Embargos Culturais

Frankenstein, o Prometeu moderno, de Mary Shelley

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26 de maio de 2024, 8h00

Em “A Letra da Lei”, de Linda Colley, um imbatível estudo de história constitucional, a autora sugere inusitada relação entre “Frankenstein, o Prometeu Moderno”, de Mary Shelley (1797-1851) e as guerras napoleônicas, especialmente com o próprio Napoleão Bonaparte. De acordo com Linda Colley, em relação ao livro de Mary Shelley, “Napoleão, de modo claro, serve de inspiração para o monstro da história, uma criatura antinatural, cada vez mais violenta”.

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No limite, a relação de Napoleão com o mito de Prometeu, segundo a autora, um mito comum na época; o monstro criado, no entanto, prossegue Colley, desencadeia uma violência que não desaparece com sua morte. É o grande desafio de nossa luta pelo domínio da vida.

Mary Shelley, autora de “Frankenstein”, um livro até hoje assustador, era filha de Mary Wollstonecraft (conhecidíssima como feminista) e de William Godwin (reputado filósofo, que escrevia também sobre temas de política, revelando-se como cético e anarquista). Foi educada em um meio culto e requintado. Casou-se em 1816 com Percy Shelley, poeta inglês, amigo de Byron. Shelley e Byron representam a primeira linha do romantismo inglês. Mary Shelley enfrentou várias tragédias pessoais, a exemplo da morte prematura de alguns de seus filhos, a par da morte do esposo, em um acidente de barco.

Frankenstein” é um livro de juventude. Foi publicado quando Mary Shelley contava vinte anos de idade. Ao que consta, o livro fora concebido na Suíça, em um ano rigorosamente frio, com recorrentes tempestades, circunstância climática que parece dar pano de fundo ao romance.

A partir da sugestão de Linda Colley, e para os efeitos do selo “Direito e literatura” a obra de Marry Shelley, “Frankenstein”, sugere uma série de reflexões, problemas e dilemas. Comecemos pelo enredo.

Trata-se da história de Victor Frankenstein (suíço), que a exemplo de Prometeu (e de algum modo de Fausto também) pretendia, a todo custo, o domínio da ciência e da explicação da vida. Na medida em que suturou partes de vários corpos desenterrados em um corpo único, deu vida à criatura, igualando-se, nesse sentido, ao próprio Criador. No entanto, o criador espantou-se com a criatura, que nem nome terá. Frankenstein horrorizou-se, rejeitando aquela figura grotesca. Tem-se um caso típico do criador que abdica da criatura.

Esta última, abandonada, recorrentemente tenta contato humano. Desespera-se com a rejeição que sofria, como resultado de sua assustadora aparência. Afastada de todos, lia o tempo todo, observava. A criatura busca o criador, de quem pede companhia para sua solidão insuportável, precisa de uma mulher que o acompanhasse. Insistia que iria para bem longe.

Ainda que inicialmente propenso a atender a criatura, Frankenstein atemoriza-se com fato de que os monstros poderiam reproduzir, e que deles resultaria um novo e horripilante ser. Ante a recusa do criador, segue a vingança da criatura, até o limite. Ao fim, tem-se uma construção hoje qualificada como freudiana (no contexto do complexo de Édipo), dada a reação da criatura ante a morte do criador.

O livro sugere, antes de tudo, um problema fundamental de ordem ética. Em que extensão Victor Frankenstein pode ser responsabilizado pelo ser que criou? A questão, colocada em nosso tempo presente, pode apontar para dificuldades práticas de engenharia genética ou do uso de inteligência artificial. Por outro lado, o leitor é provocado a questionar se a criatura também contaria com direitos, ainda que artificialmente criada. De modo mais simples, a criatura seria protegida pelo sistema jurídico concebido para proteger seres humanos?

Frankenstein” nos remete também a um tema explorado por Michel Foucault, e que se refere à ideia de “biopolítica”, isto é, o modo como somos governados mediante o controle de nossos próprios corpos. A criatura, na obra de Mary Shelley, não dispõe sobre si mesma, não é autônoma, é o resultado de um insuspeito controle biológico. Acrescenta-se a esse dilema uma discussão relativa ao poder humano de interferir nas leis naturais, cuja criação da vida é provavelmente a mais emblemática de todas.

Uma análise (ainda que superficial) em torno da personagem principal, o Dr. Frankenstein, sugere também reflexão em torno da responsabilidade do pesquisador, especialmente quanto ao resultado e ao controle de sua produção tecnológica. A criatura saiu da órbita de controle do criador. Até onde pode-se responsabilizar esse último pelas ações da criatura? Tem-se um problema central nas discussões de bioética, assunto provavelmente desconhecido na época de Mary Shelley.

O desafio de “Frankenstein” consiste, assim, principalmente, ao menos para o leitor contemporâneo, na exploração das relações entre ciência e ética, entre conhecimento e responsabilidade. A obsessão de Victor Frankenstein, no sentido de criar vida, um desafio que nos remete a Prometeu (e por isso a segunda parte do título do livro) é desfeita quando toma conta da criatura que engendrou. O desprezo, e a vingança que seguem, atemorizam o cientista. Constata-se uma profunda negligência para com um problema moral, que se traduzirá em forma de nêmesis do criador.

Com algum esforço, ainda que a relação entre “Frankenstein” e Napoleão não seja explícita, não se pode negar que ambos eram ambiciosos; um deles quis criar a vida, o outro deles, uma nova ordem política. Ambos enfrentaram os limites de suas épocas, e ambas conduziram suas vidas (e no caso de Napoleão, todo um continente) para desastres sem precedentes. Ambos tentaram enfrentar a natureza (Napoleão tentando atingir Moscou em pleno inverno, Frankenstein criando um novo ser). Ambos podem simbolizar os perigos do radicalismo e da revolução.

Uma análise de “Frankenstein” sugere uma leitura a partir de dois pontos de vista (que são óbvios): o da criatura e a do criador. O criador é ambicioso, pretende superar a morte, a criatura é rejeitada e abandonada; a vingança é o resultado, e a culpa pela vingança é o ato final de desespero.

Criador e criatura aproximam-se em um ponto: são solitários. O ambiente frio que sustenta topologicamente a narrativa contempla metaforicamente o isolamento, que é causa e consequência da frieza das relações humanas.

Natureza e criação se encontram nessa obra prima da literatura universal, repleta de problemas morais, tecnológicos e existenciais. É um livro sobre a criação, e ao mesmo tempo, sobre a rejeição.

A tese de Linda Colley, que aproxima Frankenstein de Napoleão é desafiadora, resumindo-se na parte segunda do título do livro: o Prometeu moderno. Na mitologia grega, Prometeu nos sugere a força humana para melhorar nossas condições de vida. Não se sabe, ao certo, se esse objetivo era compartilhado pela personagem por Napoleão e pelo fictício Frankenstein. Ambos, no entanto, pavimentaram a catástrofe com suas ambições desmedidas.

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