Opinião

Entre Perse e persistência: nova lei e enfrentamento dos efeitos da Covid

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29 de maio de 2024, 7h02

Foi sancionada (sem vetos) a Lei nº 14.859, de 3 de maio de 2024, que alterou a Lei nº 14.148, de 3 de maio de 2021. Trata-se de um novo marco regulatório do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos. Na origem, o Perse é parte de uma série de medidas que o governo brasileiro adotou para combater os efeitos da epidemia de Covid-19.

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O Perse é arranjo institucional que foi acompanhado por outras medidas de impacto econômico, a exemplo de auxílios emergenciais, do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e Renda, do Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, a par de várias tarifas-zero, aplicadas a itens essenciais para o combate da pandemia, como medicamentos, vacinas, equipamentos hospitalares e demais insumos.

O Perse foi pensado como medida de enfrentamento à crise econômica que acompanhou a pandemia, e que dela foi consequência muitas vezes irreversível, como até hoje confirmamos com negócios que fecharam suas portas. São muitos. Há vários setores que não se recuperaram, e há indícios de que a recuperação possa ser lenta ou nenhuma. Por isso, a necessidade de intervenção em forma de políticas fiscais de apoio. O Perse é uma delas.

O modelo tem suscitado dúvidas e problemas de interpretação que resultam em intensa judicialização. Um dos temas levados com frequência aos tribunais refere-se à necessidade, ou não, de obtenção do registro Cadastur, em alguns casos. Discutiu-se a Portaria nº 7,163/2021 que o TRF-3ª Região entendeu que havia extrapolado sua função (AI 50292803720224030000-SP).

O modelo está centrado em redução de alíquotas, com base em critérios de elegibilidade, cujos indicativos seriam os Cnaes. O Cnae é um código que fixa a atividades exercidas pela empresa, que deve, para efeitos de fruição do Perse, corresponder às atividades econômicas beneficiadas, selecionadas em conjunto de atividades do setor de eventos, uma dos mais afetados pela crise, como resultado mesmo das medidas de isolamento social.

A nova lei excluiu várias atividades, o que sugere preocupação. A nova lei considera preponderante a atividade cuja receita bruta decorrente de seu exercício seja a de maior valor absoluto, apurado dentre os códigos da Cnae componentes da receita bruta total da pessoa jurídica. Basicamente, os Cnaes alcançados são contemplados com redução a alíquota-zero de tributos que o modelo indica, pelo prazo de 60 meses. Uma primeira e rápida conta indica uma queda de abrangência de 44 para 30 Cnaes.

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Do ponto de vista governamental, tem-se a impressão de que, adicionalmente, o programa eliminaria categorias como suporte à pesca, fabricação de vinhos, manutenção e reparo de embarcações, vendas de embarcações e veículos recreativos, além de navegação de apoio e uma gama de atividades educacionais e culturais.

Apoio a setor de eventos

Essa decisão estratégica talvez tenha o objetivo de intensificar o foco dos benefícios nas atividades essenciais ao núcleo do setor de eventos, garantindo um uso mais assertivo e eficaz dos recursos tributários e promovendo uma recuperação mais robusta das receitas públicas. Todavia, é necessário que se analise, caso a caso, os setores que foram excluídos por força de eventual iniquidade que possa resultar da nova opção.

O Cadastur também suscita dúvidas e insegurança, dado que há necessidade de comprovação de cadastramento até 18 de março de 2022, com possibilidade de regularização até 30 de maio de 2023.

Isto é, a lei dispõe que o direito à fruição do benefício é condicionada à regularidade, em 18 de março de 2022, ou adquirida entre essa data e 30 de maio de 2023, de regularização junto ao Cadastur, relativo ao exercício das seguintes atividades econômicas:

  • restaurantes e similares (5611-2/01);
  • bares e outros estabelecimentos especializados em servir bebidas, sem entretenimento (5611-2/04);
  • bares e outros estabelecimentos especializados em servir bebidas, com entretenimento (5611-2/05);
  • agências de viagem (7911-2/00);
  • operadores turísticos (7912-1/00);
  • atividades de jardins botânicos, zoológicos, parques nacionais, reservas ecológicas e áreas de proteção ambiental (9103-1/00);
  • parques de diversão e parques temáticos (9321-2/00);
  • atividades de organizações associativas ligadas à cultura e à arte (9493-6/00)

Persiste também o problema da transferência de titularidade, que vincula cedentes e cessionários por tributos não recolhidos, com base em equivocada aplicação dos benefícios do programa. É tema que também fomentará a judicialização. Percebe-se também algum nível de preocupação com a exclusão de inativos (ou que o foram, de 2017 a 2021), o que revela uma contradição na política governamental.

Deve-se também atentar para a opção para o lucro real, com a limitação temporal imposta pela nova regra, especialmente quanto aos exercícios vindouros de 2025 e 2026. Ao que consta, a Receita já propicia plataforma para habilitação prévia, que deveria ser disponibilizada em um prazo de 60 dias após a regulamentação da lei. O requerimento para habilitação, que é condição para a fruição dos benefícios, deve ser encaminhado na plataforma eletrônica disponibilizada pela Receita Federal, mediante a apresentação dos atos constitutivos e das respectivas alterações.

O interessado deve ficar atento porquanto a lei dispõe que a habilitação posterior não impede a aplicação do benefício fiscal sobre períodos anteriores. O interessado também deve levar em conta que a lei oferece ampla defesa e contraditório, quanto a hipóteses de indeferimento e cancelamento.

Benefício indevido

O contribuinte que tenha usufruído indevidamente de alguns benefícios previstos na lei originária do Perse poderá se socorrer da autorregularização incentivada, prevista na Lei nº 14.749, de 29 de novembro de 2023.

Em função da transparência que se espera, a Receita deverá produzir relatórios bimestrais de acompanhamento, com referência ao uso do benefício. Trata-se de uma plataforma eletrônica automatizada, que receberá atos constitutivos e respectivas alterações, no interesse das empresas que se beneficiam do regime.

Além disso, o benefício conta com custo fiscal de gasto tributário fixado, nos meses de abril de 2024 a dezembro de 2026, no valor máximo de R$ 15 bilhões. Quando atingido o limite do custo fiscal previsto haverá, entre outros, necessidade de demonstração por parte do Executivo, junto ao Congresso Nacional.

De acordo com a nova lei, há vários CNAEs que deixam de fruir o benefício. Entre eles, o relativo a serviços de alimentação para eventos e recepções-bufê (5620-1/02), fornecimento de alimentos preparados preponderantemente para empresas (5620-1/01). Não se tem com clareza os porquês dessa exclusão.

A nova lei sugere desafios na sua interpretação e na sua implementação. Seus propósitos são elogiáveis, ainda que tenhamos algum ruído de aplicação, em um ou outro dispositivo. Esse é o tema central da legística, que se ocupa com a qualidade das leis. No caso, só o tempo dirá se o Perse atingiu seus objetivos, fomentando a atividade de setores que a pandemia fez terra arrasada.

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