Opinião

Processo judicial eletrônico versus direito à intimidade

Autor

  • Arthur Felipe das Chagas Martins

    é advogado. Especialista em direito e processo do trabalho e direito acidentário. Mestrando em direito do trabalho pela PUC-SP. Professor em cursos jurídicos voltados ao direito do trabalho e correlações com o direito previdenciário.

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27 de maio de 2024, 16h22

Permissa venia aos ilustres colegas mais jovens: minha OAB é de agosto de 2008. Pode não parecer muito antiga, mas é de uma época em que celulares ainda não eram os espertofones que temos hoje em dia, muito da comunicação era feita de telefones fixos, o e-mail era a ferramenta favorita de comunicação online e a presença do advogado no escritório era ainda essencial.

Reprodução

Não foram poucas as vezes em que algum advogado do escritório precisou correr com a redação de uma peça processual para levar — ou, na maioria dos casos, para o estagiário levar — para protocolo no fórum até determinado horário. Papel impresso, duas vias assinadas, uma carimbada como “cópia” na frente da original, presas com um clipe de papel… e longas eram as filas no fórum João Mendes, em São Paulo, com o relógio travado às 18h59 para que todos conseguissem fazer seu protocolo.

Meu primeiro contato com um processo “eletrônico”, digamos assim, foi com o Sistema Integrado de Protocolização de Documentos Físicos e Eletrônicos (SisDoc), que existia no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (abrangendo São Paulo, região metropolitana e Baixada Santista).

Instituído em setembro de 2006 após o advento da Lei 11.419/2006 (que previu, pela primeira vez, o processo eletrônico no judiciário brasileiro), era uma solução elegante: consistia em um sistema acessível mediante usuário e senha, onde o advogado enviava um único PDF com sua petição e arquivos pela internet, o cartório recebia o arquivo, imprimia sua petição e a encartava ao processo em papel.

A mesma Lei 11.419, entretanto, trouxe outra importante previsão: a criação do Diário de Justiça Eletrônico, disponibilizado na internet, para publicação de atos judiciais e administrativos. Era o fim das fichinhas com recortes do diário oficial e o início da era dos sistemas leitores de publicações para auxiliar o operador do direito.

Mais de uma década depois, o cenário é outro. Combinando esforços de diversos órgãos do Judiciário, o Processo Judicial Eletrônico (PJe) é uma realidade. O advogado trabalha de qualquer lugar do mundo, faz audiências virtuais, despacha com Juízes e demais julgadores por videoconferência e junta suas petições em qualquer horário que preferir, desde que dentro do dia previsto para que determinado ato judicial seja praticado.

Em similar evolução, os sistemas leitores vão muito além. Em tempo de inteligências artificiais, reúnem-se não somente intimações judiciais, mas também decisões, dados de processos, nomes de autores e réus e todo tipo de informação. A previsão da publicidade de todo ato processual é uma garantia constitucional, presente no artigo 5º, LX, no artigo 37 e no artigo 93, IX da Carta Magna — este último transcrito abaixo:

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

(…)

IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

(…)

Note que, do texto acima, há uma exceção: casos onde seja necessária a preservação do direito à intimidade, sem que haja prejuízo à publicidade mencionada.

As hipóteses de preservação dessa intimidade — o dito segredo de justiça — estão expressas no artigo 189 do Código de Processo Civil. Além da menção a casos com dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade, há também outras previsões, como casos envolvendo Direito de Família, arbitragens ou em situações onde o interesse público ou social exija tal adoção.

Há, ainda no PJe, a possibilidade de adoção de “sigilo” a determinadas peças processuais. Contudo, a prática forense revela que os juízes somente autorizam tal procedimento no curso do processo quando o documento se enquadra nas hipóteses previstas no artigo 189 mencionado acima.

A garantia de publicidade às decisões judiciais é um reflexo do sistema processual adotado pelo Brasil. Reflexo da doutrina positivista, onde o julgador aplica a norma observando julgamentos anteriores — os chamados precedentes, que formam a jurisprudência —, a consulta a decisões proferidas em processos anteriores é uma ferramenta valiosa tanto ao julgador quanto ao advogado, que pode antever — ou ao menos mensurar os riscos — o resultado de uma possível demanda judicial.

Discussões

Tal possibilidade de consulta, entretanto, vem abrindo discussões em um outro cenário.

Você já tentou pesquisar o seu nome na internet? Usando aspas — e aqui considerando que você não tenha muitos homônimos —, note que ferramentas famosas de busca trazem tudo sobre você: redes sociais, fotos, resultados de vestibulares e concursos públicos, e… informações sobre ações judiciais.

Com um pouco de pesquisa, com um certificado digital ou talvez pelo pagamento de pequena taxa a portais famosíssimos no meio jurídico, você consegue fácil compilação de ações, dados processuais e até mesmo acesso aos documentos de um processo.

Spacca

Isso acontece porque o mesmo Diário de Justiça Eletrônico mencionado acima traz todas as informações em um formato pesquisável. Ele é público, a lei o instituiu assim. Ou seja: o cidadão que, nos dias de hoje, decide enfrentar a montanha-russa de uma ação judicial, não somente terá de conviver com a ansiedade de esperar o resultado da demanda — e isso pode levar muitos anos —, mas também terá de estar ciente de que seu nome será indexado por ferramentas de busca.

Muitas são as implicações para tal exposição. A divulgação de dados pessoais sensíveis é terminantemente proibida pela Lei 13.709/2018, a conhecida Lei Geral de Proteção de Dados, e qualquer processo judicial traz dados como nome, documentos, endereço e profissão. Não raramente, traz informações sobre remuneração e saúde, além de — claro — expor toda a relação que deu origem àquele processo.

Da mesma forma, não obstante os artigos 5º, X e 170, VIII da Constituição defendam a dignidade do trabalhador e a possibilidade da busca do pleno emprego, juntamente à proibição de anotações desabonadoras à conduta do empregado prevista no artigo 29, § 4º da Consolidação das Leis do Trabalho, a facilidade de pesquisar-se o nome de autores e réus abre portas à discriminação decorrente do fato de determinada pessoa ter se envolvido em uma demanda judicial.

Em outras palavras, torna-se possível a criação das infames listas discriminatórias, voltadas à divulgação de informações desabonadoras — outrora chamadas de listas negras, nunca assumidas, mas muitas vezes praticadas por empregadores e selecionadores.

Qual é a solução para isso? Ainda não há uma resposta. O conflito entre direito à intimidade e direito à publicidade não tem resposta fácil e demanda profunda reforma em nosso sistema judicial — especialmente o formato do mesmo.

Seria possível, por exemplo, adotar-se o cadastro já existente no Processo Judicial Eletrônico, onde cadastram-se os dados das partes, alterando-se o formato das petições apresentadas no processo para que deixassem de mencionar os nomes dos interessados? Seria uma hipótese onde os dados dos participantes em determinada ação seriam mantidos restritos, mas ao mesmo tempo seria possível ter acesso às decisões e andamentos de determinada ação. A este redator, naturalmente, não cabe tal alteração, mas unicamente a propositura de sugestões.

Seria, claro, necessária uma alteração cultural nos operadores de direito, que precisariam aprender a não mencionar nenhum dado pessoal em suas peças — sejam elas petições ou decisões —, mas haveria a anonimização prevista na LGPD, sem prejuízo da publicidade prevista na nossa Constituição.

Qualquer que seja a solução adotada, há uma consideração importante: a pessoa que busca a prestação jurisdicional, decidindo-se pela promoção de uma ação contra alguém, precisa ter muita consciência do que está fazendo. Inúmeras são as demandas vazias, com pedidos esdrúxulos e de improcedência mais do que provável, constatável somente com uma primeira leitura, que abarrotam os órgãos do Judiciário e geram custos a todos os envolvidos — e nessas demandas as pessoas não somente se expõem, mas igualmente expõem seus dados pessoais.

Talvez seja necessária uma reflexão mais profunda, mais consciente dos benefícios e consequências que decorrerão da propositura de uma ação. No cenário atual, se buscar o Judiciário implica em alguma possível exposição de dados, que esta exposição efetivamente ocorra em prol de um bem maior – e possível de ser alcançado.

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