Opinião

De credor para devedor: honorários, prescrição intercorrente e entendimento do STJ

Autor

  • Vitorio Alfaro Boettcher

    é bacharel em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS) advogado na área de resolução de conflitos do Ricardo Alfonsin Advogados e ex-secretário de desembargador junto ao TJ-RS.

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29 de maio de 2024, 18h19

O valor dos honorários advocatícios sucumbenciais permanece sendo tema central para todas as partes que participam do processo judicial. Por um lado, tal verba serve para remunerar o advogado que trabalhou na representação dos interesses de seu cliente. Por outro lado, o montante dos honorários de sucumbência funciona como vetor para incentivo ou desincentivo à litigiosidade. Não parece exagero sustentar que o montante dos honorários de sucumbência é um dos principais elementos que compõem a análise econômica do processo judicial e dos riscos nele envolvidos.

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Embora não a partir de análise econômica e dos riscos envolvidos no processo judicial — mas sempre sob a perspectiva de honorários exorbitantes em causas de valor elevado —, o montante dos honorários de sucumbência segue sendo assunto estratégico nos Tribunais de Justiça e nas cortes superiores. Sob a vigência do CPC de 1973, o entendimento majoritário da jurisprudência era no sentido de que não havia regra processual estabelecendo parâmetros objetivos para fixação dos honorários sucumbenciais. Em razão disso, os honorários sucumbenciais eram arbitrados de forma discricionária e com base em critérios subjetivos, retirando a previsibilidade sobre o montante da sucumbência a que as partes estariam potencialmente sujeitas – o que incentivava a litigância descompromissada.

Ao mesmo tempo, subjetividade e discricionaridade no arbitramento de honorários de sucumbência impediam que, em grande parte dos casos, os advogados fossem adequadamente remunerados pelo exercício da profissão – ou mesmo corretamente precificassem os honorários contratuais. Pragmaticamente, um importante elemento do processo judicial era totalmente indeterminado e incerto.

Insegurança jurídica leva STJ a analisar assunto

Diante desse cenário controvertido e complexo, o CPC de 2015 alterou radicalmente o CPC de 1973, e estabeleceu parâmetros objetivos para a fixação dos honorários de sucumbência: entre 10 e 20% da condenação, do proveito econômico, ou do valor atualizado da causa. A situação parecia ter sido (muito bem) resolvida.

Todavia, a prática demonstrou o contrário: apesar da objetividade da nova regra do artigo 85, §2º do CPC, os tribunais seguiram encontrando alternativas para não observar os parâmetros estabelecidos no regramento processual, e permaneceram fixando honorários em valores fixos, com aplicação de critérios subjetivos, com base na regra de equidade do artigo 85, §8º do CPC.

Essa insegurança jurídica provocou a análise do assunto pelo STJ, para delimitar o sentido e o alcance do artigo 85, §2º do CPC. O STJ consolidou, por meio de recurso repetitivo (Tema 1.076 STJ), o entendimento de que os honorários advocatícios devem ser arbitrados em no mínimo 10% e no máximo 20% sobre os parâmetros previstos no artigo 85, §2º, não havendo espaço para subjetividade do julgador e para o arbitramento de honorários em valor fixo. Vitória para a advocacia, para as partes litigantes e para o próprio Poder Judiciário. Previsibilidade e segurança jurídica. Obstáculo à litigância descompromissada, e remuneração digna para os advogados.

Tiro pela culatra

Sucede que — como diz o jargão popular — o tiro saiu pela culatra. Inadvertidamente, o entendimento consolidado no recurso repetitivo passou a ser gravemente distorcido, em prejuízo de todas as partes que integram o processo judicial. A previsibilidade e segurança jurídica que haviam entrado pela porta terminaram saindo pela janela.

Um exemplo hipotético ilustra a situação que justificou este artigo, e a distorção que tem sido promovida por alguns profissionais do Direito sobre o arbitramento de honorários advocatícios e os percentuais previstos no artigo 85, §2º do CPC.

Imagine-se que uma renomada Empresa Y, solvente, é autora em uma ação indenizatória, na qual cobra o valor de R$ 100 milhões da Empresa X. Já a Empresa X é falida, com patrimônio insuficiente para adimplir o valor cobrado no processo judicial. Após 12 anos de tramitação, e diligente trabalho dos advogados da Empresa Y, o Judiciário julga procedente o pedido, e condena a Empresa X ao pagamento de: (1) indenização no valor de R$ 100 milhões, a ser acrescido de juros e correção monetária; (2) custas e honorários em favor dos advogados da Empresa X, arbitrados em 10% sobre o valor da condenação, nos termos do artigo 85, §2 do CPC.

Opera-se o trânsito em julgado e inicia-se o cumprimento de sentença da condenação e dos honorários. No exemplo hipotético, não são encontrados bens para satisfazer o valor do crédito. Diante desse cenário, a Empresa Y não pratica atos executivos e fica inerte por período suficiente para o reconhecimento de prescrição intercorrente. Apesar disso, faz novo requerimento de penhora contra a Empresa X, que responde com exceção de pré-executividade sustentando a prescrição intercorrente da pretensão.

A Empresa Y responde à exceção. O juízo reconhece a prescrição intercorrente e extingue o processo. Como consequência da extinção da demanda, os advogados da Empresa X postulam o arbitramento de honorários pelo artigo 85, §2º do CPC, em, no mínimo, 10% do valor atualizado da execução, que já se aproxima das três centenas de milhões de reais. E o fazem sob os fundamentos de que o STJ: (1) já teria se manifestado, em recurso repetitivo (artigo 927, III do CPC), no sentido de que o artigo 85, §2º introduziu autêntica e objetiva ordem para arbitramento de honorários; (2) a resistência da Empresa Y à exceção justificaria o arbitramento de honorários, com base no princípio da sucumbência.

De credora a devedora

O magistrado acolhe o pedido e arbitra honorários de sucumbência em 10% sobre o valor atualizado da execução. Daí surge a situação paradoxal que justificou o presente artigo: a Empresa Y, credora de cerca R$ 300 milhões (atualizado), virou devedora de R$ 30 milhões em honorários, porque a Empresa X nunca pagou um único real da condenação.

Esse resultado prático fomenta chicana processual e recompensa o devedor. Pior: provoca uma grave insegurança jurídica, e representa incentivos para ser devedor contumaz. Lamentavelmente, são diversos os processos em situações semelhantes que têm surgido (ou sido ressuscitados) no âmbito do Poder Judiciário. Nos últimos 2 anos, vê-se que a jurisprudência do STJ não apresentou soluções uniformes em relação ao assunto – havendo decisões em pelo menos 02 diferentes sentidos: (1) os honorários deveriam ser arbitrados observados os parâmetros do artigo 85, §2º, caso houvesse resistência do credor à exceção de pré-executividade; e (2) não seriam devidos honorários em favor dos advogados do devedor, em atenção ao princípio da causalidade.

STJ uniformiza entendimento sobre o tema

Em razão dessa importante controvérsia e da existência de decisões em sentidos verticalmente opostos, a Corte Especial do STJ, por ocasião do julgamento do EAREsp 1.854.589, uniformizou entendimento no sentido de que, em casos envolvendo extinção do processo por prescrição intercorrente – seja por ausência de bens, seja por não localização do devedor – não há espaço para o arbitramento de honorários advocatícios de sucumbência em favor dos advogados do devedor.

Esse recente entendimento do STJ parece correto por pelo menos quatro razões. Primeiro: é certo que a Empresa Y (credora) não foi vencida no processo judicial. Pelo contrário: foi vencedora. Porém, nunca recebeu o valor a que faz jus, porque a Empresa X não pagou. Diante disso, é de se questionar: se a Empresa Y foi vencedora, como seria condenada ao pagamento de honorários de sucumbência?

Note-se, ademais, que: (1) nem os advogados da Empresa Y receberam os honorários arbitrados em percentual sobre o valor da condenação – estes sim devidos com observância ao recurso repetitivo; e (2) é importante atentar para a previsibilidade e para alocação de riscos envolvidos no processo judicial. Com base nesta perspectiva, é também de se questionar: como poderia a Empresa Y prever que, porque a Empresa X nunca pagou o valor da condenação, haveria margem para sua condenação ao pagamento de honorários de sucumbência na monta de milhões de reais diante de prescrição intercorrente?

Sem resposta

Não se consegue encontrar resposta para essas perguntas, porque permitir que o vencedor do processo judicial, que teve sua pretensão reconhecida pelo Poder Judiciário, seja condenado ao pagamento de honorários em favor dos advogados do devedor, calculados sobre o valor da pretensão e do direito que foram a si reconhecidos (!), foge a toda e qualquer lógica, e rompe com a noção binária de certo e errado.

Segundo, o princípio da causalidade é o vetor do arbitramento de honorários sucumbenciais. Tal princípio impõe que os honorários sejam observados não a partir de quem deu causa à prescrição intercorrente, mas de quem foi o responsável pelo ajuizamento da ação judicial. Essa é a interpretação que parece ter sido corretamente consolidada no âmbito da Corte Especial do STJ, e que resulta no reconhecimento de que não há margem para o arbitramento de honorários de sucumbência em casos de extinção do feito por prescrição intercorrente.

Terceiro, o princípio da sucumbência não justifica o arbitramento de honorários em casos de prescrição intercorrente. Essa interpretação contraria diretamente o princípio da causalidade, assim como a racionalização processual, trazendo incentivo à litigiosidade e à uma interpretação economicamente equivocada do processo judicial. Imagine-se os diversos processos que serão “ressuscitados” por advogados com o objetivo de receber honorários em razão da prescrição intercorrente? É igualmente difícil encontrar uma resposta razoável para essa pergunta, porque qualquer reflexão sobre o assunto revela que não há argumento lógico para o arbitramento de honorários em casos envolvendo extinção de execuções por prescrição intercorrente por ausência de bens.

Quarto, a Lei nº 14.195/21, que introduziu alterações no CPC e em capítulo que trata da racionalização processual, complementou o artigo 921, §5º do CPC, estabelecendo que o juiz, depois de ouvidas as partes, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição no curso do processo e extingui-lo, sem ônus para as partes. A inovação legislativa ocorreu na parte final do §5º, determinando que a extinção por prescrição intercorrente deve se dar sem ônus para as partes. Isso não foi algo inadvertido: a complementação legislativa veio para consolidar o entendimento de que não devem ser arbitrados honorários advocatícios de sucumbência em caso de extinção do feito por prescrição intercorrente, em prejuízo do credor.

Todas essas observações servem para ilustrar que a regra do artigo 85, §2º do CPC — que é ótima e foi objeto de correta interpretação pelo STJ cerca de dois anos atrás — passou a ser objeto de uma interpretação equivocada. E essa interpretação vinha fazendo com que credores se tornassem devedores de honorários em valores relevantes, porque os devedores não tinham bens suficientes para pagar o valor a que foram condenados pelo Poder Judiciário. Tal interpretação, contudo, não está correta, sendo contrária aos princípios estruturantes do ordenamento jurídico, à racionalidade econômica do processo judicial, à própria noção de certo e errado, e aos riscos calculados pelas partes quando do ajuizamento de um processo — e não merece prevalecer nos tribunais.

Espera-se que o STJ permaneça observando as consequências de uma má interpretação de uma boa regra, e consolide — à margem de qualquer dúvida razoável (e talvez em recurso repetitivo, se a prática forense revelar necessário) — o recente entendimento da Corte Especial, no sentido que o artigo 85, §2º do CPC não deve ser observado em casos de extinção do processo por prescrição intercorrente por ausência de bens ou não localização do devedor.

Autores

  • é bacharel em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS), advogado na área de resolução de conflitos do Ricardo Alfonsin Advogados e ex-secretário de desembargador junto ao TJ-RS.

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