABBOUD, Georges; MALUF, Fernando; VAUGHN, Gustavo Favero. Arbitragem e Constituição. (Portuguese Edition) (p. 321-322). Edição do Kindle; MEGNA, Bruno Lopes. Arbitragem e Administração Pública: fundamentos teóricos e soluções práticas. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 273-295; MAROLLA, Eugenia Cristina Cleto. A Arbitragem e os contratos da Administração Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 162-170; MAIA, Alberto Jonathas. Fazenda Pública e Arbitragem: do contrato ao processo. Salvador: Editora Juspodivm, 2020, p. 351-360; ALVES, Marcos Vinicius Armani. A Fazenda Pública na Arbitragem. São Paulo: Singular, 2019, p. 274-279; Oliveira Ferreira, I. ., & Sarmento Leite Melamed, T. . (2022). Arbitragem e precatórios: um panorama sobre a efetivação dos pleitos pecuniários em face da administração pública. Publicações Da Escola Superior Da AGU, 14(01). Recuperado de https://revistaagu.agu.gov.br/index.php/EAGU/article/view/3228.

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