Opinião

Mulher que obteve quociente eleitoral com votos próprios pode ser cassada por fraude de outra?

Autores

  • William Akerman

    é defensor público do estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ) assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) membro do Grupo de Trabalho sobre Reconhecimento de Pessoas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) professor da Escola Superior de Advocacia Nacional e ex-procurador do estado do Paraná (PGE-PR).

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  • Priscila Machado Akerman

    é advogada com atuação nos tribunais superiores. Especialista em direito público.

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27 de maio de 2024, 13h18

São cada vez mais comuns ações de investigação judicial eleitoral (Aije) e ações de impugnação de mandato eletivo (Aime) formalizadas tendo como causa de pedir fraude, perpetrada por meio da apresentação de candidaturas femininas fictícias, à cota de gênero estabelecida em 30% pelo artigo 10, §3°, da Lei das Eleições.

Fernando Frazão/Agência Brasil

Em texto publicado no último dia 14 de maio, aqui mesmo nesta ConJur, intitulado “Mulheres eleitas podem ser cassadas por fraude à cota de gênero?” abordamos a tormentosa questão, que ainda merece melhor delineamento pela jurisprudência, relativa à (im)possibilidade de se impor ao argumento da verificação de candidaturas fictícias, vinculadas ao mesmo demonstrativo de regularidade de atos partidários (Drap), a cassação de mandatos de mulheres eleitas, sem qualquer participação na fraude.

A partir da distinção entre o que consubstancia sanção, tendo como núcleo normativo o artigo 22, inciso XIV, da LC nº 64/1990, e o que constitui efeito do reconhecimento da fraude — equiparada ao indeferimento tardio [1] do Drap —, sustentamos que, quando houver entre os eleitos 30% ou mais de mulheres, não se pode admitir, como efeito, a invalidação do Drap, a anulação dos votos e a cassação dos mandatos, sob pena de se atuar na contramão da política de incentivo à efetiva participação política da mulher.

E o Tribunal Superior Eleitoral se reencontrará com a matéria, oportunidade na qual poderá lançar novo e mais adequado olhar sobre o tema.

Outra situação ainda a ser apreciada, mas que nos parece dotada de simplicidade maior, é aquela na qual se tem uma mulher eleita, com tantos votos quantos os necessários para o atingimento do quociente eleitoral e registrada por meio de Drap que contenha também candidatura fictícia, caracterizadora de fraude à cota legal de 30%.

Em outros termos, o que se pretende examinar é se uma mulher que tenha obtido, considerando-se apenas os votos próprios, o quociente eleitoral, pode ser cassada por fraude à cota de gênero perpetrada por outrem.

Vale rememorar, como fizemos alhures, que, sobre o tema, o TSE construiu, nos últimos anos, rigorosa jurisprudência quanto aos casos de registro de mulheres como candidatas apenas para cumprir formalmente a cota de 30%, sem que realizassem, de fato, campanha.

Spacca

Em outros termos, embora lançadas como candidatas pelos partidos, algumas mulheres, em verdade, não participam de forma efetiva do pleito, tampouco têm chances de êxito, o que contribui para a manutenção do quadro histórico de sub-representação feminina.

Candidaturas fictícias

O paradigma a partir do qual se edificou a compreensão do tribunal foi o REsp nº 193-92/PI, ministro Jorge Mussi, DJe de 4 de outubro de 2019, relativo a Valença do Piauí.

Desde então, o TSE, a partir de circunstâncias objetivas, notadamente votação zerada ou ínfima, ausência de prova efetiva de atos de campanha e prestações de contas sem dispêndio de recursos ou padronizadas, tem considerado como fictícias diversas candidaturas femininas.

A corte, em casos assim, impõe a anulação de todo o demonstrativo de regularidade de atos partidários (Drap) e, consequentemente, de todos os registros de candidaturas vinculados ao respectivo demonstrativo, bem como a anulação de todos os votos recebidos pelos respectivos candidatos, além da cassação dos mandatos outorgados. E, em se tratando de Aije, a inelegibilidade de todos os envolvidos na formalização das candidaturas fictícias.

Na hipótese sob exame nessas linhas, a mulher eleita não é — como nem poderia ser — a candidata fraudulenta, já que realizou, de fato, campanha, conseguindo, inclusive, se eleger com votação substancial. Foi, como se costuma dizer, uma “puxadora de votos” da agremiação na localidade.

Mas, para além de não ser a candidata fictícia, não contribuiu para a formalização das candidaturas artificiais.

Esse contexto denota que a candidata não está, de forma alguma, sujeita à sanção prevista no 22, inciso XIV, da LC n. 64/1990:

Art. 22.

[…]

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar;

Até aqui não há qualquer dúvida. A candidata não pode ser punida por fraude à cota para a qual não contribuiu.

Vaga com votos próprios

Resta, então, saber se, por estar vinculada a um Drap que, diante da fraude, não (mais) observa a proporção legal mínima de 70/30 considerados os gêneros, pode perder o mandato que conquistou, anote-se, apenas com votos próprios.

Como é consabido, não sendo observados os 30% de candidaturas por gênero, ou seja, quando o número de candidaturas fictícias acaba revelando que a cota mínima não foi atendida, tem-se, com a procedência da Aije ou da Aime, a invalidação de todo o Drap, a anulação dos votos dados àquela agremiação, nas eleições proporcionais, e a cassação dos registros e dos mandatos de todos os respectivos candidatos.

A lógica para essas rigorosas consequências é a de que o reconhecimento da fraude à cota de gênero deve atrair o mesmo tratamento que, por ocasião do registro, se daria em caso de indeferimento do Drap ante a inobservância da cota mínima de 30% de candidaturas femininas.

Todavia, não se pode deixar de observar que a candidata eleita, que, por si só, atingiu ou superou o número de votos necessários para a conquista de uma cadeira nas eleições proporcionais, não se beneficiou, em qualquer medida, da atuação partidária ou de outros candidatos integrantes do Drap.

Se a candidata, por si mesma, conquistou tantos votos que seria eleita ainda que não houvesse outros candidatos na legenda e, frise-se, de modo algum participou do lançamento da candidatura tida como fictícia pela Justiça Eleitoral, não há razão para se cassar o mandato da eleita.

Contraria a própria razoabilidade e boa lógica jurídica se cogitar de cassar o mandato de mulher que reúna votação suficiente para, por si só, conquistar uma cadeira, a pretexto de conferir efetividade a comando normativo voltado à inclusão da mulher na política.

Ainda que o Drap seja invalidado, com a nulificação dos votos dos demais candidatos, ao menos os votos conferidos legitimamente a essa candidata merecem ser preservados, os quais já são suficientes para a conservação do mandato.

Note-se que a violação à cota de 30% revela que houve candidaturas masculinas que não poderiam ter sido formalizadas, porquanto houve candidatos homens além da proporção legal.

Se não se consegue determinar quais homens não estariam na lista daquela agremiação, caso a proporção fosse ajustada, não é possível ter como válidos os votos obtidos pelas candidaturas masculinas.

Isso, porém, não se aplica aos votos dados às candidaturas femininas e, portanto, especialmente nessa situação, de atingimento do quociente eleitoral, devem ser preservados.

 


[1] REsp nº 193-92/PI, ministro Jorge Mussi, DJe de 4 de outubro de 2019.

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