Contas à Vista

Atual PNE tende a ser prorrogado porque foi quase totalmente descumprido

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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28 de maio de 2024, 8h00

Daqui a menos de um mês se encerra, em tese, a vigência do Plano Nacional de Educação (PNE) relativo ao decênio 2014-2024. A Lei 13.005, de 25 de junho de 2014, completará seu ciclo temporal, em consonância com o comando do artigo 214 da Constituição de 1988.

Paradoxalmente, a caminho do fim, o atual PNE tende a ser prorrogado precisamente porque ele foi quase totalmente descumprido. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação estimou em cerca de 90% o patamar de descumprimento das metas e estratégias do plano educacional, conforme o último balanço disponível, publicado aqui.

Sendo uma lei ordinária de planejamento setorial de tamanha relevância, que nunca foi alterada ao longo da sua vigência decenal, o PNE somente vê sua prorrogação ser defendida aparentemente sem maiores ruídos (como se pode ler aqui e aqui), precisamente porque ele não foi executado a contento. Tampouco ensejou sanções em função disso.

Ninguém toca no assunto

Como tem sido muito fácil ignorar e descumprir os comandos do PNE 2014-2024, nunca foi necessário alterá-lo. Pelo mesmo motivo, agora tende a ser igualmente fácil prorrogá-lo nominalmente, sem que seja gerada maior celeuma ou polarização política. Não há conflito, porque, na prática, desde sempre tem sido negada uma efetiva aplicação ao PNE vigente.

Aliás, vale notar que, até os presentes dias, nem mesmo o projeto de lei do próximo PNE foi enviado pelo Executivo federal ao Congresso. O prazo máximo para tal envio era até o final do primeiro semestre de 2023, à luz do artigo 12 da Lei 13.005/2014. Ou seja, o governo está formalmente em mora pela falta de envio do projeto do PNE 2024-2034 há cerca de 11 meses e quase ninguém tocou no assunto… Tenho a ingrata satisfação de constar entre os poucos que alertaram para o risco nesta coluna Contas à Vista de 16 de maio de 2023.

Anistia estratégica

Atualmente as divergências se concentram no teor do próximo PNE, o qual deve ser erigido a partir do documento de referência aprovado pela Conferência Nacional de Educação (Conae) [1] em 30/1/2024 (disponível aqui).

Aparentemente para contornar a severa polarização contra a construção democrática promovida no âmbito da Conae, a iminente prorrogação da vigência do PNE 2014-2024 corresponde a uma espécie de anistia estratégica que adia o debate do PNE 2024-2034, sem abrir qualquer responsabilização pelo diagnóstico de fracasso do plano educacional vigente.

Nesse contexto, pode até parecer inofensivo estender o alcance do PNE 2014-2024 até 2028, como pretendem os Projetos de Lei 5.665, de 2023 [2] e 6.087/2023 [3]; ou até 2030, como sugere o Projeto de Lei 530/2024 [4]. Porém, independentemente do tamanho da dilação temporal, todas as propostas de prorrogação da vigência da Lei 13.005/2014 em tramitação no Congresso Nacional tendem a perdoar o descumprimento das metas e estratégias do PNE em curso, tanto quanto se destinam a suavizar a falta de aprovação do novo plano que deveria reger a política educacional brasileira no próximo decênio.

As contradições e tensões do frágil estágio de cumprimento do planejamento educacional no Brasil não se resumem à realidade da Lei 13.005/2014. Muito antes pelo contrário, trata-se de desafio histórico tirar o PNE do papel. A esse respeito, é paradigmática a justificação do Projeto de Lei n° 5.665/2023, de autoria da senadora Professora Dorinha Seabra (inteiro teor disponível aqui), cujos excertos de relevo seguem transcritos:

“A nossa experiência pós-Constituição de 1988 tem evidenciado certa displicência dos poderes públicos envolvidos com o macroplanejamento educacional do País, a se tomar como referencial o histórico de apresentação dos planos nacionais de educação mais recentes.

O PNE 2001-2011, originário do Projeto de Lei nº 4.155, de 1998, apresentado à Câmara dos Deputados em março daquele ano, acumulou, pelo menos, três anos de análise no Congresso Nacional, pois só veio a se transformar em lei em 9 de janeiro de 2001.

De igual modo, o atual PNE (2014-2024), que é originário do Projeto de Lei nº 8.035, de 2010, de autoria do Poder Executivo, embora não tenha tido uma discussão permanente e intensa durante sua tramitação no Parlamento, também enfrentou uma tramitação morosa, perfazendo cerca de três anos e meio.

À vista desse histórico, é de se imaginar, até por cautela, que a discussão do novo PNE não terá tratamento diferente. Ao contrário, com a polarização política na sociedade brasileira na última década, é possível que a análise desse novo instrumento padeça de uma postergação de consenso ainda maior do que a observada nos planejamentos anteriores.

Com efeito, é preciso que nos antecipemos no sentido de evitar um vácuo legislativo no planejamento educacional do País, por menor que seja duração. A essa altura um apagão no planejamento da área poderia gerar consequências irreversíveis, haja vista o atraso a que fomos submetidos em decorrência da pandemia da covid-19.

Não custa recordar, que os resultados do vácuo de 2011-2014 só não foram de maior gravidade porque a União já vinha implementando, no âmbito de alguns programas governamentais, uma série de medidas que viriam a integrar, como metas e estratégias, o PNE que se avizinhava.

Por essas razões, entre outras, é que propomos, por meio deste projeto, a prorrogação do atual PNE até 31 de dezembro de 2028, um lapso temporal de pouco mais de quatro anos. A nosso sentir, em razão da experiência acumulada, trata-se de prazo razoável para a apreciação aprofundada e circunstanciada da proposta que vier a ser apresentada ao Congresso Nacional para o macroplanejamento educacional do próximo decênio.

A favor dessa medida, infelizmente conta o fato de acumularmos metas do planejamento atual que remanescem por ser cumpridas. E são quase todas. Contudo, entre, as mais críticas, a nosso juízo, estão as que dizem respeito à garantia de oportunidade de vagas em creches, na educação profissional técnica de nível médio, à melhoria do índice de desenvolvimento dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio, crucial para a redução do analfabetismo funcional.

A propósito, é com imensa tristeza que constatamos uma redução tão lenta na taxa de analfabetismo do País, que nem conseguimos mais acreditar que o ciclo de reprodução dessa mazela tenha sido interrompido. Parece que o sistema continua apresentando falhas que precisamos enfrentar para evitar a reposição do contingente de analfabetos adultos nas próximas gerações.

Dessa forma, há muitas metas do atual PNE cuja oportunidade de realização ainda se mostra relevante, a ponto de, inevitavelmente, imaginar-se que constarão do futuro planejamento do País para a área. Com efeito, a prorrogação desse plano permitirá que mantenhamos algum foco na direção anteriormente traçada, com o mínimo de fundamentação e sustentação fática. Isso é crucial para a definição de prioridades e a otimização do investimento em educação, até que tenhamos redefinido esses rumos e objetivos para um próximo decênio, de limiar ainda incerto.”

O nome da rosa

Trata-se de grave impasse normativo o país ter um plano setorial tão nuclear como o educacional, cuja densificação cotidiana não se verifica, a despeito de haver considerável volume de recursos vinculados à manutenção e ao desenvolvimento do ensino. Para além dos limites impostos pela pandemia da Covid-19 e da anistia conferida pela Emenda 119/2022, o descumprimento da maioria das obrigações a termo fixadas no PNE guarda íntima relação com a baixa aderência das leis orçamentárias dos diversos entes da federação com o planejamento da educação. Ora, a esse respeito, não é demasiado lembrar o artigo 10 da Lei 13.005/2014:

“O plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios serão formulados de maneira a assegurar a consignação de dotações orçamentárias compatíveis com as diretrizes, metas e estratégias deste PNE e com os respectivos planos de educação, a fim de viabilizar sua plena execução.”

Parafraseando Umberto Eco, o nome da rosa reside na colossal contradição entre o elevado nível de inadimplemento das metas e estratégias do PNE, de um lado, e a existência de recursos vinculados à política pública educacional, notadamente o piso em manutenção e desenvolvimento do ensino e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), regulados, respectivamente, pelos artigos 212 e 212-A da Constituição de 1988, de outro lado.

Spacca

É inegável que o descumprimento do atual PNE constrange e delimita o espaço de debates do próximo PNE, que tende a ser adiado por mais alguns anos. Para aprender com os erros do plano vigente e formular um próximo plano educacional que seja amplamente executado e devidamente fiscalizado, todas as instâncias competentes de controle precisam chamar para si a responsabilidade de avaliar as razões pelas quais não se assegurou financiamento adequado ao cumprimento das metas e estratégias do PNE.

Orientações do TCU

Esse, aliás, foi o forte diagnóstico empreendido pelo Tribunal de Contas da União, em seu Acórdão 969/2024 – Plenário (disponível aqui), oriundo do Processo 014.911/2023-0, que foi relatado pelo ministro Vital do Rêgo.

No mencionado acórdão prolatado em 22/5/2024, foram noticiados os resultados do 6º Ciclo de Acompanhamento do PNE 2014-2024 feito pelo TCU, com a identificação de possibilidades de melhorias a serem adotadas na elaboração do PNE 2024-2034 e respectivas recomendações. No que concerne à relação entre os recursos vinculados à educação e o PNE, a que se refere o artigo 10 da Lei 13.005/2014, são significativas as orientações da Corte Federal de Contas sobre a necessidade de claramente distribuir as responsabilidades federativas pelo cumprimento das metas do Novo PNE, bem como a imperativa demanda de aprimoramento das fases de monitoramento e avaliação dos planos estaduais e municipais de educação:

“[…] 9.1.2. no processo de definição das metas do Novo Plano Nacional de Educação:

9.1.2.1. especifique a responsabilidade de cada ente no cumprimento de metas cuja responsabilidade pela execução possa ser atribuída a mais de um ente ou que possam suscitar dúvida quanto a tal ônus, de forma a respeitar as atribuições descritas na Constituição Federal/1988 e na Lei 9.394/1996 (LDB);

9.1.2.2. identifique os problemas a serem enfrentados por cada meta e evite a inserção de metas que tenham finalidades semelhantes;

9.1.2.3. elabore metas pautadas pela objetividade quanto aos conceitos e definições utilizados, sem deixar margem de dúvida quanto ao seu público-alvo;

[…]

9.1.4. no que se refere às fases de monitoramento e avaliação dos planos subnacionais:

9.1.4.1. estabeleça diretrizes mínimas para as competências das instâncias de monitoramento e avaliação dos planos subnacionais de educação no âmbito dos estados e municípios.

9.1.4.2. estabeleça uma padronização de conteúdo mínimo dos relatórios de monitoramento e de avaliação, com objetivos claros e distintos para ambas as fases, bem como um detalhamento dos procedimentos a serem seguidos; […]”

Dever de motivação

É na realidade cotidiana das prefeituras e governos estaduais que a maior parte das dificuldades no cumprimento do planejamento educacional se revela quase intransponível. Revela-se imprescindível, pois, que seja monitorado o contraste das despesas discricionárias computadas nos recursos vinculados à educação com o estágio e/ou risco de descumprimento das metas e estratégias do PNE em cada ente da federação, impondo sobre aquelas uma presunção relativa de irregularidade, somente passível de ser afastada por meio de motivação circunstanciada.

Desde a promulgação da Lei 13.005/2014, tenho defendido que as metas e estratégias do PNE perfazem obrigações legais de fazer que devem orientar substantivamente o conteúdo do dever de gasto mínimo em educação e a aplicação dos recursos do Fundeb (artigo 10 da Lei 13.005/2014). Como tal, não deveriam ser preteridas por despesas discricionárias alheias ao planejamento educacional.

Tal dever de motivação é necessário, para que seja possível evidenciar o custo de oportunidade da execução orçamentária educacional quando são realizados, por exemplo, gastos em subfunções alheias à atribuição municipal, como ensino médio e superior; aquisição de material apostilado, a despeito da gratuidade do Programa Nacional do Livro Didático; contratação de servidores comissionados e temporários computados na folha da educação, mas cedidos a outros entes políticos etc.

Inversão de prioridades

Insisto em denunciar que o núcleo do problema reside no desvio dos recursos educacionais para atender a finalidades outras que não aquelas identificadas como metas e estratégias do respectivo planejamento setorial, em afronta — reiteramos — ao artigo 10 da Lei 13.005/2014.

O alto nível de descumprimento do PNE decorre, em grande medida, do fato de que muitos gestores passam despesas discricionárias à frente das obrigações de fazer fixadas no correspondente planejamento setorial. Tal inversão de prioridades compromete não só o alcance do planejado, mas também fragiliza o debate acerca da qualidade do gasto público em educação.

É premente que seja imposto, de forma ampla e ostensiva, o dever de aderência do executado em face do planejado, salvo motivação que objetivamente circunstancie os eventuais desvios de rota. Essa, aliás, é a dimensão conceitual do §10 do artigo 165 da Constituição de 1988.

Não se trata de mera aferição contábil-matemática a análise acerca do dever de aplicação do piso em manutenção e desenvolvimento do ensino, bem como da aplicação dos recursos do Fundeb, previstos, respectivamente, nos artigos 212 e 2012-A da Constituição de 1988. Há obrigações substantivas definidas no planejamento educacional que orientam qualitativamente os rumos da execução orçamentária dos recursos vinculados ao setor, tal como expresso no artigo 10 da Lei do PNE.

Falta, porém, às instâncias competentes de controle e à sociedade promoverem a evidenciação da inversão de prioridades e impor o ônus agravado de motivação, para fins de correção das distorções alocativas que comprometem a política pública de educação na federação brasileira.

Eis o constrangimento que se abateu sobre o atual PNE e que também pode vir a comprometer a consistência e a tempestividade do debate em torno do PNE 2024/2034, quando quer que a construção desse novo plano venha a ser retomada, após a iminente prorrogação da Lei 13.005/2014.

 


[1] Aludido documento aprovado pela Conae deve orientar o Ministério da Educação na construção do projeto de lei a ser enviado pelo Chefe do Executivo federal ao Congresso, como se pode ler aqui  e aqui

[2] Que tramita no Senado e foi noticiado aqui https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/161231

[3] O qual tramita na Câmara dos Deputados, conforme se pode ler aqui e aqui

[4] Cuja tramitação tem ocorrido na Câmara

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2391039&filename=PL%20530/2024

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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