Público & Pragmático

Regulamentação do dispute board pela ANTT preenche lacuna no Brasil

Autores

  • Gustavo Justino de Oliveira

    é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília) árbitro mediador consultor advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

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  • Gabriela Fernandes

    é estagiária jurídica no escritório Justino de Oliveira Advogados e graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC).

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19 de maio de 2024, 8h00

Os contratos administrativos, especificamente os de infraestrutura, preveem obrigações de grande complexidade técnica e operacional, tendo como consequência altos custos para as partes, bem como um prazo de vigência elevado para o seu cumprimento. Diante disso, inúmeras controvérsias não previstas surgem no decorrer da execução desses instrumentos contratuais, que por muitas vezes acarretam a sua paralisação.

Nesse contexto, o dispute board, também conhecido como comitê de resolução de conflitos, surge como um mecanismo contratual apto a solucionar questões supervenientes não reguladas originalmente pelo negócio jurídico, proporcionando maior segurança jurídica ao mitigar os riscos e os custos inerentes de sua interrupção.

Primeiras experiências e legislações

No Brasil, o dispute board surge como uma possibilidade de avanço na gestão de contratos administrativos, uma vez que o referido instrumento tem o potencial de reduzir a judicialização de questões passíveis de serem resolvidas de maneira consensual. Nesse cenário, o instituto do dispute board foi utilizado nos contratos de concessão para ampliação e construção da Linha 4 do Metrô de São Paulo [1], de forma pioneira, como requisito do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) para o financiamento do projeto.

Com resultados positivos do referido projeto, a utilização do dispute board levou à previsão do instituto em outros contratos de concessão importantes, como a prorrogação do contrato de concessão da Ferrovia de Integração Centro-Oeste (Fico) [2], em âmbito federal.

Consequentemente, diversas legislações começaram a ser criadas, como as Leis Municipais nº 16.873 [3] de São Paulo e 11.241 [4] de Belo Horizonte, a fim de regulamentar e trazer segurança jurídica ao mecanismo, bem como incentivar a adoção do dispute board como método contratual de gestão de controvérsias envolvendo a administração pública.

Spacca

Em âmbito federal, a Lei nº 14.133/2021 adotou o mecanismo dos disputes boards em contratos administrativos, conforme dispõe seu artigo 151, que admite a utilização de meios autocompositivos de prevenção e resolução de controvérsias nos instrumentos firmados com o poder público, tendo feito menção expressa ao comitê de resolução de disputas.

ANTT e o dispute board

Sendo assim, após a previsão do instituto e sua disseminação em diversos contratos de concessão e parcerias público-privadas, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), em 2020, instituiu o comitê de resolução de conflitos como o mecanismo adequado a solucionar controvérsias técnicas nos contratos de concessão das rodovias federais BR-153/414/080/TO/GO [5] e BR-163/230/MT/PA [6], bem como no contrato de concessão da BR-116/101/SP/RJ, em 2021 [7].

Contudo, o TCU, nos Processos 016.936/2020-5 [8] e 018.901/2020-4 [9] restringiu o uso do dispute board nos contratos de concessão de rodovias até que a ANTT implementasse uma regulamentação acerca do mecanismo. Nesse cenário, a ANTT incluiu como pauta de sua agenda regulatória a regulamentação do comitê de resolução de conflitos (dispute board) no âmbito das concessões de rodovias e ferrovias, tendo por resultado a aprovação da Resolução nº 6.040, de 4 de abril de 2024.

Na 979ª reunião de aprovação da resolução, Guilherme Theo Sampaio [10] justifica que a regulamentação do comitê surgiu como resposta à crescente necessidade de evitar a paralisação de obras e serviços, bem como a excessiva judicialização de conflitos entre o Estado e a iniciativa privada nos contratos administrativos. Sendo assim, a proposta visa preencher uma lacuna regulatória, garantindo maior clareza e eficiência na resolução de divergências técnicas.

Disposições

A resolução dispõe regras procedimentais do comitê de resolução de disputas, e segundo o artigo 26-A [11], a ANTT e concessionária poderão instituí-los para prevenir e solucionar divergências de natureza eminentemente técnica, que envolvam direitos patrimoniais disponíveis em relação às seguintes matérias: (1) execução de serviços e obras, inclusive soluções de engenharia mais adequadas às finalidades do contrato, e respectivo orçamento; (2) adequação de obras e serviços aos parâmetros exigidos pela regulação e pelo contrato, e respectivo orçamento; (3) avaliação de ativos e cálculo de indenizações; e (4) ocorrência de eventos que impactem o cumprimento das obrigações nos termos assumidos no contrato, incluindo o cálculo dos impactos financeiros decorrentes desses eventos.

Não obstante, a constituição do comitê poderá ser estipulada via contrato para dirimir conflitos futuros, ou por convenção entre as partes, por instrumento autônomo, para solucionar controvérsias específicas e já existentes. Além disso, a ANTT e concessionária poderão em comum acordo e mediante aditivo contratual, ampliar o escopo de atuação dos comitês de prevenção e solução de disputas, conforme disposição dos §2º e §3º do mencionado artigo. Ademais, os contratos que não contenham a cláusula compromissória de arbitragem ou cláusula que preveja a adoção do Comitê de Prevenção e Solução de Disputas poderão ser aditados.

O contrato de concessão definirá o tipo de comitê a ser formado de acordo com a natureza e o prazo de execução das obrigações contratuais, tendo definido o momento de sua constituição e sua duração. Segundo o artigo 26-C [12], poderá ser formado um (1) comitê permanente, constituído no início do contrato, permanecendo vigente em toda a extensão temporal do contrato ou até a emissão de decisão ou recomendação sobre matéria submetida durante a vigência do contrato; (2) comitê temporário: constituído com prazo limitado a um período da vigência do contrato, relacionando-se a um grupo específico de obrigações ou a uma fase predeterminada de investimentos, extinguindo-se após o exaurimento dos procedimentos aplicáveis às decisões emitidas; e o (3) comitê ad hoc, constituído para tratar controvérsias específicas, extinguindo-se após o exaurimento dos procedimentos aplicáveis à decisão que gerou a sua constituição, podendo ser instaurado (a): na ausência do comitê permanente ou do comitê temporário ou (b) após a extinção do comitê temporário, desde que as controvérsias envolvam obras ou serviços de engenharia considerados de alta complexidade ou de grande vulto, não previstos inicialmente no contrato.

Em relação ao grau de vinculação das decisões proferidas pelo comitê de prevenção e solução de disputas, consoante o artigo 26-B, estas poderão ter natureza recomendatória ou vinculante. As decisões de natureza vinculante têm cumprimento obrigatório e imediato, e independe de manifestação de discordância ou insatisfação das partes, já as decisões recomendatórias podem subsidiar a tomada de decisão da ANTT e devem ser proferidas previamente à decisão administrativa sobre a matéria e, ainda que não sejam objeto de manifestação de discordância ou rejeição, não se tornam vinculantes.

O artigo 26-B [13] da resolução ainda prevê as decisões emitidas por comitê híbrido, as quais poderão ter caráter recomendatório ou vinculante, devendo o contrato ou as partes, em caso de inexistência de previsão contratual a respeito do comitê, previamente definir as matérias que estarão sujeitas a cada tipo de decisão.

Por fim, segundo o artigo 26-E [14], parágrafo único, a parte que solicitar o pronunciamento do Comitê de Prevenção e Solução de Disputas deverá notificar, por escrito, a outra parte, fornecendo descrição do evento ensejador da divergência, cópia de todos os documentos relacionados ao objeto da divergência apontada e demais elementos que julgar necessários para compreensão do fato.

Conclusão

Portanto, após uma breve contextualização acerca do dispute board e pontuação dos principais aspectos trazidos pela resolução, pode-se concluir que a regulamentação do dispute board publicada pela ANTT é muito técnica, abrangente e contemporânea. Ela preenche uma lacuna de ausência de regulamentação do dispute board no Brasil. Até hoje, não tínhamos nada nesse sentido, a não ser algumas leis municipais muito esparsas. Além de preencher essa lacuna, a norma certamente servirá de paradigma para outras agências, sobretudo nas áreas de portos, saneamento básico e gás e petróleo.


[1] Contrato disponível em: https://aplic.metrosp.com.br/as0001/frontendTransparencia/index.php/arquivo/downloadFile/id/16379.

[2] Contrato disponível em: https://portal.antt.gov.br/documents/359178/d983b3f6-e3cb-0254-b613-356c5cdd60cd.

[3] Mais em: https://app-plpconsulta-prd.azurewebsites.net/Forms/MostrarArquivo?TIPO=Lei&NUMERO=16873&ANO=2018&DOCUMENTO=Atualizado.

[4] Mais em: https://leismunicipais.com.br/a/mg/b/belo-horizonte/lei-ordinaria/2020/1125/11241/lei-ordinaria-n-11241-2020-regulamenta-a-utilizacao-de-comite-de-prevencao-e-solucao-de-disputas-para-prevenir-e-para-solucionar-conflito-relativo-a-direito-patrimonial-presente-em-contrato-administrativo-de-execucao-continuada;

[5] Mais em: https://portal.antt.gov.br/documents/359170/0/Contrato%20BR-153-414-080_GO-TO.pdf/505f4a32-e72b-d988-94b2-4d76946bde53. p. 82.

[6] Mais em: https://portal.antt.gov.br/documents/359170/3697630/Contrato+BR-163-230_MT_PA_p%C3%B3sCR6.pdf/3ac6c283-09db-011e-b61a-e93f6e5e7a54?version=1.0&t=1649335889007. p. 68.

[7] Mais em: https://portal.antt.gov.br/documents/359170/0/Contrato+-+BR-116-101-RJ-SP.pdf/1a2a6613-5889-faa8-ed77-22b2c899fd72?t=1646427864280. p. 92.

[8] Acordão TCU nº 4036/2020 – Plenário. Relator: Vital do Rêgo, julgado em 08 de dezembro de 2020. Disponível em:. https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao-completo/016.936%252F2020-5/%2520/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/1/%2520.

[9] Acordão TCU nº 4037/2020 – Plenário. Relator: Benjamim Zymler, julgado em 08 de dezembro de 2020. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao-completo/*/KEY:ACORDAO-COMPLETO-2437227/NUMACORDAOINT%20asc/0.

[10] https://www.youtube.com/watch?v=uObNOgSCAVo&t=3s.

[11] Mais em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-6.040-de-4-de-abril-de-2024-552235396.

[12] Mais em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-6.040-de-4-de-abril-de-2024-552235396.

[13] Mais em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-6.040-de-4-de-abril-de-2024-552235396.

[14] Mais em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-6.040-de-4-de-abril-de-2024-552235396.

Autores

  • é professor doutor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), árbitro, consultor e advogado especialista em Direito Público, membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

  • é estagiária jurídica no escritório Justino de Oliveira Advogados e graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC).

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