Diário de Classe

Como a 'antropofagia' pode salvar o Direito brasileiro de importações acríticas?

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  • Letícia de Mello

    é mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) especialista em Direito e em Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP) especializanda em Direito Penal Económico pelo Instituto de Direito Penal Económico Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (IDPEE) em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) professora advogada e associada à The European Law Students Association (Elsa) e ao Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE) ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e à Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

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  • Matheus Alves da Rocha

26 de maio de 2024, 8h00

Numa breve digressão histórica, remonta ao próprio desenvolvimento do contexto jurídico brasileiro a importação de institutos jurídicos alienígenas. Deve-se recordar que a independência do Brasil, da coroa portuguesa, deu-se somente em 1822, não se olvidando que a República foi instaurada em 1889.

Nesse ínterim, duas Constituições, a monárquica, de 1824, outorgada por D. Pedro I, com a importação do instituto do poder moderador, e a republicana, promulgada em 1891, com forte influência do ordenamento jurídico norte-americano, incorporada sobretudo a partir da teorização de Rui Barbosa, foram percussoras na apropriação de institutos jurídicos externos — o que se deu, naquele momento, devido ao baixo desenvolvimento de um sistema educacional pátrio[1].

O próprio ensino jurídico brasileiro foi forjado em terras lusitanas, pois no período que antecedeu a criação das primeiras faculdades de Direito no Brasil, o que ocorreu somente no ano de 1827, os alunos eram alçados ao mar para receberem o letramento jurídico em Portugal, precisamente em Coimbra, ou em outros locais da Europa, como Espanha, Itália e França[2].

Historicamente, a cultura jurídica brasileira conviveu com a influência estrangeira. Seja a norte-americana ou a europeia[3].

Outros movimentos ideológico-políticos também exerceram influência no Brasil, como o fascismo polonês, que foi uma inspiração direta para Francisco Luís da Silva Campos, que redigiu a Constituição polaca, em 1937, e o autoritarismo italiano, este que “inspirou” diretamente o Código de Processo Penal brasileiro, de 1941, que trouxe consigo uma forte carga ideológica do regime fascista de Mussolini.

Entretanto, os tempos são outros. A Constituição de 1988 alterou sensivelmente o modo como antigos dilemas jurídicos devem ser solucionados. Porém, nem mesmo o cariz “revolucionário” do atual texto, que rompeu com inúmeros paradigmas anteriores, foi capaz de barrar a teorização distorcida, em terrae brasillis, de institutos estrangeiros.

Em recente coluna publicada aqui neste Diário de Classe, o colega Vinícius Quarelli falou sobre as “Teorias de ocasião”[4] — ou teorias usadas de forma instrumentalizada — denunciadas pelo professor Lenio Luiz Streck. Existem, pelo menos, cinco recepções equivocadas que foram incorporadas acriticamente ao ordenamento jurídico pátrio e que são responsáveis por inúmeras distorções, tornando-se decisivas para o surgimento do ativismo judicial e o resgate da filosofia da consciência: “A jurisprudência dos valores; A ponderação Alexyana; Ativismo norte-americano; Neoconstitucionalismo; e os métodos interpretativos de Savigny”[5].

  1. Jurisprudência dos valores e a ponderação de Robert Alexy.

Os dois primeiros casos apontados por Lenio Luiz Streck estão relacionados de forma mais direta. A Jurisprudência dos valores, de origem alemã, em que o Tribunal Constitucional daquele país procurou justificar decisões baseadas em valores morais, muitas vezes sem qualquer referência à legislação. Essa teoria buscava legitimar uma técnica decisória que privilegiava uma busca pelos valores constitucionais, de forma a fugir de uma interpretação apenas formalista do texto.

Uma Constituição como a brasileira, com uma forte carga principiológica, serviu de fundamento para esse tipo de técnica que permite juízes “ponderarem valores” e escolhessem qual deles iria prevalecer em cada caso concreto.

Nesse contexto é que se insere a ponderação de Robert Alexy e sua errônea interpretação para o caso brasileiro.

A leitura feita por Robert Alexy em relação aos tribunais brasileiros é a de que por meio de uma ponderação, uma balança de importância, será possível que o magistrado decida qual princípio irá prevalecer em determinado caso concreto.

O Ministro Luís Roberto Barroso foi um dos principais defensores desta corrente que, na prática, apenas possibilita uma discricionariedade judicial no sopesamento de princípios. É importante destacarmos que, além desta utilização acrítica da teoria alexyana no Brasil, passamos por um fenômeno de pamprincipiologismo como também alerta a crítica hermenêutica do Direito, pois modernamente qualquer coisa é considerada como princípio jurídico, mesmo sem qualquer referência constitucional, como por exemplo: princípio da efetividade, princípio da verdade real, princípio da confiança.

  1. Ativismo norte-americano

A terceira teoria recepcionada de forma errônea é a o que muitos têm chamado de ativismo judicial. É um conceito que teve bastante discussão nos Estados Unidos, quando se pensou nos limites decisórios do Poder Judiciário estadunidense. A tradição de matriz anglo-saxã guarda distinções profundas da tradição jurídica brasileira, ao privilegiar uma cultura de precedentes judiciais fundadas no commom law.

É possível identificar um ativismo judicial quando o magistrado quer se substituir ao legislador ordinário ou, até mesmo, ao legislador constituinte. Por vezes, sob argumentos de cunho valorativo ou através de interpretações que extrapolem o texto legal, decide-se contra a própria lei. Qual é, portanto, o limite da lei? É legítimo que uma corte queira decidir diferente à norma, mesmo sem argumentos constitucionais que embasem sua decisão?

Um exemplo marcante trazido por Lenio Luiz Streck cita a Reclamação 4.335/AC, em que o Supremo Tribunal Federal foi contra o que texto da Constituição exigia. Para a suspensão de lei considerada inconstitucional em controle difuso, a intervenção do Senado Federal era essencial. Mas parte dos ministros votou diferente sob o argumento de uma mutação constitucional. Dessa forma, tem-se a grande polêmica do art. 52, X, da Constituição Federal[6].

Outros casos podem ser citados, como o Caso das uniões homoafetivas na ADPF 132. Também no HC 126.292, em que foi rediscutida a presunção de inocência em casos de execução da pena após condenações pela segunda instância. Exemplos não faltam de decisões que extrapolam a legislação ou mesmo a Constituição Federal, utilizando argumentos de cunho moral ou político o que rendeu a criação de seis hipóteses norteadores, onde o juiz pode decidir contrariamente à lei[7].

  1. Os métodos interpretativos de Savigny

Outra má recepção brasileira de teoria estrangeira é em relação aos métodos de interpretação defendidos por Savigny. O autor alemão é a maior expressão da Escola Histórica do Direito. Como o próprio nome denuncia, esses autores identificavam o Direito como fruto de uma tradição histórica imaterial, representada como um espírito do povo alemão. Direito não seria, necessariamente, igual à lei. Trata-se de uma teoria que também busca uma crítica ao formalismo francês.

A divisão em métodos gramatical, lógico, sistemático e histórico era defendida como uma teoria que buscava estudar o Direito como um acontecimento histórico, não para uma análise hermenêutica de textos legais. A finalidade era outra, daquela que muitos juristas ainda defendem para o Direito brasileiro. A Escola Histórica buscou romper com o jusnaturalismo, mas não chega a se identificar com o positivismo jurídico e, por isso, a difusão de tal teoria no Brasil, sobretudo dos famigerados métodos interpretativos aplicados corriqueiramente pelo Supremo Tribunal Federal, como no julgamento do RHC nº 163.334, demonstra os equivocos gerados pelo acriticismo doutrinário que ainda impera no Brasil.

  1. Neoconstitucionalismo

Trata-se de um conceito complexo para ser bem explorado em poucas linhas. O neoconstitucionalismo representou uma virada na percepção da Constituição, em que se deixou de observá-la apenas com um viés liberal, mas passou-se a perceber o texto constitucional como um promovedor de mudanças sociais materialmente efetivas. Teve início em países como Espanha e Itália, mas também teve forte influência no contexto alemão. Buscou-se uma superação do textualismo interpretativo dos tribunais, por meio da ideia de que o texto constitucional carregava um traço principiológico que deveria ser utilizado. Os horrores da Segunda Guerra mundial contribuíram decisivamente para essa mudança de perspectiva.

Isso gerou, como dito acima, distorções na doutrina e tribunais brasileiros. A teoria dos princípios de autores como Ronald Dworkin e Robert Alexy foram incorporadas ao Direito brasileiro de forma acrítica e, quase, sem nenhuma adaptação. Os juízes começam a proferir decisões de nítido viés discricionário, utilizando a ponderação de valores para responder casos judiciais controversos sem perspectivas concretas.   Apesar da vontade de ruptura com o formalismo exegético e com o positivismo jurídico (que não representam a mesma coisa), o neoconstitucionalismo brasileiro apenas limitou-se a reproduzir os cânones hermenêuticos destas teorias às quais buscava ultrapassar. Não fugiram da discricionariedade judicial, acabou reinando o ativismo e a ponderação sem quaisquer limites.

  1. Mas como a “antropofagia” pode salvar o direito brasileiro de importações acríticas?

Como referido nas linhas anteriores, a própria história do Direito brasileiro revela a dependência que o país teve, em sua origem, da doutrina estrangeira. Contudo, o Brasil, na atual quadra histórica, reúne todas as condições necessárias para autonomizar o seu pensamento e se emancipar das doutrinas europeia e estadunidense. Não se trata de defender um encerramento ideológico, mas, por outro lado, de propor a autonomia do pensamento jurídico brasileiro, pois em países de modernidade tardia, a importação acrítica de inúmeras teorias causa distorções sem precedentes — como foi o caso da importação de teorias neoliberais ao tempo em que o Brasil recém havia consagrado em seu texto constitucional os direitos fundamentais de segunda dimensão, o que distorceu, por exemplo, o sistema tributário nacional, culminando na “neotributação” à brasileira[8].

Assim, não se defende um isolamento da construção teórica, mas sim a adequação crítica de doutrinas estrangeiras ao contexto brasileiro, é que surge a provocação do título que nomeia este texto: como a antropofagia pode salvar o Direito brasileiro?

Acerca do termo “antropofagia”, ele é empregado por Lenio Luiz Streck e faz referência à importação acrítica de teorias jurídicas alienígenas, sem que elas sejam descontruídas ou, em outras palavras, adequadas aos paradigmas próprios de países de modernidade tardia, como é o caso do Brasil. Luísa Giuliani Bernsts[9], em artigo recentemente publicado, expõe brilhantemente a utilização do termo “antropofagia” pelo professor Lenio.

Uma origem remota do emprego deste termo se deu a partir do Movimento Antropofágico, na década de 20 do século passado. Rememore-se que a antropofagia cultural foi um movimento idealizado por Oswald de Andrade que, em 1928, publicou o seu Manifesto Antropofágico e, nele, explicou o emprego do termo ao movimento artístico que foi um marco na história da arte brasileira.

A isso nomeia-se “Movimento Antropofágico”. Desconstruir para construir algo que esteja adequado às peculiaridades do Brasil, abandonando-se, consequentemente, a mera importação, por vezes acrítica, de institutos ou influxos europeus ou de outras nacionalidades.

É dizer: isso não está restrito ao Direito, mas, trazido ao universo jurídico, oferece um contributo para que se compreenda que o Brasil tem um ordenamento jurídico e uma historicidade próprios e as teorias não devem ser incorporadas por “subsunção”, mas devem, antes, ser adequadas aos paradigmas nacionais — sobretudo as teorias de matriz norte americana, como é o caso do realismo jurídico, que foram gestadas em outro contexto histórico-político e em um sistema jurídico da família common law.

[1] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.

[2] MARCOS. Rui de Figueiredo; MATHIAS, Carlos Fernando; NORONHA, Ibsen. História do Direito Luso-brasileiro. Coimbra: Almedina, 2024.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.

[4] QUARELLI, Vinicius. Teorias de ocasião e o crepúsculo dos deuses. Consultor Jurídico, 4 de maio de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mai-04/teorias-de-ocasiao-e-o-crepusculo-dos-deuses/. Acesso em 21 de maio de 2024.

[5] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. São Paulo: Saraiva, 2017.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.

[7] Para uma análise acerca das seis hipóteses, conferir: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: Cinquenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2020.

[8] Para uma análise crítica mais aprofundada, conferir a crítica do autor Marciano Buffon, que demonstra, em sua tese doutoral, posteriormente publicada, como os discursos neoliberais, acriticamente importados ao Brasil, transformaram o direito tributário num sistema altamente regressivo e que, devido à forte carga ideológica que o passou a nortear, pode ser nominado de “neotributação”. E qual foi a consequência? Não outra senão o agravamento dos altos índices de desigualdades sociais. BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade da pessoa humana: entre os direitos e os deveres fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

[9] BERNSTS, L.G. O ofício do professor e sua repercussão no modo-de-ser antropofágico da crítica hermenêutica do direito. In: Um tributo a hermenêutica jurídica e(m) crise, de Lenio Streck: 25 anos depois / André Karam Trindade. Lenio Luiz Streck (Org.); prefácio Ernildo Stein. – 1.ed. – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023.

Autores

  • é mestranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), especialista em Direito e Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP), especializanda em Direito Penal Económico pelo Instituto de Direito Penal Económico Europeu (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), especializanda em Direito e Processo Tributário pela FMP, graduada em Direito pela Unisinos, com período de mobilidade acadêmica na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, professora convidada no programa de pós-graduação em Direito da Faccat e advogada criminalista.

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