Opinião

Catástrofe climática: medidas alternativas e retorno ao direito emergencial do trabalho

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21 de maio de 2024, 20h57

Com a catástrofe climática que atinge o Rio Grande do Sul, neste triste mês de maio de 2024, muito tem se falado da responsabilidade ambiental de todos os agentes políticos e sociais. A pauta da sustentabilidade, efetivamente, e da pior forma possível, chegou aos olhos de um país acostumado ao negacionismo climático. Por certo, a maioria das pessoas atingidas, direta ou indiretamente, por este evento político-ambiental, pertence à classe trabalhadora.

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Muitas empresas, neste momento, encontram-se impossibilitadas de seguirem com suas atividades, seja pela falta de insumos ou até mesmo pela completa falta de acesso aos locais de trabalho por alagamentos em suas sedes, assim como pelo desalojamento de muitos de seus empregados.

Parece-nos o momento em que se resgata o que, em períodos pandêmicos, cunhou-se denominar de direito emergencial do trabalho, como nos ensinaram os magistrados gaúchos Rodrigo Trindade e César Pritsch, em obra dedicada ao estudo do tema.

O direito emergencial do trabalho nasce como um nanossistema [1], denso e inconfundível, organizado a partir de um conjunto organizado de regras encadeadas a partir de balizadores próprios, que edificam uma unidade sistêmica dentro do direito do trabalho. Este direito emergencial do trabalho será aquele necessário para o resguardo de empresas, empregos, dignidade laboral e vidas.

Pois bem, em 5 de maio foi publicada a Portaria 1.379, do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, que reconheceu, sumariamente, o estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul. Com esta portaria, efetivamente, é possível partir para a aplicação das medidas trabalhistas alternativas previstas pela Lei nº 14.437, de 2022.

Empregadores e empregados e, especialmente, sindicatos de ambas as representações devem concentrar esforços para garantir a viabilidade das atividades que sejam possíveis, firmando, quando conveniente, acordos coletivos específicos que forneçam segurança jurídica para a adoção de tais medidas, ainda que muitas delas possam ser negociadas individualmente entre empregados e empregadores.

Não se trata de um momento de barganhas ou obtenção de vantagens econômicas por quaisquer das partes envolvidas, mas sim de garantir o enfrentamento das consequências sociais e econômicas de estado de calamidade pública, tendo como norte o valor social do trabalho e a preservação da renda.

Neste sentido, inúmeras medidas poderão ser adotadas, com o permissivo legal:

  1. o empregador poderá alterar o regime de trabalho presencial para teletrabalho ou trabalho remoto, além de determinar o retorno ao regime de trabalho presencial, independentemente da existência de acordos individuais ou coletivos, dispensado o registro prévio da alteração no contrato individual de trabalho;
  2. antecipar férias individuais dos empregados, com antecedência de, no mínimo, 48 horas, por escrito ou por meio eletrônico, com a indicação do período a ser gozado pelo empregado;
  3. conceder férias coletivas a todos os empregados ou a setores da empresa, notificando o conjunto de empregados afetados, por escrito ou por meio eletrônico, com antecedência de, no mínimo, 48 horas;
  4. antecipar o gozo de feriados federais, estaduais, distritais e municipais, incluídos os religiosos, e deverão notificar, por escrito ou por meio eletrônico, o conjunto de empregados beneficiados, com antecedência de, no mínimo, 48 horas, com a indicação expressa dos feriados aproveitados;
  5. interromper as atividades e constituir regime especial de compensação de jornada, por meio de banco de horas, em favor do empregador ou do empregado, estabelecido por meio de acordo individual ou coletivo escrito, para a compensação no prazo de até dezoito meses;
  6. suspender os recolhimentos do FGTS de até quatro competências, relativos aos estabelecimentos dos empregadores situados em municípios alcançados por estado de calamidade pública reconhecido pelo Poder Executivo.

Calamidade pública

É bem verdade que, no Rio Grande do Sul, o Decreto nº 57.596 declarou o estado de calamidade pública no território do Rio Grande do Sul, desde 1º de maio de 2024, pelo período de 180 dias. A Portaria nº 729, de 15 de maio de 2024, autorizou a suspensão da exigibilidade dos recolhimentos do FGTS para os empregadores situados em municípios alcançados por estado de calamidade pública, reconhecido pelo Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional.

Neste sentido, os recolhimentos das competências de abril a julho de 2024 poderão ser efetuados em até quatro parcelas, a partir de outubro de 2024, sempre na data prevista para os recolhimentos comuns do FGTS. [2].

Paralelamente a essas medidas, o Ministério Público do Trabalho da 4ª Região editou a Recomendação nº 02, de 2024, estabelecendo várias diretrizes para tal enfrentamento. Dentre as medidas sugeridas, estão:

  1. de os empregadores absterem-se de adotar medida de suspensão temporária do contrato de trabalho, compreendida essa como a cessação temporária da prestação de serviços e da obrigação de pagamento dos salários, salvo como parte integrante de Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, na hipótese de instituição pelo governo federal, na forma da Lei 14.437/2022, de modo a garantir a existência de contrapartidas aos trabalhadores;
  2. garantir que as ausências ao trabalho devidamente justificadas pela exposição direta a alagamentos, enchentes e outras situações de força maior ocasionadas pela calamidade pública não ocasionem perdas salariais aos trabalhadores expostos, de modo que sejam devidamente abonadas;
  3. estabelecer política de flexibilidade de jornada, observados o princípio da irredutibilidade salarial e a manutenção do emprego, na ocasião em que serviços de transporte, creches, escolas, dentre outros, não estiverem em funcionamento regular, quando tais situações impactarem a prestação de serviços e houver impossibilidade de dispensar o trabalhador do comparecimento ao local de serviços;
  4. adotar política de gestão clara para a situação emergencial, sobretudo quanto aos casos de impossibilidade justificada de comparecimento ao trabalho,
  5. a comunicação aos interessados, com vistas a prevenir a ocorrência de violências e assédio moral aos trabalhadores atingidos, direta ou indiretamente, pela catástrofe ambiental, de modo que não sejam duplamente vitimados, contribuindo para a segurança e bem-estar dos empregados e a higidez do ambiente de trabalho.

Tratam-se de escolhas que buscam garantir a eficácia dos princípios constitucionais do valor social do trabalho (artigo 1º, IV, 170, caput, e 193 da CRFB/88), da continuidade da relação de emprego (artigo 7º, I, da CRFB/88) e da “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (artigo 7ª, XX, da CRFB/88), dando azo ao próprio objetivo de “preservação do emprego e da renda”, declarado no artigo 1º, da Lei Federal nº 14.437, de 2022, dada a ocorrência da típica força maior, compreendida como o acontecimento inevitável em relação à vontade do empregador que afete substancialmente sua situação econômica e financeira.

Destarte, todos os atores sociais e integrantes das relações de trabalho são conclamados a uma direção guiada pelo bom senso, solidariedade e apoio mútuo, os quais são fundamentais para a redução do impacto social e econômico.

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Em tempos de emergência, como crises econômicas, pandemias ou desastres naturais, a negociação coletiva desempenha um papel crucial na busca por soluções equitativas e eficazes, para além do que já se encontra previsto na lei. Ao reunir os interesses e necessidades de um grupo, ela permite a criação de medidas que beneficiem a todos os envolvidos, sejam trabalhadores, empregadores ou comunidades. Através do diálogo e da colaboração, é possível encontrar alternativas que minimizem os impactos negativos e maximizem os recursos disponíveis.

Além disso, a negociação coletiva promove a solidariedade e a coesão social, fortalecendo os laços entre os membros da comunidade e construindo um ambiente de confiança mútua, dada a segurança jurídica que aportam aos documentos decorrentes destes ajustes. Em realidade, a importância da negociação coletiva transcende os momentos de crise, contribuindo para a construção de sociedades mais justas e resilientes.

Cenários de catástrofes exigem pronta resposta para reequilíbrios relacionais o que, no caso das relações de emprego, deve observar o contido na expressão “flexisegurança”. Ou seja, devem conter a flexibilidade necessária para o momento, sem abrir mão da segurança inerente aos regramentos trabalhistas que tomam por suposta a hipossuficiência do trabalhador.

É por este motivo que a matriz contida na Lei nº 14.437/2022 segue sendo observável em momentos de calamidade (das mais diversas e impensadas) e que a atuação dos entes sindicais se torna ainda mais relevante, pois, abrir mão de standards elementares à operação do direito do trabalho em situações caóticas (tais como o valor social do trabalho, a livre iniciativa e a dignidade da pessoa humana) seria contribuir ainda mais para a não superação destes ciclos de crise.

 


[1] TRINDADE, Rodrigo. PRITSCH, Cesar. Direito Emergencial do Trabalho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p.20

[2] Importante ressaltar, neste particular, que o Decreto 12.016, de 2024 já estabeleceu que na hipótese da situação de calamidade pública reconhecida pelo Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional em Municípios do Estado do Rio Grande do Sul, no mês de maio de 2024, estaria dispensado o intervalo mínimo estabelecido no caput do art. 4º do Decreto nº 5.113, de 2004, que é de doze meses, para novo saque do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS.

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