Opinião

O potencial fracasso da reforma face ao gargalo do lançamento tributário

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21 de maio de 2024, 18h28

O lançamento tributário brasileiro está ultrapassado. O sistema de homologação tácita das declarações de compensação ou pagamentos com prazos de cinco a 10 anos, na prática, para o “acertamento” tributário é antiquado, ultrapassado e contraproducente. Não foi enfrentado na reforma e pelo que se consta nem está na ordem do dia.

Trata-se de inesgotável fonte de litigiosidade infelizmente não enfrentada.

E o perigo maior é que quando há incerteza social, o princípio da legalidade e da segurança jurídica não respondem adequadamente aos anseios mais prementes da população.

Nas chamadas sociedades de riscos (conforme Ulrick Beck [1], Ricardo Lobo Torres [2], Sergio André Rocha [3], e este autor [4]), com o perdão da redundância, se está permanentemente exposto a fatores de riscos graves e/ou extremos.

Essa é uma realidade da qual não poderemos mais nos afastar.

Arrecadação e calamidades

Repare-se o que se passou nos últimos dois anos: enfrentamos uma pandemia e, agora, infelizmente o país se vê às voltas com uma enchente sem precedentes, de proporções catastróficas no sul do país, que vergonhosamente ainda se somam à seca, à miséria e à fome. Em pleno século 21. Quão mais dramático poderia ser?

Vê-se, portanto, que a tributação, na atual quadra, ganha contornos cada vez mais relevantes, uma vez que apenas pela via da arrecadação que o governo central tem condições de enfrentar essas mazelas urgentes.

Assim, ganha em relevância a existência de recursos disponíveis para o enfrentamento dessas calamidades, para além das despesas ordinárias, tais como saúde, educação, segurança pública etc.

Spacca

A previsão de fundos específicos já vem sendo adotada, todavia, ainda, com muita parcimônia, por pouquíssimos municípios (vide Curitiba). Poucos são aqueles que em suas leis orçamentárias há previsão específica de verbas para responder aos desastres naturais, mesmo que a realidade nos demonstre uma necessidade totalmente em sentido contrário, a exemplo do Rio Grande do Sul.

A atividade estatal arrecadatória que obviamente já é fundamental, se mostra, portanto, cada vez mais importante.

O gargalo do lançamento tributário

Todavia, o sistema nacional do lançamento tributário é totalmente contraproducente e, pior, é fomentador de uma irracional litigiosidade.

De nada serve a reforma tributária sobre o consumo, sobre a renda e mesmo do processo tributário, se a estrutura atual do lançamento for mantida, sem qualquer ajuste, alteração ou modernização. Imperioso o seu aperfeiçoamento, visando um “acertamento” (Aurélio Pitanga Seixas Filho [5]) mais contemporâneo e forjado na busca pela consensualidade ou, no limite, pela fuga da conflitividade e, já na largada, almejando-se assim a sua definitividade como meta, como mote, como mantra.

É preciso dotar a tarefa “privatizada” do autolançamento, realizada pelos contribuintes, não apenas como ponto de partida para um acertamento célere, mas sobretudo como etapa inicial e fundamental desse ato-complexo do lançamento tributário, de modo a acomodar ainda mais e facilitar a atuação fiscalizadora da administração tributária (AT), em essência, num formato mais harmonizado, e naturalmente trilhado, na busca pela consensualidade.

Ou seja, premente a necessidade de uma manifestação oficial da AT, em no máximo seis meses, sob pena de decair do seu direito de alterar o valor declarado e já recolhido pelo contribuinte.

Havendo discordância da AT, ficaria ela obrigada a declinar o valor devido conforme um ato-lançamento corretivo no prazo máximo de até 180 dias, permitido ao contribuinte concordar com esse lançamento corretivo, mediante o pagamento de 85% do valor (desconto de 15% pela adesão voluntária em 15 dias), para ver assim vedada, em absoluto, a revisão do lançamento originário, aquele feito via ato-declaração do próprio contribuinte que foi objeto de recolhimento espontâneo no mesmo valor do declarado.

Busca da consensualidade

Em suma, fica exclusivamente a cargo do contribuinte dar sequência (ou não) ao processo de impugnação e/ou de revisão do lançamento.

Em suma, um modelo que preza pela definitividade e pela consensualidade, tal qual o modelo alemão.

O ato-lançamento corretivo e sua eventual impugnação não são apreciados por pares e sim por um superior hierárquico da autoridade lançadora, que precisa, igualmente, para permitir a sua revisão, estar devidamente fundamentado, motivado, como ato administrativo que é, por essência.

Esse modelo de lançamento, como se nota, presa pela busca da consensualidade, desde a origem, que prega, assim, pela adoção de um método concentrado, ser um sistema avesso à litigiosidade, por relegar a faculdade do início do contencioso, não mais exclusivamente ao Fisco e em prazo de até 5 anos, mas sim ao contribuinte, e no prazo máximo de seis meses e 15 dias, que, portanto, é quem avaliará o custo benefício de inaugurar um contencioso, via processo de revisão vis-a-vis a necessidade de um recolhimento suplementar de 85% do valor assinalado pelo Fisco.

Trata-se de uma mudança substancial que certamente dotará o sistema tributário nacional de um mecanismo à prova de contencioso, que busca sobretudo a confluência de entendimentos, já que quanto mais eficientes e mais concordes, mais rápido o contribuinte se verá definitivamente elidido de obrigações tributárias e mais rápido o Fisco verá satisfeita a obrigação tributária que entende correta (ainda que com 15% de desconto), e de maneira praticamente integral, mas sobretudo célere.

Incentivos comportamentais

Como dito, a tributação e a arrecadação precisam ser fomentadas, mas não a qualquer custo.

Nada melhor do que dotar a norma tributária de incentivos comportamentais (‘nudge’, conforme Richard H. Thaler e Cass R. Sunstein [6]).

Sob a perspectiva de um contencioso de massa, forçar a tributação em massa sem inteligência é redundância ou burrice, e nada melhor do que ‘Nudges’ na forma do ‘accertamento’.

Mediante a aplicação da Teoria da Dinâmica dos Consensos [7] dota-se o sistema de verdadeira simplicidade e conformidade, e o que é melhor, via adesão natural, sistêmica.

Alcança-se assim um novo paradigma, a altura da reforma em andamento.

Esse novo sistema de lançamento tributário, identificado com o modelo alemão [8], se mostra um sistema convergente, donde o acertamento conclui-se em no máximo seis meses. O ideal é que seja quase simultâneo e com o decorrer dos anos, os detalhes analisados por inteligência artificial nas declarações dos contribuintes dotará de eficiência a AT.

Portanto, tal sistema que se inicia no “ato-declaração do contribuinte”, ganhará eficiência com o “ato revisão corretiva” do Fisco, dotando aquela declaração inicial de peso e força sistêmica, diferentemente do que se tem atualmente.

Um lançamento, portanto, bipartite e praticamente consensual, com metodologia fácil e prática.

A realidade alemã revela uma baixa litigiosidade, mormente pela escolha do contribuinte quanto ao custo-benefício de evitar uma revisão integral do lançamento comparativamente ao valor rapidamente declarado pelo Fisco quando existente e evidente erro do lançamento e recolhimento.

A previsão de impugnações que se somam ou se submetem a pagamento do incontroverso e com possibilidade de concessões recíprocas para evitar-se a deflagração de um contencioso longo e penoso, terá – como já o tem – efeitos imediatos na mudança de realidade, mas sobretudo na mudança de paradigmas.

 


[1] “Sociedade de Risco”, 1986 ou “A reinvenção da política: rumo a uma Teoria da modernização reflexiva”, 1997.

[2] “Legalidade Tributária e Riscos Sociais”, 2000.

[3] “A tributação na sociedade de Risco”, 2010.

[4] “O princípio da praticidade na era da tributação em massa”, Ed. Appris, 2021.

[5] “O Lançamento Tributário e a Decadência”, 2005.

[6]Nudge”, 2009.

[7] Artigo no prelo.

[8] Ver “O Princípio da Praticidade na era da tributação em massa”, pag. 27-34;

Autores

  • é advogado tributarista, especialista em Direito Tributário pela UFF, membro do Instituto Brasileiro de Arbitragem e Transação Tributárias (Ibatt) e sócio de Brechbühler Advogados.

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