Cautela no combate à denunciação caluniosa eleitoral
28 de maio de 2024, 17h21
Este artigo, longe de esgotar o tema, tem o escopo de propor uma breve reflexão sobre as alterações trazidas ao Código Eleitoral pela Lei nº 13.834/2019, aprovada com veto parcial do presidente da República e posteriormente derrubado pelo Congresso, que acrescentou o artigo 326-A, no referido Codex, ao tipificar o crime de denunciação caluniosa eleitoral, englobando tanto o agente que faz a denúncia falsa quanto aquele que a divulga, para fins eleitorais. Tipificação que merece atenção, especialmente porque vale para as eleições municipais que ocorrerão neste ano.
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Miríades fake news têm se espalhado, nos últimos anos, no mundo cibernético, com destaque para as redes sociais, com informações inverídicas e enganosas com finalidade eleitoral, dando azo a situações de injúria, calúnia, difamação e, especialmente, a uma enxurrada de denunciações caluniosas que acometem os órgãos investigativos. Foi razão disso, que o Poder Legislativo entendeu ser necessário tipificar, com especificidade, a conduta tanto do agente que faz denúncia falsa quanto daquele que a divulga, para fins eleitorais.
O tipo do artigo 326-A é categórico, em seu caput, em criminalizar a conduta daquele que der causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou ação de improbidade administrativa, atribuindo a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral. A pena para a prática do crime é de reclusão, de dois a oito anos, e multa; que será aumentada de sexta parte, se o agente se serve do anonimato ou de nome suposto, causa de aumento que está posta no § 1º do dispositivo, sendo que, em seu § 2º, está uma causa de diminuição, pois a pena será diminuída de metade, se a imputação é de prática de contravenção.
O novo dispositivo traz situação de equiparação, quando dispõe, sequencialmente em seu § 3º, que incorrerá nas penas cominadas no caput quem, comprovadamente, ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído.
Destaque-se, assim, que na tentativa de conter as denunciações caluniosas eleitorais, além de pena de prisão, a lei prevê multa para quem acusar falsamente um candidato a cargo político com o escopo de afetar sua candidatura; punição que é aumentada, como apontado acima, quando o crime for cometido sob anonimato ou nome falso, que é o que comumente acontece.
Para que o agente se enquadre, então, na fattispecie do novo crime, exige-se o dolo específico dele, porque o tipo é claro em infirmar que o ato deve ser praticado com finalidade eleitoral, para que esteja configurado o delito do artigo 326-A, do Código Eleitoral, e não aquele previsto no artigo 339 do Código Penal. Sendo relevante destacar que, embora o tipo exija a finalidade eleitoral para a sua configuração, não há necessidade de o ato criminoso ser praticado em época de período eleitoral.
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O núcleo/elementar do tipo está no animus do agente que, articulado com finalidade eleitoral, atribui a terceiro, que sabe ser inocente, a prática de determinado crime, de modo a provocar, perante as autoridades, a instauração de investigação ou processo.
Assim e em que pese a ânsia em conter situações como a descrita no tipo do artigo 326-A, do Código Eleitoral, cumpre salientar que, no próprio título atinente aos crimes eleitorais, há disposições sobre os delitos de calúnia, difamação e injúria, com penas de detenção e/ou multa. Sendo que, o crime de denunciação caluniosa já tinha previsão genérica no artigo 339 do Código Penal, no capítulo dos crimes contra a administração da justiça, com a mesma pena e com as mesmas causas de aumento e diminuição.
Assim e permissa venia, cabe uma crítica ao dispositivo em testilha, sendo difícil encontrar razão e juridicidade na criação de uma tipificação específica para um fato que, mesmo sendo com finalidade eleitoral, se adequaria à fattispecie do artigo 339 e seus parágrafos, do Código Penal.
Denunciação já era passível de punição
Certo, então, que sempre houve, pela exegese do Código Penal, a possibilidade de punição do agente que faz denunciação inverídica, sendo que a única inovação do novo tipo está no § 3º, que equipara às mesmas penas do caput aquele que realiza a propagação de denúncias falsas com o intuito exclusivamente eleitoral, Ou seja, passa-se a punir, com prisão, aquele que, ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou o fato que lhe foi falsamente atribuído.
Situação que nos chama à reflexão, pois é clarividente que o caminho da punitividade, como comumente acontece no Brasil, é uma resposta distorcida e pouco eficaz, na medida em que o direito penal deve ser a ultima ratio, devendo os Poderes da República tomarem cuidado para não dar ensejo a uma máquina de tipos, sem grande efetividade, a revelar que a grande prioridade do poder público é punir e não prevenir.
É que a criação de novos tipos penais deve surgir, apenas e tão somente, quando todas as formas preventivas já foram infrutíferas e, ainda, quando inexistir qualquer tipo que possa amoldar a conduta, no compasso da interpretação da jurisprudência dos tribunais superiores.
Deve-se explorar a ideia de barrar a criminalidade digital com legislação inicialmente não penal, fiscalização e conscientização. Uma possibilidade que nos parece bastante crucial para o combate às fake news e situações de denunciação caluniosa eleitoral e de sua propagação são os investimentos em tecnologias, porque apenas a ciência tecnológica digital é apta a criar mecanismos para tolher esse tipo de criminalidade e frustrar as tentativas dos agentes de disseminar notícias falsas com finalidade eleitoral. Isso além de ferramentas para evitar o anonimato (que já é constitucionalmente vedado) e de fiscalização da abertura de contas falsas, no momento do cadastro, por exemplo.
É certo que o alastramento de desinformação e de fake news, bem como a sua divulgação sistêmica, com intuito de interferir em questões eleitorais, em escala avassaladora, como aconteceu, por exemplo, nas eleições presidenciais de 2018, é um atentado ao Estado democrático de Direito. Contudo, devemos ir com certa calma e colocar o direito penal como última hipótese, pois as leis que saem do forno, de forma exasperada, para atender ao clamor popular, devem ser pensadas e repensadas, bem como estudadas de forma multidisciplinar, para depois, se nenhum outro meio for eficaz para conter a nocividade de tais condutas, aí, sim, recorrermos ao sistema punitivista.
É o que nos ensina a história e a criminologia moderna.
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