Direito Civil Atual

No atual modelo da responsabilidade civil, imputabilidade não é elemento da culpa

Autor

  • Daniel Amaral Carnaúba

    é professor adjunto da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) doutor em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo) mestre em Direito Privado pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

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20 de maio de 2024, 15h15

A culpa, condição da responsabilidade civil, é tradicionalmente decomposta em dois elementos. Em primeiro lugar, um elemento objeto; o desvio de conduta. Age com culpa o indivíduo que não se comporta de acordo os padrões de cuidado que se lhe impunham naquela determinada situação; ou seja, o indivíduo que viola uma norma objetiva de conduta. Essas normas de comportamento podem ter origens das mais distintas. Elas incluem evidentemente a lei, nas situações em que prevê deveres de conduta — como, v.g., deveres de trânsito previstos no CTB. Mas as normas de conduta podem decorrer também das cláusulas de um contrato, dos costumes, da boa-fé, da jurisprudência…

O elemento objetivo expressa o cerne do conceito de culpa. Ela nada mais é do que o desvalor jurídico de um determinado comportamento humano.

Esse elemento da culpa é acoplado a um segundo, desta vez de natureza subjetiva: a imputabilidade da pessoa cuja conduta se analisa. Por imputabilidade, entende-se a capacidade intelectual do indivíduo de compreender as consequências de seus atos e de se determinar de acordo com esse entendimento. Daí porque, historicamente, considera-se que as pessoas que ainda não atingiram a maioridade legal — crianças e adolescentes —, bem como os indivíduos que tenham deficiências intelectuais mais graves, não são tecnicamente capazes de cometer atos culposos.

Diferentemente do primeiro, o critério subjetivo da culpa traduz um juízo de reprovação moral da conduta, e está fortemente ligado à concepção punitiva da responsabilidade civil. Se o dever de reparar é uma sanção aplicada àquele que se comportou de forma repreensível, não seria justo punir indivíduos que, por fatores psíquicos ou biológicos, não são capazes de controlar seus próprios impulsos. Por mais que tenham desrespeitado normas objetivas de conduta, crianças e pessoas com deficiência mental passam ao largo da reprovação moral, de tal sorte sua conduta não pode ser considerada culposa.

Ocorre, contudo, que um dos principais vetores da evolução da responsabilidade civil foi seu progressivo afastamento dos juízos morais. O exemplo mais emblemático desse fenômeno é o avanço das hipóteses de responsabilidade objetiva, nas quais o indivíduo é chamado a responder ainda que não tenha cometido qualquer desvio de conduta.

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Mas essa evolução também se reflete com a transformação do próprio conceito de culpa, em especial, com o abandono da imputabilidade como seu elemento constitutivo. É o que ocorreu na França, primeiramente com a reforma das incapacidades de 1968, que expressamente previu que a deficiência mental não isenta o indivíduo do dever de reparar o dano que causou [1]. E, depois, por impulso da Corte de Cassação que, desde 1984, passou a admitir que os menores de idade podem agir com culpa [2].

A legislação brasileira é testemunha dessa mudança no conceito de culpa. O modelo de responsabilidade instituído pelo Código Civil de 2002 pressupõe que menores e pessoa com deficiência são aptos a cometer atos culposos; que a imputabilidade não é mais um elemento da culpa. Para compreender melhor essa afirmação, é preciso, antes, analisar a evolução de nosso sistema de responsabilidade desde o Código de 1916.

O Código de 1916 e a irresponsabilidade do inimputável

No Código de 1916, a relação entre imputabilidade e responsabilidade civil era regulada no artigo 156 daquele diploma, o qual estabelecia que “o menor, entre dezesseis e vinte e um anos, equipara-se ao maior quanto às obrigações resultantes de atos ilícitos, em que for culpado”.

Em uma primeira vista, esse dispositivo parece tratar de um tema mais restrito do que a questão da imputabilidade, pois menciona apenas o menor, e não o inimputável de uma forma geral. A importância do artigo 156, contudo, não estava no que ele dizia, mas naquilo que ele pressupunha: ao afirmar que o menor de idade se equiparava ao maior, o texto evidenciava que a regra geral então vigente era que os inimputáveis não seriam responsáveis pelos danos que causassem.

De fato, só possível entender a necessidade do legislador de prever uma norma de responsabilidade civil que, em caráter excepcional, equiparava um tipo específico de inimputável — o menor entre 16 e 21 anos [3] — às pessoas imputáveis, se partirmos do pressuposto que o Código de 1916 instituía um modelo de irresponsabilidade do inimputável.

Portanto, no diploma anterior, os inimputáveis, seja por questões de deficiência mental, seja pelo critério etário, não eram pessoalmente responsáveis por seus atos; com única a peculiaridade de que, diferentemente da incapacidade de exercício, a inimputabilidade delitual etária se encerrava aos 16 anos. Se um inimputável causasse danos a terceiros, o dever de reparar incumbiria exclusivamente aos seus responsáveis legais, desde que presentes os requisitos dos artigos 1.521, I e II, e 1.523, daquele Código.

O Código de 2002 e a responsabilidade pessoal e mitigada do inimputável

Esse sistema foi profundamente alterado pelo Código de 2002. Em primeiro lugar, o diploma atual não repetiu o texto do artigo 156 do Código de 1916 e tampouco trouxe dispositivos que lhe fizessem as vezes. Com isso, desapareceu o único fundamento legal que sustentava o antigo sistema da inimputabilidade delitual.

Mas o Código de 2002 foi além: previu expressamente que o inimputável pode responder pessoalmente pelos danos que causar a terceiros. É o que postula o artigo 928 do Código, o qual, todavia, restringe a responsabilidade do inimputável de duas formas: (i) a responsabilidade pessoal do inimputável é subsidiária, pois só incide nos casos em que seus os responsáveis legais não tiverem obrigação de reparar o dano ou não dispuserem de recursos para tanto; (ii) a responsabilidade do inimputável não se submete ao princípio da reparação integral, de tal sorte que a indenização deve ser “equitativa” e não poderá “privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem”.

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É bem verdade que, no artigo 928, o legislador optou por se referir à responsabilidade “incapaz” e não do “inimputável”. Trata-se uma confusão terminológica e que decorre de dois equívocos. De um lado, de um erro na leitura do artigo 2.047 do Codice Civile italiano, que serviu de inspiração ao texto brasileiro. O mencionado artigo 2.047 refere em seu título ao “dano causado pelo incapaz”.

Contudo, o conteúdo desse dispositivo esclarece que a regra diz respeito à pessoa “incapaz de entender ou querer”. Fica evidente que o termo “incapaz” não está sendo utilizado no sentido daquilo que o Direito brasileiro rotula de “incapacidade de exercício”, mas sim daquilo que o Codice denomina “incapacidade natural” (artigo 428) — conceito inexistente em nosso ordenamento e que nada mais é do que a inimputabilidade.

De outro lado, o equívoco terminológico também tem sua origem no fato de que a incapacidade de exercício decorre, no mais das vezes, da inimputabilidade do indivíduo declarado incapaz. Isso levou o legislador tomar um conceito pelo outro quando da elaboração do artigo 928.

Contudo, há hipóteses de incapacidade que nada se relacionam com o tema da inimputabilidade e que, portanto, não têm relevância para a responsabilidade civil. É o que ocorre atualmente com a incapacidade do pródigo — e que ocorreria, sob a égide do Código de 1916, com relação à incapacidade da mulher casada, do surdo-mudo ou do ausente.

Apesar de incapazes para o exercício de certos direitos, esses indivíduos estão no gozo de suas faculdades mentais, razão pela qual não são menos responsáveis do que qualquer outra pessoa. Não faria sentido, por exemplo, aplicar ao pródigo que provocou um acidente de trânsito o regime mitigado de responsabilidade civil previsto no artigo 928.

O advento do Estatuto da Pessoal com Deficiência (EPD) trouxe à tona a situação inversa: indivíduos inimputáveis que, nada obstante, são considerados capazes do ponto de vista legal. Em razão da alteração do regime das incapacidades, a deficiência mental deixou de figurar entre as hipóteses de incapacidade, de tal sorte que mesmo um indivíduo que tenha seu potencial de raciocínio gravemente comprometido por uma deficiência é, para todos os efeitos, capaz.

Se levarmos a opção terminológica do artigo 928 ao pé-da-letra, chegaríamos à conclusão desconcertante de que, na seara da responsabilidade, o EPD teria diminuído o grau de proteção até então concedido às pessoas com deficiência. Por não serem mais incapazes, as pessoas com deficiência estariam doravante submetidas ao regime geral de responsabilidade, e não ao regime mitigado do art. 928 que lhes era benéfico. Mas essas contradições podem ser contornadas corrigindo-se a expressão adotada pelo legislador: onde-se se lê “incapaz”, leia-se “inimputável”. A inimputabilidade é o critério a ser adotado para incidência do artigo 928, pois é o único que concede a esse dispositivo uma aplicação coerente.

Modelo do Código Civil de 2002 pressupõe que o inimputável pode cometer atos culposos

Além de ter afastado a imunidade civil dos inimputáveis, o modelo instituído pelo Código de 2002 trouxe outra consequência: a culpa não mais exige a imputabilidade do agente. O novo regime pressupõe precisamente o oposto; que o inimputável pode, como qualquer outra pessoa, praticar atos qualificados como culposos.

De fato, uma vez que o incapaz pode ser pessoalmente responsabilizado por força do art. 928, é preciso então determinar sob quais condições sua responsabilidade emerge; em outras palavras, o fundamento de sua responsabilidade. E esse fundamento não pode ser outro senão sua culpa. Há duas razões para se chegar essa conclusão.

A primeira é de ordem técnica: o artigo 927, caput, do Código atual deixa claro que a culpa é o fundamento geral que preside nosso sistema de responsabilidade; o que é enfatizado pelo parágrafo único desse mesmo dispositivo, segundo o qual a responsabilidade independente da culpa só é admissível “nos casos especificados em lei”. Ora, não há no artigo 928 qualquer elemento que indique a responsabilidade ali prevista seja de cunho objetivo.

E o segundo motivo é de ordem pragmática: sem o requisito da culpa, a responsabilidade pessoal dos inimputáveis seria mais rigorosa do que a regra geral aplicável aos demais indivíduos. No modelo geral de responsabilidade civil, a culpa atua como um filtro de responsabilidade.

Ainda que tenha provocado um dano, o causador não será obrigado a repará-lo se sua conduta não for considerada culposa. De onde se conclui que, se afirmarmos que os inimputáveis não são aptos a praticar atos culposos, então sua responsabilidade fundada no artigo 928 estará configurada mesmo em situações nas quais pessoas comuns não responderiam.

Assim, v.g., se durante uma partida de futebol um jogador adulto fere o goleiro adversário numa corriqueira cobrança de falta, ele não responderá por esse dano na medida em que sua conduta não pode ser qualificada como culposa. Ora, se responsabilidade do inimputável não depender de sua culpa, um esportista menor de idade seria responsável nessa mesma situação. Por mais paradoxal que isso possa parecer, admitir que os inimputáveis podem cometer atos culposos é uma medida necessária para sua própria proteção legal [4].

Fenômeno semelhante ocorre com relação à responsabilidade pelo fato de terceiro, mais especificamente, a responsabilidade civil dos pais, tutores e curadores pelos danos causados pelos incapazes sob sua autoridade. No Código anterior, a responsabilidade desses indivíduos dependia de sua culpa, provada ou presumida, ligada ao descumprimento de um dever de vigilância.

Como é consabido, Código de 2002 alterou esse regime ao estabelecer que a responsabilidade pelo fato de terceiro não depende da culpa. Mas há aqui uma precisão a ser feita: o artigo 933 do Código é muito claro ao prever que os pais, tutores e curadores responderão ainda que não haja culpa “de sua parte”; o que não significa dizer que esteja dispensada a culpa do causador direto, a saber, do filho, do tutelado ou do curatelado.

Pelo contrário: seria um contrassenso supor que um pai é responsável pelos danos causados fortuitamente pelo seu filho, sem que a criança tenha incorrido em qualquer desvio de conduta. Retomando o exemplo acima, os pais da criança que feriu o jogador adversário ao cobrar uma falta seriam responsáveis por esse dano, enquanto um adulto colocado na mesma situação não o seria. Não há razão que justifique essa disparidade de tratamento [5].

Ao contrário do que ocorreu com o artigo 928, o problema da culpa do inimputável atraiu a atenção da doutrina na seara da responsabilidade pelo fato de terceiro. A questão chegou às Jornadas de Direito Civil, que propuseram uma curiosa solução em seu enunciado 590: “A responsabilidade civil dos pais pelos atos dos filhos menores, prevista no artigo 932, inciso I, do Código Civil, não obstante objetiva, pressupõe a demonstração de que a conduta imputada ao menor, caso o fosse a um agente imputável, seria hábil para a sua responsabilização”.

A proposta acaba sendo traída pelo seu próprio artificialismo. Para contornar a conclusão inescapável de que, no atual regime, a culpa não mais pressupõe a inimputabilidade, o texto recorre a um malabarismo retórico: “é preciso averiguar se, caso o menor fosse um agente imputável, esse ato seria qualificado como culposo”. Não seria mais simples e coerente admitir que os menores podem agir com culpa?

 

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

 

[1] Code Civil, art 489-2: “Aquele que causou um dano a outrem quando estava sob o efeito de um problema mental não está menos obrigado à reparação”. (atual art. 414-3).

[2] Ass. Plén., 9 maio 1984, p. 79-16.612, p. 80-93.481 e 80-93.031.

[3] No CC/16 a maioridade civil era alcançada aos 21 anos.

[4] Cf. a observação de Cersare Salvi ao art. 2047 do Codice Civile: “Tal perspectiva encontra também um obstáculo que reside na dificuldade de uma interpretação racional do sistema normativo, que prescinda da avaliação do comportamento do inimputável [incapace] à luz do parâmetro da culpa […]. Para que surja a responsabilidade […], promove-se um juízo de culpabilidade do comportamento danoso do inimputável [incapace], para se evitar a paradoxal consequência que a vítima tenha direito ao ressarcimento mesmo de danos que seriam irreparáveis (porquanto decorrentes de um comportamento objetivamente não-culposo), se o causador fosse um sujeito capaz”, La responsabilità civile. 2.ed., Giuffrè, 2005, p. 156.

[5] Supreendentemente, a Corte de Cassação francesa, ao julgar litígio semelhante, considerou que a responsabilidade dos pais “não está subordinada à existência de um ato culposo do filho” e condenou-os a reparar um dano provocado pelo menor em um lance normal de uma partida de rugby: Civ. 2ª, 10 maio 2002, p. 99-11.287.

Autores

  • é professor adjunto da Unifesp ( Universidade Federal de São Paulo), doutor em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo), mestre em Direito Privado pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

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