Opinião

Determinação das vítimas diferencia estelionato do crime contra a economia popular

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27 de maio de 2024, 11h17

O Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do julgamento dos autos de Habeas Corpus nº 464.608/PE, traçou uma linha divisória clara entre os crimes de estelionato (artigo 171 do Código Penal) e de ganhos fraudulentos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas, corriqueiramente conhecido por “pirâmide financeira” (artigo 2º, IX, da Lei nº 1.521/1951), qual seja, se o cometimento do crime ocorreu contra vítimas determinadas ou indeterminadas.

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Ao caso, o relator, ministro Nefi Cordeiro, concedeu a ordem de Habeas Corpus para corrigir a adequação dos fatos imputados ao paciente, que foi denunciado pela suposta prática do delito previsto no artigo 171, do Código Penal, para o crime do artigo 2º, IX, da Lei nº 1.521/51, com as consequências processuais e materiais decorrentes disso, uma vez que o processamento e julgamento do delito de “pirâmide financeira” é de competência absoluta do Juizado Especial Criminal em razão da matéria, já que a pena máxima a ele abstratamente cominada é de dois anos.

“Art. 1º. Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes e as contravenções contra a economia popular, Esta Lei regulará o seu julgamento.

Art. 2º. São crimes desta natureza:

[…]

 IX – obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos (“bola de neve”, “cadeias”, “pichardismo” e quaisquer outros equivalentes); […]

Pena – detenção, de 2 (dois) anos a 10 (dez) anos, e multa, de vinte mil a cem mil cruzeiros.”

Captação genérica

A concessão da ordem ocorreu justamente em razão de que a captação de clientes vitimados se dava de maneira genérica, escapando da caracterização do tipo penal do estelionato, que exige vítimas específicas. Isso ocorre porque no estelionato o bem jurídico protegido é o patrimônio das vítimas, específicas e individualizadas, o que pode ser claramente percebido a partir da leitura do tipo penal em comento:

“Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa.”

Já no que concerne aos crimes previstos na Lei nº 1.521/51, o bem jurídico protegido é a economia popular e a estabilidade do mercado, ou seja, a ordem econômica e o patrimônio coletivo. Especificamente quanto ao delito previsto na redação do artigo 2º, IX, a captação genérica de bens e valores em face de um indeterminado número de pessoas é o elemento central do tipo, tal como depreende-se do uso do vocábulo “povo” e da expressão “número indeterminado de pessoas”:

“IX – obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos (‘bola de neve’, ‘cadeias’, ‘pichardismo’ e quaisquer outros equivalentes); […]”

Ademais, o ministro Nefi Cordeiro destacou que identificar algumas vítimas não transforma o crime do artigo 2º, IX, da Lei nº 1.521/51 no crime do artigo 171 do Código Penal, visto que a identificação de algumas vítimas não afasta a captação genérica de atingidos. Tampouco seria hipótese de configuração de crimes independentes, afastando o concurso formal, continuado ou material. E assim o STJ já se manifestou em outros casos:

“O crime do art. 2º, IX, da Lei 1.521/51 (crime contra a economia popular) se assemelha muito com o estelionato, previsto no art. 171 do Código Penal. A diferença, contudo, está na objetividade jurídica. Nos crimes da Lei 1.521/51, o bem jurídico é o patrimônio do povo ou de um número indeterminado de pessoas (protege a economia popular). No estelionato, o bem jurídico envolve o patrimônio de uma ou algumas pessoas determinadas. Assim, embora em ambos os crimes exista o meio fraudulento, no crime contra a economia popular tem-se a captação criminosa do dinheiro de todos (número indeterminado de vítimas), enquanto no estelionato se verifica o direcionamento da conduta a vítimas específicas. O fato de terem sido identificadas algumas vítimas não significa que não tenha havido a captação genérica de atingidos. Logo, trata-se de crime contra a economia popular. O caso é, portanto, de aplicação da regra da especialidade (o crime do art. 2º, IX, da Lei nº 1.521/51 é especial em relação ao estelionato), não sendo hipótese de crimes independentes, em concurso formal, continuado ou material” (STJ. 6ª Turma. RHC 132.655-RS, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 28/9/2021)

Portanto, a análise minuciosa dos elementos de cada delito, com especial atenção à identificação das vítimas, é essencial para evitar incoerências e ilegalidades, notadamente a que aconteceu com o paciente do HC 464.608/PE e que foi corrigida pelo STJ: o constrangimento ilegal de ser processado por um juízo incompetente, com a tipificação inadequada e em um procedimento onde podem ser aplicadas penas mais severas do que as que seriam possíveis caso a tipificação estivesse correta.

Anacronia

Spacca

Não se aprofundando sobre a questão das pirâmides financeiras — sob pena de fugir do tema ora tratado e de prejudicar a concisão exigida neste momento — temos o dever de citar brevemente que existem várias discussões acerca da possível anacronia do crime previsto na redação do artigo 2º, IX, da Lei nº 1.521/51 em face do dinamismo das relações econômicas na Era da Informação e do surgimento das novas tecnologias, notadamente os ativos digitais, que não raramente estão sendo explorados em empreitadas criminosas.

Nesse sentido, existem diversos projetos de lei (por exemplo, nº 4.233/2019 [1], 2.512/2021 [2], 3.706/2021 [3]) que têm o objetivo de criar um tipo penal específico de “pirâmide financeira”, ou, ainda, de “intermediacão ou negociação de criptoativos com o objetivo de praticar crimes”, revogando, portanto, o inciso IX do artigo 2º da Lei nº 1.521/51, cuja sanção, há de convir, foi estabelecida em patamares de menor potencial ofensivo, sujeito ao rito dos Juizados Especiais.

 


[1] https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7984951&ts=1565183003496&disposition=inline

[2] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2047419

[3] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/150410#:~:text=Projeto%20de%20Lei%20n%C2%B0%203706%2C%20de%202021&text=Acrescenta%20os%20arts.,o%20objetivo%20de%20praticar%20crimes.

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