Opinião

Condições contratuais: dolo, malícia e implementação ficta segundo o STJ

Autores

  • Daniel Becker

    é sócio do BBL Advogados diretor de novas tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA) membro das Comissões de Assuntos Legislativos e 5G da OAB-RJ e organizador dos livros O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind O fim dos advogados? Estudos em homenagem ao professor Richard Susskind vol. 2Regulação 4.0 vol. I e II e Litigation 4.0.

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  • Gabriela Lotufo

    é sócia da área de resolução de disputas do BBL Advogados.

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  • Lais Marini

    é advogada da área de Resolução de Disputas no BBL - Becker Bruzzi Lameirão Advogados pós-graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Escola Superior de Advocacia (ESA-Campinas).

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27 de maio de 2024, 15h20

Recentemente, a 3ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça), ao julgar o Recurso Especial nº 2.117.094/SP, analisou a necessidade de comprovação de dolo específico para a implementação ficta da condição. A discussão está centrada no artigo 129 do Código Civil [1], que estipula que a condição é considerada cumprida quando o seu implemento é maliciosamente obstado pela parte por este desfavorecida.

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

É um tema relevante porque é recorrente, especialmente em litígios envolvendo contratos complexos, tais como operações de fusões e aquisições (M&A), nas quais frequentemente são estabelecidas cláusulas que condicionam um pagamento adicional ao vendedor, caso alguns gatilhos sejam atingidos, como, por exemplo, um determinado faturamento, após a implementação de um plano de negócios acordado entre as partes.

Considerando a complexidade das relações e os elevados montantes envolvidos, essas disputas geralmente são submetidas à arbitragem. Por essa razão, os julgamentos públicos sobre o tema não são tantos, de modo que o novo entendimento proferido pelo STJ merece ainda mais destaque.

No caso analisado pelo STJ, as partes celebraram contrato, por meio do qual houve a cessão de quotas representativas de 75% do capital social da sociedade da parte recorrida. Restou estipulado que a aquisição de 75% das quotas sociais da referida empresa seria efetuada mediante (1) um pagamento à vista, no valor de R$ 7,5 milhões, e (2) um pagamento complementar de R$ 1,5 milhão, que seria pago no caso de cumprimento, em três anos, do plano de negócios (business plan). Dito de outra forma, este segundo pagamento estava condicionado aos resultados futuros do negócio.

Termo ‘maliciosamente’

Todavia, segundo a narrativa apresentada no processo, no decorrer dos três anos previstos contratualmente, o acervo científico empresa foi substancialmente desviado para uma outra empresa, o que, segundo o vendedor, recorrido no caso concreto, acabou por frustrar maliciosamente a execução e os resultados do plano de negócios no prazo contratual, afastando o direito de recebimento do valor adicional.

Diante deste cenário, incumbia ao STJ avaliar se o termo “maliciosamente” utilizado no artigo 129 do CC, que trata da implementação ficta da condição, implica a necessidade de comprovação de conduta dolosa específica para impedir o cumprimento da condição prevista contratualmente ou não.

Spacca

O STJ deveria analisar se, mesmo que o resultado pretendido pela empresa não fosse impedir o recebimento do valor de R$ 1,5 milhão pelo vendedor das quotas sociais da outra empresa, a sua conduta intencional, ao adotar medidas que impediram o cumprimento do plano de negócios, seria suficiente para ensejar a aplicação do artigo 129 do CC, considerando-se adimplida a condição.

Visão da doutrina

Sobre este ponto, o posicionamento da doutrina não é uníssono. Existem aqueles que entendem que, ao empregar a expressão “maliciosamente”, o legislador deixou claro que somente será possível a aplicação ficta da condição no caso de condutas omissivas ou comissivas eivadas de intencionalidade, de dolo específico. Este é o posicionamento adotado por Fabiano Menke [2]. No entanto, não nos parece que esse seja o posicionamento mais acertado sobre o que pretendeu o legislador, na medida em que o dolo exige um standard probatório de grau elevado, dificultando que se alcance a solução prevista no artigo 129, do CC.

Nos parece que o posicionamento mais acertado é o de Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva, no sentido de que “no que tange ao termo ‘maliciosamente’ empregado pelo legislador, não se exige a configuração de dolo pela parte que obsta o advento da condição ou a implementa[3].

Essa corrente da doutrina leva em consideração o princípio da boa-fé objetiva, que é um dos pilares fundamentais das relações contratuais e determina que as partes atuem de maneira leal, honesta e colaborativa durante todas as fases da execução do contrato, respeitando as expectativas razoáveis umas das outras. Nesse contexto de dever de colaboração recíproca das partes contratantes, a malícia apta a ensejar o implemento da condição ficta independeria de uma atuação dolosa ou intencional da parte, mas, sim, de culpa.

Como bem explica Osny da Silva Filho, esse tem sido o posicionamento de boa parte da doutrina:

“O emprego da ficção de verificação não se limita, como o advérbio maliciosamente pode sugerir, a casos de dolo. A regra tem sido interpretada no sentido de englobar também condutas culposas ou contrárias à boa-fé objetiva. Essa interpretação é facilitada pela conjugação da cláusula condicional com determinações contratuais de melhores esforços ou best efforts, ou ainda, como se tem preferido, “esforços razoáveis” (conforme exemplo apresentado na Introdução). Nesses casos, a vicissitude da condição é caracterizada por qualquer conduta culposa. Na “essência” dessa cláusula está, afinal, a previsão de diligência, cuja falta caracteriza culpa. Para dizer de outro modo: cláusulas de melhores esforços têm o condão de qualificar a malícia prevista no artigo 129 do Código Civil, ampliando o escopo de sua aplicação” [4].

Conclusão

O entendimento adotado pelo STJ, no julgamento do REsp nº 2.117.094/SP, seguiu justamente essa linha. Segundo a Corte Superior, a implementação da condição dependia tão somente da comprovação de que as condutas atribuídas à empresa compradora impediram, de fato, o alcance da condição contratualmente estabelecida, não importando quais eram os seus objetivos, se para evitar o pagamento do valor complementar ou para outra finalidade qualquer.

Isso significa que, de acordo com o entendimento do STJ, reputa-se verificada a condição, ainda que não exista um dolo específico do interessado, sendo necessária, apenas, a comprovação da prática intencional dos fatos que deram ensejo à não implementação da condição, ou à implementação, na hipótese inversa.

O posicionamento do STJ em relação à implementação ficta da condição estabelece um marco crucial para desdobramentos judiciais em litígios contratuais semelhantes, fornecendo uma base sólida para a aplicação coerente do artigo 129 do CC. Tal entendimento não apenas reforça o princípio da boa-fé objetiva, mas também oferece parâmetros mais bem definidos para verificação da aplicabilidade do artigo 129, do CC, em casos concretos.

 


[1] Art. 129. Reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer, considerando-se, ao contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele a quem aproveita o seu implemento.

[2] MENKE, Fabiano. Comentários ao código civil [livro eletrônico]: direito privado contemporâneo, coordenação Giovanni Ettore Nanni, 1. ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, RL-2.20

[3] Notas sobre a condição no negócio jurídico. In: Revista de direito civil contemporâneo, v. 5, n. 16, págs. 61-83, jul./set. 2018.

[4] Osny da Silva Filho e Sergio Lima Dias Junior, Condições precedentes: atipicidade e disciplina jurídica, in Francisco Paulo De Crescenzo Marino, Marcelo Vieira von Adamek e Osny da Silva Filho (org.), Cláusulas contratuais, São Paulo: Almedina, 2024 [no prelo].

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