Público & Pragmático

PL 2.159/21: mudanças climáticas, irresponsabilidade e abuso do poder de legislar

Autor

  • Laura Mendes Amando de Barros

    é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris. Ex-controladora geral do Município de São Paulo. Professora do Insper.

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26 de maio de 2024, 8h00

O PL 2.159/21 visa disciplinar o licenciamento ambiental de atividade ou empreendimento utilizador de recursos ambientais, e traz diversos dispositivos que, para além de potencialmente comprometerem a fiscalização e o controle, reflexamente promovem o desmonte do sistema de proteção ambiental e prevenção a danos nessa seara.

Nesse sentido, causa preocupação a criação da denominada “licença ambiental por adesão e compromisso” (LAC), em que a autorização para o exercício da atividade/empreendimento depende unicamente de uma declaração do empreendedor quanto à adesão e atendimento aos requisitos exigíveis.

Em área tão sensível como o meio ambiente, informada pelos princípios da prevenção, vedação ao retrocesso e dever de progressividade, não se pode conceber tal inversão lógica no processo fiscalizatório, com transferência integral da competência para análise do efetivo atendimento dos requisitos e enquadramento legal ao particular, notadamente interessado no resultado de tal avaliação (e que busca fundamentalmente o lucro daí advindo).

Situação similar advém do disposto no artigo 7, §4º do PL, que traz a prorrogação automática da licença, sem qualquer análise estatal, a partir de declaração do interessado em formulário padronizado.

Causa inquietação, ainda, a possibilidade de estabelecimento de parâmetros distintos para o potencial poluidor de atividades/empreendimentos relacionados a atividades idênticas pelos diversos entes federativos, a quem o artigo 3º, XXXV outorga competência para equacionamento da questão.

Da mesma forma, a definição das atividades sujeitas ao licenciamento, deferida à soberana análise dos entes subnacionais.

Tal estratégia tem como resultado a potencial criação de uma verdadeira ‘guerra ambiental’, na medida em que pode funcionar como estímulo para criação de parâmetros atrativos, capazes de trazer o maior número de empreendedores possível, e assim promover impactos imediatos positivos econômica e socialmente — independentemente de eventuais consequências ambientais nefastas a médio/longo prazo.

Carregado de incoerência o artigo 13, §6º, que torna possível, decorridos tão somente 30 dias da concessão da licença, sua revisão com vistas a readequar, suspender, rever ou cancelar condicionantes – em clara sinalização de que a análise levada a efeito pela Administração é desprovida de sustentação, certeza e segurança.

A tal pedido, registre-se, pode-se outorgar discricionariamente efeito suspensivo, de modo a fazer letra morta todas as condicionantes originalmente impostas, ao menos até decisão definitiva.

Patente também a outorga de excessiva discricionariedade à autoridade licenciadora, que pode dispensar o EIA/Rima (artigo 19) e alterar prazos do processo de licenciamento (artigo 43, §1º).

Quanto às estratégias de participação e controle social, o artigo 3º, VIII possibilita a tomada de subsídios técnicos junto a especialistas previamente à tomada de decisões.

A crítica está no fato de poderem ser ouvidas exclusivamente pessoas convidadas, sem abertura de espaço para experts que queiram voluntariamente contribuir. Cria-se, assim, risco de análises e conclusões enviesadas, com potencial afastamento justamente de evidências científicas objetivas e imparciais.

Posicionamento do STF: proibição ao retrocesso e dever de progressividade em matéria ambiental

O Supremo já teve oportunidade de examinar os limites da liberdade do Legislador e das escolhas políticas em geral — as quais devem manter coerência com os valores orientadores do Estado brasileiro, as prioridades constitucionalmente colocadas e os compromissos internacionalmente assumidos pelo país.

Conforme assentado na ADPF 708/DF, julgada em agosto de 2022 sob a relatoria do ministro Barroso, há um “dever constitucional, supralegal e legal da União e dos representantes eleitos, de proteger o meio ambiente e de combater as mudanças climáticas. A questão, portanto, tem natureza jurídica vinculante, não se tratando de livre escolha política.”

Na ocasião, questionava-se a deliberada falta de direcionamento de recursos, pelo Executivo, nos anos de 2019 e 2020, ao Fundo Clima, até que o respectivo comitê gestor tivesse a sua composição alterada.

Reconheceu-se, então, a vinculação específica e necessária de tais valores, sob pena de ofensa à Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), e de sua obrigatória disponibilização, como decorrência lógica do dever constitucional da tutela do meio ambiente (artigo 225 da CF).

Mais que isso: restou assentada a inconstitucionalidade da omissão por violação aos compromissos internacionais assumidos pelo país, contrariamente aos quais não é dado legislar, tendo em vista integrarem o ordenamento pátrio, nos termos do artigo 5º, §2º da CF.

E o contexto ambiental (em situação gravemente desprestigiada no país) “guarda estrita relação de dependência com o núcleo essencial de múltiplos direitos fundamentais”, conforme assinalado no acórdão.

Evidenciou-se, ainda, inadmissível redução da participação e captura da sociedade por meio de ingerências — inconstitucionais, conforme assentado nas ADIs 6.121, 622 e 623, com fundamento da teoria do constitucionalismo abusivo — nos conselhos.

Outro precedente digno de registro é a ADI 4.717/DF, em face da MP 558/12 (convertida na Lei 12.678/12), que alterou espaços territoriais especialmente protegidos, com diminuição da preservação dos ecossistemas respectivos, em ofensa ao núcleo essencial ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, CF).

Parte das áreas “liberadas” da proteção já contavam com hidrelétricas construídas, de modo evidentemente irreversível.

Foi julgada parcialmente procedente em 2018 sob relatoria da Min. Carmen Lúcia, com base no princípio da proibição do retrocesso socioambiental, o qual “decorre diretamente do princípio da proibição de retrocesso social, o qual, segundo Canotilho, impede que o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado por medidas legislativas seja simplesmente aniquilado por medidas estatais.” [1]

Sob esse mesmo argumento foi julgada a ADI 5.016/BA, em que assentada igualmente a impossibilidade de “qualquer supressão ou limitação de direitos fundamentais já adquiridos. Tal garantia se coaduna com os princípios da dignidade da pessoa humana e da segurança jurídica, estabelecendo um dever de progressividade em matérias sociais, econômicas, culturais e ambientais.” [2]

Conclusões

Gustavo Mansur/ Palácio Piratini
Enchentes no Rio Grande do Sul, Porto Alegre alagada em maio de 2024

O prognóstico não é alvissareiro: estudos do Observatório do Clima [3] indicam a existência de ao menos vinte e cinco PLs e três PECs capazes de comprometer irreversivelmente a situação ambiental brasileira, tornando-nos um palco cada vez mais propício a tragédias tais como a observada no Rio Grande do Sul.

A legitimidade democrática de que investido o Legislador não lhe dá plena licença para criar normas como melhor lhes aprouver.

Por mais que o fato cause estranheza em alguns, este ainda é um Estado estruturado com base em normas, valores e princípios vinculantes de absolutamente todos, arquitetos de políticas públicas ou não.

Não se pode compactuar com atividade pública — seja ela normativa ou executiva — incompatível com os valores e diretrizes encampados pelo ordenamento jurídico, tanto interna quanto externamente.

A situação se torna ainda mais estruturante quando se fala em vedação do retrocesso e dever de progressividade em matéria ambiental — das quais depende a nossa própria subsistência no planeta.

Caberá ao Judiciário garantir que tais premissas sejam efetivamente observadas.

Caberá, ainda, e de modo igualmente imprescindível, a toda a sociedade estar atenta, e veementemente rechaçar políticas e estratégias capazes de comprometer a sua dignidade e, em última análise, a própria vida.

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[1] Excerto do voto da relatora.

[2] Voto do relator, ministro Alexandre de Moraes.

[3] Coalizão de organizações da sociedade civil brasileira estruturada em 2001 com vistas a discutir as mudanças climáticas.

Autores

  • é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris. Ex-controladora geral do Município de São Paulo. Professora do Insper.

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