Zona de Penumbra

Desencontro entre STF e demais tribunais expõe falhas no sistema de precedentes

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28 de maio de 2024, 12h31

*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil  2024, lançado nesta quarta-feira (22/5). A versão digital é gratuita, acesse pelo site do Anuário da Justiça (clique aqui para ler). A versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui).

Capa Anuário Brasil 2024

Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. É o que diz o artigo 926 do Código de Processo Civil, uma das pedras fundamentais colocadas pelo legislador para positivar um sistema brasileiro de precedentes que, por vezes, parece ruir de dentro para fora, de cima para baixo. O problema é a “zona de penumbra” que existe entre o Supremo Tribunal Federal e outros tribunais brasileiros, fruto de uma Constituição Federal densa com princípios que se espraiam de tal maneira que não é difícil atrair a competência dos únicos onze juízes do país que, de fato, terão a última palavra – e que poderão modificá-la a qualquer momento.

Longe de ser incomum, a revisão de julgados dos tribunais superiores pelo STF é natural e esperada. As cortes têm competências distintas, o que faz com que uma questão julgada sob o enfoque infraconstitucional (STJ), trabalhista (TST), eleitoral (TSE) e até militar (STM) seja reanalisada pelo Supremo sob o viés constitucional. É algo rotineiro, mas que, cada vez mais, vem criando ruídos e atritos em uma relação jurisprudencial que poderia ser mais harmoniosa.

Essa dificuldade foi abordada pelo ministro do STJ, Sérgio Kukina, durante seminário na corte. Apontou que o tribunal acaba sendo de passagem, o que faz com que prometa algo que não consegue entregar: a última palavra na interpretação da lei infraconstitucional. Nesse desenho constitucional, diz que melhor seria se os casos fossem primeiro para o Supremo. Isso relegaria ao STJ as causas em que não há questão constitucional ou sem repercussão geral. “Alguém disse que as decisões do STJ ou STF não serão melhores que as outras, serão apenas as últimas. Eu não me vejo nem com essa prerrogativa. Quando penso que errei por último, o Supremo me diz o contrário.”

Zona de penumbra: revisão de julgados dos tribunais superiores pelo STF é natural, mas que vem criando atritos

O ministro costuma fazer referência a Zona de Penumbra entre o STJ e o STF, livro do professor da UFPR Luiz Guilherme Marinoni. O jurista resumiu a questão no mesmo evento: “Se temos duas cortes supremas exercendo a mesma função, temos algo de muito errado que tem que ser corrigido por uma elaboração teórica.”

Em sua obra, Marinoni defende a necessidade de distinção entre a função de interpretar a lei nos termos da Constituição e a função de controlar a constitucionalidade da interpretação da lei. Ao STJ, cabe a primeira função. Ao Supremo, a segunda. Em entrevista à ConJur, explicou que seria um absurdo imaginar que o STJ, ao interpretar a lei, deva parar nos critérios tradicionais de interpretação, não podendo invocar a Constituição como parâmetro ou critério interpretativo. “Cabe ao STF apenas controlar a constitucionalidade da interpretação definida pelo STJ, e não rever a interpretação dada à lei”, defendeu.

Assim, não deveria o STF optar por uma melhor interpretação da lei, ainda que nos termos da Constituição, pois isso o transformaria em uma corte revisora do STJ – que é o que vem ocorrendo na prática. “O STF apenas pode declarar a inconstitucionalidade da interpretação ou, excepcionalmente, proclamar interpretação conforme para preservar a lei”, afirmou.

O que dizem os ministro do STF

No Supremo, essa zona de penumbra é vista com seriedade, mas interpretada de maneiras diferentes pelos ministros. Desde junho de 2021, a corte tem um acordo de cooperação com o STJ para otimizar o trâmite de processos entre eles e fortalecer o sistema de precedentes. A duração do acordo está prevista até 2026. Ao Anuário da Justiça, o ministro Dias Toffoli defendeu que, sempre que possível e em prol da segurança jurídica, as posições do STJ sejam preservadas. Para ele, essa zona de penumbra tende a diminuir com o tempo. “É necessário diminuir o tempo entre decisões do STJ, que também geram precedentes para todo o país no que diz respeito à interpretação da lei federal e das decisões do STF. O que temos de fazer? Um sistema mais eficiente. E estamos fazendo isso.”

Já o decano da corte, ministro Gilmar Mendes, entende que, a despeito do debate que possa se colocar, ninguém tem dúvida de que o guardião da Constituição Federal é o Supremo, então prevalecerá a posição da corte. “O que surge também nesses casos, às vezes, são propostas de modulação de efeitos. Já que o entendimento do STJ ficou em vigor por tanto tempo, por que não deixá-lo ou não valorizá-lo naquela fase em que foi dominante?”

Kassio Nunes Marques diz que “eventual e pontual modificação de uma decisão apenas vem a reafirmar a necessidade de trabalho integrado e harmônico de todas as cortes do país. O debate é da essência do Direito; a jurisprudência, aliás, se constrói justamente pelo diálogo. O contraditório é fundamental para que haja a contínua evolução da jurisprudência, de modo que os tribunais superiores são fundamentais para toda essa construção”.

O melhor exemplo desse descompasso vem do tribunal que é mais afetado por essa realidade. Desde que começou a uniformizar a interpretação do Direito Federal pela fixação de teses vinculantes sob o rito dos recursos repetitivos, em 2008, o STJ viu 16 delas serem revisadas por decisões do STF, além de 11 cancelamentos. Em abril de 2024, havia 17 teses com marcação de recurso extraordinário pendente. Sem contar as posições que já foram visitadas pelo STF com resultado distinto, mas que ainda não passaram por revisão formal no STJ.

Tese do século

Um desses casos é o da chamada tese do século, que passou pelo STJ em 2016, ainda sem essa alcunha. A corte entendeu, então, que o ICMS deveria integrar a base de cálculo de PIS e Cofins. Um ano depois, o STF julgou a controvérsia e optou pelo resultado oposto. Faltou definir qual parcela do ICMS deveria ser excluída da base de cálculo — se a efetivamente devida aos estados ou a destacada na nota fiscal. Dentro dessa zona de penumbra, o STJ passou quatro anos seesquivando da questão, para aguardar uma posição do Supremo. A definição foi feita só em 2021 e veio junto com a modulação temporal dos efeitos da tese: a exclusão do ICMS da base de PIS e Cofins só poderia ser aproveitada pelo contribuinte a partir de 17 de março de 2017, data em que a tese do século foi fixada. A restrição não alcançou as ações que foram ajuizadas para discutir o tema antes dessa data.

Essa demora abriu um novo round de disputa judicial envolvendo o tema. Quem obteve o direito de compensação ou ressarcimento de valores indevidamente pagos a título de PIS e Cofins mediante ações ajuizadas entre março de 2017 e abril de 2021 entrou na mira da Fazenda Nacional, que passou a ajuizar ações rescisórias com o objetivo de aplicar a modulação. Para completar a confusão, STJ e Supremo vêm se recusando a analisar recursos contra as decisões tomadas nessas rescisórias. O STJ entende que o caso envolve interpretação constitucional, a qual caberia ao Supremo. Este, por sua vez, vem analisando em decisões monocráticas que a ofensa à Constituição seria meramente reflexa e que o próprio cabimento da rescisória é tema infraconstitucional, por envolver normas do CPC.

E qual o impacto disso? Quando a tese do século foi julgada, o prejuízo da União foi orçado em R$ 250 bilhões. E mesmo após a modulação dos efeitos, em 2021, subiu para R$ 533 bilhões — valores de perda de arrecadação e estimativa de ressarcimentos. Já em 2024, a Advocacia-Geral da União informou ao Congresso risco provável de R$ 124,4 bilhões. E o prejuízo dos contribuintes que julgaram estar amparados pela tese do Supremo antes da modulação?

Revisão da vida toda

A situação fica pior quando uma posição do STJ é impactada não em recurso julgado pelo STF, mas em sede de controle concentrado de constitucionalidade. É o caso da chamada revisão da vida toda — a possibilidade de os aposentados escolherem usar ou não as contribui-ções previdenciárias recolhidas antes do Plano Real, de 1994, para calcular os valores de seus benefícios. O STJ entendeu que seria incabível, mas depois o STF reformou e aprovou a revisão, em 2022, por meio de recursos extraordinários. Em 2024, o tema foi reanalisado em ação direta de inconstitucionalidade. Com uma composição ligeiramente diferente neste momento, o Supremo voltou atrás.

Para além dos temas de Direito Público, causas penais de amplíssimo impacto também têm sido produzido por julgados do STF. Um exemplo é o do julgamento da 1ª Turma que concluiu pela legalidade da requisição de relatório financeiro junto ao Coaf pelo Ministério Público, medida que era vedada pelo STJ para evitar que o órgão de inteligência financeira seja transformado em repositório de informações.

O Plenário do Supremo nem precisa firmar posição para já influenciar as instâncias ordinárias a contrariar o STJ. Um voto – vencido – do ministro Alexandre de Moraes pela validade da invasão de domicílio por policiais com base em denúncia anônima vem sendo amplamente usado para justificar essa medida, rechaçada pelo STJ.

Esse descompasso entre as cortes aparece até quando as posições de ambas são parecidas. É o caso da extinção da punibilidade do preso quando não há o pagamento da multa. O tema é de suma importância porque impacta a ressocialização da população carcerária. O STJ definiu em março de 2024 que a quitação da multa pode ser dispensada se o próprio preso alegar que é hipossuficiente. Isso empurra para o Ministério Público o ônus de provar que o condenado pode arcar com o valor. No mês seguinte, STF julgou ação sobre o artigo 51 do Código Penal, que trata do tema, e retirou da interpretação a questão do ônus da prova. Qual será a posição que as instâncias ordinárias vão seguir?

Conflito às claras

No caso do Tribunal Superior do Trabalho, a dúvida é se a tal zona pode ser considerada de penumbra. O conflito ocorre às claras, principalmente em temas relativos à reforma trabalhista de 2017. O Supremo vem consistentemente tirando da esfera de competência da Justiça do Trabalho o julgamento sobre a existência da relação de empregos de trabalhadores autônomos ou terceirizados.

O STF entende que esses contratos têm natureza comercial e que, portanto, devem tramitar na Justiça comum. Do juiz de piso ao TST, por outro lado, insiste-se em dar fim a esses casos na área trabalhista. O TST tem identificado, nos casos concretos, elementos legais que caracterizam uma relação de emprego, enquanto os ministros do Supremo entendem que a Justiça do Trabalho está descumprindo precedentes que validaram a existência de contratos alternativos de trabalho, como a terceirização, inclusive da atividade-fim, eapejotização.

A relação desgastada entre as cortes pode ser observada pelas constantes críticas feitas pelo decano do STF, Gilmar Mendes. “Tomamos uma decisão e, em seguida, vem decisão do TST ou de TRT dizendo que não foi essa a decisão que o Supremo tomou. E depois, de acordo também com os azares e sortes da distribuição da eventual reclamação no Supremo, aquela decisão é mantida ou não”, disse, em evento. Na prática, o STF virou instância revisora do TST. O impacto é tamanho que incluiu no debate a própria existência da Justiça do Trabalho.

Para a ministra Delaíde Arantes, do TST, a cassação dessas decisões da Justiça do Trabalho com o amplo acolhimento de reclamações constitucionais é uma prática incompatível com a independência do Judiciário. “As tentativas de redução do papel do Direito e da Justiça Social, os ataques desta vez não se limitam a um segmento do setor econômico, mas vem com o reforço de setores do STF e do meio jurídico, aliando aqueles e aquelas que defendem a primazia dos princípios econômicos e assim procedem na interpretação da lei, na aplicação de normas.”

Na análise do ministro Douglas Rodrigues, as motivações do Supremo para essa postura decorrem de uma percepção de inadequação da forma como o TST arbitra os conflitos trabalhistas. “Nós vamos querer a CLT porque a CLT justifica a institucionalidade ou nós queremos que a institucionalidade se justifique para atender o interesse do jurisdicionado no arbitramento dos conflitos?”, provocou, em evento. “É preciso nos despir desse preconceito, dessa pré-compreensão que está levando o Supremo Tribunal Federal a cassar tantas decisões que, ao fim e ao cabo, podem nos levar ao cenário de esvaziamento absoluto que, no extremo, não mais justifique a existência dessa instituição”, complementou.

Há quem faça mea culpa. O ministro Ives Gandra Filho, da 4ª Turma, entende que os excessos de protecionismo da Justiça do Trabalho e do TST, bem como a indisciplina judiciária, têm sido responsáveis pela redução paulatina da competência desse ramo do Judiciário. “As reclamações dos ministros do STF são justificáveis, não, porém, tal redução da competência da JT. Parece mais uma vez ter lugar a 3ª Lei de Newton: a toda ação corresponde uma reação em sentido contrário e de igual intensidade”, afirma.

Assista à cerimônia de lançamento do Anuário da Justiça Brasil 2024:

ANUÁRIO DA JUSTIÇA BRASIL 2024
18ª Edição
ISSN: 2179981-4
Número de páginas: 276
Versão impressa: R$ 50, à venda na Livraria ConJur
Versão digital: disponível gratuitamente no app “Anuário da Justiça” ou pelo site anuario.conjur.com.br

Anuário da Justiça Brasil 2024 contou com o apoio da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP.

Anunciaram nesta edição do Anuário da Justiça Brasil:

Abdala Advogados
Advocacia Fernanda Hernandez
Antonio de Pádua Soubhie Nogueira Advocacia
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Basilio Advogados
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Costa & Marinho Advogados
Cury & Cury Sociedade de Advogados
Décio Freire Advogados
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DMJUS
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FAAP
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Fidalgo Advogados
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Fux Advogados
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Hasson Sayeg, Novaes e Venturole Advogados
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Laspro Advogados Associados
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